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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Aproveito essas horas pendentes entre visitas, refeições ou conversas com familiares e amigos, durante os fins de semana, para percorrer com mais ou menos atenção, sem esforço especial, títulos ou pequenos trechos da imprensa genérica e dos jornais "on line" que pouco consulto e não leio. Será como estar na espera do dentista e, distraído, mastigar umas letras. Ou soltar uma espécie de curiosidade secundária, para que vá farejando. Já em tempos úteis, visito fielmente outras publicações periódicas e várias revistas literárias europeias e norte-americanas e vou aprendendo umas coisas, observando outras. A leitura, sobretudo de livros, novos e revisitados, na relativa solidão em que vivo, é afinal o meu convívio mais frequente. Mas, voltando às tais horas pendentes dos acasos dos fins de semana, acontecem-me surpresas divertidas-maçadoras-inesperadas -previsíveis, pelo que, infelizmente, também vou deparando com ditos tontos em tom professoral, ou humores pretensiosa e presunçosamente engraçados. Deste cariz:

 

   A abstinência sexual exigida pela lei de Cristo...

 

   ... Embora não seja aficionado ao Carnaval, não posso deixar de reconhecer que é um tempo que me é muito proveitoso em termos profissionais. Com efeito o meu negócio é o pecado - o pecado dos outros, entenda-se!  -  e não há dúvida de que o Carnaval é época alta para qualquer sacerdote que se preze. Este ano, as expectativas eram ainda melhores, porque o lema do Carnaval de Torres Vedras era muito promissor: ´Delírio em las Vedras!´  

 

  Assim, Princesa, tal qual, apenas transcrevo. Sem comentários, perguntando-me apenas se haverá mesmo padres assim, que se tomam por polícias do trânsito da gente, da nossa vida, e verificam se cumprimos ou não o que entendem ser o código dessa estrada, designadamente a exigência de abstinência sexual determinada pela lei de Cristo. Como tão explicitamente define este auto identificado sacerdote, o seu negócio é o pecado, sobretudo os delírios eróticos do comum dos mortais, claríssimas violações da lei de Cristo, que exige "abstinência sexual, como afirmação de um amor maior". Nos Evangelhos, não descubro Cristo a legislar sobre sexualidade (tema mais tarde tratado por S. Paulo), nem sequer muito preocupado com ela: encontro-o muito mais a dizer-nos (Lucas, 6, 36-38): Sede compassivos como vosso Pai é compassivo. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado; e uma boa medida, bem cheia e transbordante, será derramada no vosso seio; pois que pela medida com que medirdes sereis medidos de volta. Ou à mulher adúltera, após a retirada dos que a iam lapidar e aos quais Jesus respondera que lhe atirasse a primeira pedra quem nunca tivesse pecado (João 8, 3-12) : «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?». Ela disse: «Ninguém, Senhor.» E Jesus disse então: «Eu também não te condeno. Vai e não voltes a pecar». 

 

   Lembro-me de ser criança e preparar-me para a primeira comunhão. Deram-me um livrito em que se alinhavam perguntas destinadas a ajudar-me a fazer o exame de consciência. Uma delas inquiria-nos sobre se tivéramos maus pensamentos. No meu íntimo, respondia sempre que sim: tivera ganas de dar um murro ao meu irmão mais novo, pensara enfiar o termómetro no leite com chocolate quente do pequeno almoço, para ficar em casa com febre, ou, pior ainda, sem abrir a boca, chamara besta, estúpido, animal, etc., etc., a colegas de escola, professores, etc., etc... Consequentemente, Princesa, quando me fui confessar - e em todas as confissões seguintes - sempre informei o padre de que tinha pecado por maus pensamentos. Até ao dia, anos mais tarde, em que o bisbilhoteiro confessor, insistente, me perguntou: «Olha lá, quando andas nas ruas da Baixa, não costumas parar para ver as montras de roupa interior das senhoras? E não ficas então com mais maus pensamentos?» Como nunca me passara sequer pela cabeça demorar-me a olhar para calcinhas e sutiãs que não usava, e sem entender logo todo o alcance da libidinosa inquirição, respondi com infantil franqueza: «Não, Senhor Padre, nunca me lembrei disso.» Penso que este episódio dispensa comentários, és adulta, eu também já o devia ser... 

