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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Nos dias de hoje, a própria Igreja Católica, em Portugal, acolhe - disseram-me - para o ministério das suas paróquias e sacramentos, padres vindos de leste, praticantes do rito bizantino, alguns deles casados. Também os cristãos ortodoxos, de obediência grega ou russa - e não romana - aceitam, tal como os anglicanos, os luteranos e muitos outros - que os seus pastores sejam homens casados, e com famílias constituídas. É condição humana natural, responde a uma vocação universal que, na Bíblia, se regista logo no livro do Génesis, ainda no paraíso: Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, criou-o homem e mulher. Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra»... Já noutras cartas, Princesa de mim, te dizia que não penso que a permissão de ordenação de homens casados ou de mulheres deva ser aprovada pelas autoridades eclesiásticas em razão da escassez de ministros da eucaristia e doutros sacramentos. Essa questão da falta de gente, a meu ver, levanta-se desde antes, da simples verificação, sobretudo nos países cristãos do ocidente, do assombroso decréscimo no número de batizados e, entre estes, dos chamados praticantes (frequentadores dos ofícios eclesiais e dos sacramentos). Faltam ministros porque são menos numerosos os fiéis ou, dito de outro modo, porque a Igreja se foi alienando do mundo em que vivemos, se fechou em dogmatismos doutrinais, rituais e sociais, que a afastam do convívio dialogante com as gentes hodiernas, as suas angústias e preocupações (ou leviandades), as suas condições de vida.

 

   Temos, pois, duas básicas questões bem distintas: uma, a conversão do magistério eclesiástico à pregação da Boa Nova, isto é, como infatigavelmente diz o papa Francisco, a uma saída para a rua, ao encontro dos outros; outra, a necessidade desse tal magistério entender que a mensagem que Cristo lhe confiou é sempre ela e a sua circunstância, pelo que a tradição da Igreja não pode ser a repetição de ensinamentos e práticas nascidas, criadas - aliás nem sempre com todo a justiça e discernimento - em circunstâncias passadas. Assim sendo, eu não quero que se ordenem mulheres ou homens casados, nem que tal seja proibido: apenas peço que qualquer decisão canónica a esse respeito não invoque fundamentos bíblicos ou teológicos que, mesmo tendo sido muito usados no passado, são, por um lado e pelo menos, discutíveis e, por outro, não encontram qualquer recetividade em sectores crescentes das nossas sociedades, nem qualquer entendimento favorável nas mentes contemporâneas. E ninguém me venha dizer que "isso é relativismo!", pois trata-se precisamente do contrário: muito mais relativismo é isso a que chamam fundamentalismo, pois este nega a possibilidade do entendimento universal de um princípio, de um valor, de uma mensagem noutro modo que não aquele - relativo como tudo o que é dito para ser ouvido - no qual se defende ou pretende ter sido formulado ou proferida. Ou então, como também já te disse, Princesa de mim, acordemos que Jesus Cristo foi o grande relativista. Tampouco quero que se "liberalize" (como sói dizer-se hoje) o divórcio canónico, ainda que um puxãozinho de orelha pudesse levar certas pessoas a refletirem mais objetivamente, e com maior espírito crítico, nas "declarações de nulidade" dos tribunais eclesiásticos. Na verdade, defendo o princípio da indissolubilidade, precisamente por ser princípio, e defrontar os possíveis nubentes com a necessidade de assumirem a sua responsabilidade.  O matrimónio não é um contrato comercial (com ironia penso: bem... há exceções!), desde logo envolve vidas presentes e quiçá por vir, sentimentos e aspirações, intimidades, sobretudo entregas de si em confiança mútua... Não é coisa para ser tratada com ligeireza e, por isso, até no plano institucional, religioso ou simplesmente civil, tem de ser encarado com respeito enormíssimo, com a prudência (o tal amor sagaz de que tanto já te falei, Princesa) necessária a precaver o seu melhor decurso possível, mas infelizmente, também as consequências da sua eventual derrocada. Encurtando a dissertação: o divórcio não é desejável, mas pode ser inevitável, quer para salvaguarda da saúde mental ou da própria vida dos cônjuges, quer ainda para evitar que filhos aprendam, no seio da sua própria família, a discórdia, a raiva, a agressão, a maldade. Fílon de Alexandria, filósofo judeu helenista, e Flávio José, historiador judeu romano, + ou - coevos de Jesus, testemunham que a prática corrente, naquele tempo, de permissão do divórcio - que só o marido podia solicitar - se fundamentava até em alegações tão simples quanto a de a mulher ter deixado comida queimar-se ao lume, argumento defendido por uma das grandes escolas de escribas, enquanto outra escola apenas o legitimava em caso de adultério. Mas, para Jesus, até o adultério merecia perdão, enquanto que o divórcio, como direito do marido estipulado na lei mosaica, fora reconhecido apenas em razão da dureza dos corações... E não separasse o homem o que Deus uniu! Outra interpretação desse passo do ensino de Jesus, para além do imperativo de uma lei erga omnes, isto é, de uma norma que nem sequer é derrogável, pode pois ser a de que o marido sozinho não possa desunir o que a mulher também não pode, e até talvez possa não querer.

 

   Tenho amigos e amigas divorciados, crentes e não crentes, uns ou umas aliviados e enfim felizes, outros e outras (muitas) com feridas que não saram ou levaram muito tempo a sarar. Nenhum deles, nem qualquer delas, alguma vez me disse que o seu divórcio tivesse sido simples felicidade, nem sequer desejo genuíno. Mesmo para quem, desde o início do processo de separação, ansiou pelo seu termo, ou até procurou o esquecimento de uma vida comum, a simples perspetiva de um afastamento necessário foi sempre traumática, mais ou menos dolorosa, a menorização da dor sendo, frequentemente, função da esperança numa vida melhor. Quando conseguiram esquecer e refazer uma família - que, aliás, em muitos casos, também acolheu filhos anteriores - redescobriram, reconhecendo-a como tal (os crentes) ou saboreando apenas o seu conforto (os não crentes), a misericórdia de Deus. Da qual cada cristão deve procurar ser sacramento. Abriu-se-lhes a porta da alegria para que Deus os criou. Homem e mulher, na sua integridade humana. Acabo, Princesa de mim, transcrevendo o parágrafo 152 da exortação apostólica pós sinodal do papa Francisco, a Amoris Laetitia:

 

   Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro torna-se «uma afirmação amorosa plena e cristalina» mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existência humana foi um sucesso». As citações feitas pelo Papa são respigadas de Über die Liebe (Sobre o Amor), de Josef Pieper (Munique, 2014).

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira