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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

de 14 a 20 de Dezembro de 2009

“O Espião de D. João II” de Deana Barroqueiro (Esquilo, 2009) é um romance baseado em factos reais, que nos permite acompanhar a viagem de Pêro da Covilhã até às terras do Preste João. Transpondo para os dias de hoje a imagem de um “agente secreto”, travestido de James Bond ou de Indiana Jones, a autora não comete o erro do anacronismo e procura, com uma experiência já ganha noutras obras (“O Navegador da Passagem”, “D. Sebastião e o Vidente”), transmitir ao público em geral, e em especial aos mais jovens (dada a sua longa e rica experiência pedagógica), o ambiente geral do final do século XV, com uma evidente vivacidade.

UMA ESTRATÉGIA INTELIGENTE 
Em 1487, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, escudeiros de D. João II, o Príncipe Perfeito, foram enviados de Portugal para a costa oriental de África, ao mesmo tempo que Bartolomeu Dias partia para o Cabo da Boa Esperança. Tratava-se de descobrir por terra, aquilo que os navegadores iam procurar por via marítima – a rota das especiarias da Índia e notícias do “encoberto Preste João”. E deste modo acompanhamos uma longa peregrinação de cerca de seis anos pelo Mar Roxo, primeiro na companhia de Afonso de Paiva e depois solitariamente pelas costas do Índico até Calecute, mas também, pela Pérsia, África Oriental, Arábia e Etiópia, descobrindo povos e culturas completamente estranhos. Mas, para fazer essas andanças, Pêro da Covilhã teve de ocultar a sua verdadeira identidade e origem (como verdadeiro agente secreto, que de facto era), aparecendo como um enigmático mercador do Al-Andalus. Para compreendermos, contudo, a génese do romance temos de ir à obra anterior de Deana Barroqueiro – “O Navegador da Passagem”, onde o tema é a missão de Bartolomeu Dias de preparação do caminho marítimo para a Índia. A autora, naturalmente, entendeu que a chave do enigma do Príncipe Perfeito só estaria plenamente desvendada (ou a caminho disso) se se tentasse perceber o que se passou com Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, na sua complexa e misteriosa viagem terrestre ao encontro do Presbítero João, o mítico Imperador Cristão do Oriente, há muito referenciado mas nunca descoberto. Afinal, o que era o mito do Preste João? Fala-se muito do tema, mas raramente com o rigor indispensável, e a nossa autora coloca com cuidado e correcção os termos em que essa referência deve ser feita. Depois do Concílio de Éfeso (431) e após a condenação dos Nestorianos, que defendiam ter Cristo uma dupla natureza, humana e divina, os partidários dessa heresia espalharam-se pela Pérsia, Arábia, Índia, Tartária, Mongólia e China. Daí as referências a comunidades de influência cristã espalhadas pelo continente asiático. Por outro lado, o apóstolo Tomé teria chegado à Índia e fundado núcleos cristãos no sul, de que temos notícia desde muito cedo (cerca do século IV). Lembrámo-nos bem dessas referências quando visitamos Cochim. Estas duas primeiras alusões põem-nos perante a existência de bolsas de influência cristã na Ásia, que podem ter estado na origem da lenda do desejado Preste João, a que faz referência o veneziano Marco Pólo no seu célebre Livro. A alusão a esse Presbítero pode ter ainda a ver com o mito de que o Apóstolo João não teria morrido, à espera da segunda vinda de Jesus Cristo, daí o nome adoptado. O célebre viajante veneziano situa, aliás, o reino do Preste João algures no centro da Ásia. Acresce que, dentro do espírito das Cruzadas, foi dirigida no final século XII ao Papa Alexandre III, bem como aos Imperadores do Oriente (Manuel Comeno) e do Ocidente (Frederico Barba Roxa), uma Carta apócrifa assinada pelo Preste João das Índias, descrevendo o seu reino maravilhoso e pedindo apoio. Sabemos, ainda, que Gomes Eanes de Azurara aludia à busca de uma aliança com um Imperador cristão das Índias entre as cinco razões do Infante D. Henrique para iniciar a Expansão. D. João II, a partir destas referências díspares, tinha, assim, uma informação suficientemente precisa de que havia um rei cristão na costa oriental de África, para lá do Cairo, na zona de influência copta. Com efeito, no Alto Egipto e na Etiópia havia cristãos, fruto da evangelização que a tradição atribuía a S. Mateus. Fácil é de compreender, por tudo o que fica dito, a importância desta missão confiada a Pêro da Covilhã. O plano da Índia exigia uma definição clara de uma acção política e diplomática que desse consistência à criação de um novo Império dos portugueses.

UMA PEREGRINAÇÃO HERÓICA
Seguimos, a partir de todos estes ingredientes, com entusiasmo, esta peregrinação. Há vivacidade na narrativa, o que permite ao leitor acompanhar o relato sem perder a atenção bem desperta. Santarém, Lisboa, Valência, Barcelona, Nápoles, Rodes, Alexandria, Cairo. Na cidade egípcia define-se a missão, Pêro da Covilhã irá para a Índia, para a Costa do Malabar, enquanto Afonso de Paiva destinar-se-á à Etiópia. A autora procura, assim, dar-nos o colorido dessa cidade que é uma encruzilhada de influências, o centro nevrálgico do comércio do Levante do Mediterrâneo. Com base nos testemunhos tradições e documentos coevos, a autora faz uma descrição minuciosa e rigorosa da viagem (em termos que pôde verificar com os seus olhos quando visitámos juntos a cidade e o Golfo Pérsico, com o CNC, em Setembro último). Depois do Cairo, ruma a Adem, no Mar Roxo, onde se separa de Afonso de Paiva, atravessa o Mar Arábico e chega a Cananor, segue para Calecute, passa por Goa, e regressa ao Golfo Pérsico e a Ormuz, o porto donde partiam as caravanas da Rota da Seda, que Marco Pólo visitou por duas vezes… Depois, segue para sul na costa ocidental de África, zona crucial para a descoberta do caminho marítimo para a Índia, até Sofala, retornando ao Mar Vermelho e ao Cairo. Deana Barroqueiro não se limita, porém, à descrição fria dos acontecimentos, concede densidade dramática a alguns dos momentos mais marcantes da narrativa. A personalidade de Rute, que surge com um destaque especial, não pode deixar de ser referida pela sua intensidade e pelo modo como nos dá um exemplo do modo como os portugueses se relacionavam com os povos desconhecidos que encontravam. De facto, a miscigenação não surge de um momento para o outro, por mera decisão política circunstancial. E este romance prenuncia-a.

DIPLOMACIA E AVENTURA
A um tempo, estamos perante os exemplos vivos quer do participante activo na empresa dos descobrimentos portugueses (no lado, algo inesperado, da preparação das navegações e da espionagem terrestre, bem diferente das histórias trágico-marítimas), quer da aventura em estado puro, que a autora inteligentemente explora com conhecimento e verosimilhança. Trata-se, no fundo, para usar uma metáfora medieval, quase de uma demanda mística que só pode ter paralelo na busca do Graal. É o prolongamento do espírito das cruzadas. Sente-se isso claramente, como depois veremos, Afonso de Albuquerque ao lançar uma ofensiva político-militar na região que pressupõe o conhecimento e a preparação, que Pêro da Covilhã conseguiu, mesmo que, em parte, fossem decepcionantes as conclusões… O Padre Francisco Álvares encontraria o agente português graças à embaixada de Rodrigo Lima (que demandou a corte do negus da Etiópia, sendo representado na frontispício da obra de Álvares). Aí pôde confirmar as excepcionais qualidades de Pêro da Covilhã – com uma espantosa memória, onde nada se perdia, a capacidade de aprender qualquer língua e, em pouco tempo, falá-la como um natural, além da apurada arte para criar os mais extraordinários disfarces, assumindo diferentes identidades e a extrema facilidade da improvisação. Estamos, assim, perante um romance histórico que é, a um tempo, livro de viagens e relato de aventuras. E como diria o Padre Álvares: “todas as cousas a que o mandaram soube, e de todas deu conta”. Quem melhor poderia sublinhar esta preocupação? Esta é a melhor homenagem que pode ser feita a Pêro da Covilhã, cuja memória parece ir-se desvanecendo, apesar da sua importância fundamental... 

Guilherme d'Oliveira Martins