 

   A obsessão da igreja clerical com a sexualidade tem muito que se lhe diga: é sem dúvida com estranheza que nos podemos interrogar ,Princesa, sobre as contradições inerentes a um pensarsentir tradicional que tanto enaltece o «crescei e multiplicai-vos», como se obceca com a abstenção sexual, a tal ponto que um manual para confessores de Sto. Afonso Maria de Ligório (do século XVII, mas só conheço a versão francesa de 1854 : Pratique des Confesseurs) é bastante exaustivo no exame das tentações e quedas no pecado da carne). A moral dita burguesa do século XIX educou meninas no horror ao sexo, absolvendo em confissão os mancebos que se aliviavam em bordéis. Deveriam as futuras mães, nossas avoengas - não podendo, et pour cause, ser virgens para o efeito - serem "imaculadas" até à "bênção nupcial", civil e eclesial, que as entregasse à função reprodutora - e/ou, menos canonicamente, à luxúria dos maridos legítimos... Donde adveio, com as febres do romantismo, a posterior exaltação do adultério, não do marido  -  que já tinha todos os direitos, inclusive o da cedência às fraquezas da carne, sempre que esta reclamasse  -  mas da mulher. O nosso Eça de Queiroz percebeu bem, como Flaubert e outros, essa estranha praxis, essa cumplicidade entre luxúria romântica e falta de educação humana e religiosa... Certo também é que esse paradoxo, o preconceito de que o amor humano (entenda-se entre homem e mulher e, portanto, sexuado) é antagónico ou limitador do amor de Deus, prevaleceu na cultura dos primitivos cristãos e marcou Santo Agostinho. A misoginia terá também marcado certas correntes ou seitas do judaísmo, como os essénios, no tempo de Jesus, mas a regra geral, incluindo entre os hassidim ou piedosos, e no ensinamento rabínico, era a do casamento, já que a família era uma bênção e o ato procriador cumprimento de uma norma divina: crescei e multiplicai-vos. Jesus não era misógino, muito pelo contrário: convivia com mulheres, até com samaritanas e mesmo prostitutas, defendi-as e admirava-as, curava-as de males, como fluxos de sangue, que eram considerados sinais de impureza ritual e não só. E até na sua resposta à farisaica pergunta sobre a licitude do divórcio, que a lei judaica reconhecia só à iniciativa do homem, nunca da mulher, Jesus coloca esta ao mesmo nível do homem, ao recordar a versão do Génese «Deus criou-os homem e mulher», de preferência à que pretendia ter ela saído de Adão. Voltarei a falar-te do divórcio, já que outras confissões cristãs, não de obediência romana, reconhecem a possibilidade de divórcio. Na tradição luterana, o matrimónio não é um sacramento, visto que «em todo o sacramento tem de dar-se a palavra de uma promessa divina, à qual preste assentimento a pessoa que recebe o signo. Mas em trecho algum da Escritura se lê que o que casa recebe qualquer graça de Deus, que no matrimónio se passe qualquer signo instituído por Deus, nem que ele tenha sido estabelecido pelo próprio Deus, com vista a uma significação especial, embora todas as realidades visíveis possam entender-se como figuras e alegorias das invisíveis. Mas nem figuras nem alegorias são sacramentos próprio sensu (M. Lutero). Assim, sendo o casamento um contrato consensual, os cônjuges podem acordar a sua desvinculação. Para Calvino, a norma coincide com certa leitura dos evangelhos sinópticos, permitindo o divórcio apenas em caso de adultério. Em todas as tradições, incluindo as ortodoxas que, como a católica, reconhece um sacramento os próprios ministros do sacramento do matrimónio ou do seu simples contrato são os cônjuges.

 

   Mas, até pela sua vida, Jesus apontou o celibato como caminho de mais plena entrega ao serviço do Pai, indo além dos interditos rituais já vigentes no judaísmo, que proibiam relações sexuais durante certos períodos da vida das mulheres (menstruação, gravidez e pós-parto) ou aos soldados em campanha e aos sacerdotes e fiéis em tempo de serviço no Templo. Mas tal "voto de castidade" - ainda hoje praticado por livre opção de quem escolhe a via da chamada "vida religiosa" (monjas e monges, frades e freiras) -  insere-se, numa perspetiva escatológica, na renúncia à vida própria deste mundo e é, portanto, e precisamente por isso, sempre acompanhado dos votos de pobreza e obediência. Não é condição necessária do exercício de um ministério eclesial, é parte de uma opção de vida, em resposta a uma vocação necessariamente íntima e pessoal. Mas já o celibato sine qua non do padre é uma determinação do direito canónico e, como tal, derrogável e revogável.

 

   Acima sugeri apenas um exemplo da acomodação da "doutrina" da igreja às exigências dos privilégios do tempo, através de uma prática que mantinha as senhoras na "ordem" dos confessionários e diretores espirituais e abrangia os homens na imensa tolerância da compaixão cristã pelos pecados da carne. Até os curas, que não tinham filhos, mas "afilhados", embora todos fossem, em obediência à "lei de Cristo" do Concílio de Trento, abstinentes celibatários, já que então não foi ouvida a petição do nosso beatificado Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, dominicano arcebispo de Braga, padre conciliar, para que fossem os seus padres das serranias do Barroso autorizados a casar... Em S. Paulo, na primeira epístola aos Coríntios, todo o capítulo 7º trata do problema da virgindade e da união, a primeira surgindo como ideal, a segunda como concessão, na perspetiva escatológica do advento do Reino de Deus, que se pensava então iminente, num ambiente de temor milenarista   que a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70, acentuara: É bom para o homem abster-se de mulher. Todavia, por causa dos deboches, tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. Que o marido cumpra o seu dever para com sua mulher, e assim também a mulher para com seu marido. Não dispõe a mulher de seu corpo, mas o marido. Assim também o marido não dispõe do seu corpo, mas a mulher. Não vos recuseis um ao outro, a não ser por comum acordo, por algum tempo, para vagardes à oração. E logo ficai novamente unidos, por receio de que Satanás, para vos tentar, se aproveite da vossa incontinência... [Este sábio conselho de pastor quiçá deva ser entendido, nos tempos hodiernos e nas sociedades devassadas por separações, divisões e divórcios, como extensível aos casais católicos divorciados e recasados, até pelo que deveria ser preocupação maternal da Igreja com a saúde espiritual das novas famílias constituídas...] 

 

    Mais curiosamente, como pastor da Igreja, Paulo defende que os bispos devem ser escolhidos entre homens casados, porque aqueles devem refletir as comunidades que os escolhem. Os textos que adiante te cito são trechos das epístolas a Timóteo (1ª e 2ª) e Tito, possivelmente escritas por discípulos de São Paulo, ainda que em seu nome, em tempos «já de desvanecimento do entusiasmo escatológico gerado por Jesus e manifestado por Paulo nos primórdios do seu ministério» (cf. Geza Vermes, in Christian Beginnings- From Nazareth to Nicaea, AD 30-325) : Assim, será necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, que seja sóbrio, ponderado, cortês, hospitaleiro, apto para o ensino, nem bebedolas nem quezilento, mas benevolente, inimigo de chicanas, desligado do dinheiro, sabendo governar bem a sua própria casa e manter obedientes os filhos de modo perfeitamente digno. Pois se alguém não souber governar a sua própria casa, como poderá tomar conta da Igreja de Deus? (I Timóteo, 3, 2-5)...   ... Se te deixei em Creta, foi para terminares a organização e estabeleceres em cada cidade presbíteros, conforme as minhas instruções. Cada candidato deve ser irrepreensível, marido de uma só mulher, ter filhos crentes, que não possam ser acusados de mau comportamento nem desobediência...(Tito, 1, 5-6).

 

   Vou-te escrevendo, Princesa de mim, esta carta - como, bem sabes, todas as outras  -  ao correr da pena sobre lembranças e o meu presente pensarsentir. Corresponder assim é conversar, só que sou eu a escrever, tal como leio e, muitas vezes, porque li convivendo. Esta conversa continua, dou-te mais em próximas cartas, a nossa correspondência é simplesmente uma maneira de irmos trocando referências e reflexões. Até à próxima!

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira