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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


25. INTERROGAÇÕES SOBRE O CASO PORTUGUÊS


A “excecionalidade” do caso português, em termos de existência e sobrevivência é tida como exemplo, por vários autores, tendo como referência imediata o desequilíbrio e desproporção territorial com o único estado vizinho, agudizada pela natureza insular da Península Ibérica, qual ilha, tipo Jangada de Pedra de Saramago, tornando mais surpreendente e enigmática tal realidade.   


Consequência desse enigma ou sociedade paradoxal de que por vezes é apelidado Portugal, ainda não há muito Hans Magnus Enzensberger se interrogava como é que o nosso país, sendo um dos países menos desenvolvidos da Europa, “é capaz de tanta utopia (do sebastianismo à revolução do 25 de Abril de 1974), a tal ponto que seria certamente uma grande potência numa “Europa dos desejos” (citação de Boaventura de Sousa Santos, eds. Afrontamento). 


Acrescenta, na mesma obra, Boaventura Sousa Santos: 


“Apesar de ser um país europeu e de os portugueses serem tidos por um povo afável, aberto e sociável, é Portugal considerado um país relativamente desconhecido. Apesar de ser um país com longa história de fronteiras abertas e de “internacionalismo” das descobertas dos séculos XV e XVI à emigração dos anos sessenta - é considerado um país exótico, idiossincrático. Desconhecimento e exotismo são, pois, temas recorrentes quando se trata de propor uma apreciação global do país e do seu povo. Geralmente crê-se que o exotismo é a causa do desconhecimento. Eu avanço a hipótese oposta, a de que o exotismo é um efeito do desconhecimento. Por outras palavras, sabe-se pouco sobre Portugal e, por isso, se considera ser Portugal um país relativamente exótico” (sublinhado nosso).  


Argumentos históricos, geográficos, étnicos, políticos e outros são tidos como insuficientes para explicação, nem pensamos ser nós, na nossa modéstia, a explicá-lo, o que, por certo, sempre persistirá para os seus defensores, seguramente se aceitarmos que em rigor tudo é subjetivo, tomando como ponto de partida que todas as nossas opiniões e conhecimentos são fruto da perceção individual de cada um de nós. Isso não exclui, contudo, que se tente compreender melhor a existência e sobrevivência de Portugal na sua individualidade e universalidade, rumo a uma perspetiva global e multilateral, a uma pluralidade na diferença, passando pelo nacionalismo, lusofonismo, europeísmo e universalismo.   


Nesta sequência, e prosseguindo, sendo Portugal um país europeu periférico, geograficamente falando, um país pequeno, em dimensão continental, mas não marítima, com poucos recursos naturais imediatamente exploráveis (pense-se nas potencialidades não exploradas relacionadas com o mar), o que faz a sua riqueza, no essencial e agora, e em nossa opinião, são os milhões de portugueses que aqui nasceram, habitam e trabalham, milhões de emigrantes que no exterior lutam por um futuro melhor e as centenas de milhares de imigrantes que entre nós procuram uma vida melhor (recursos humanos).       


Verifica-se, porém, que Portugal depende do exterior para se afirmar como país empreendedor e influente no concerto das nações, bem como para sobreviver melhor que confinado ao seu espaço genético e cronológico. Foi assim no passado, quando decidimos atravessar os oceanos, é assim no presente quando lutamos por uma Europa das Nações. Que esse exterior esteve sempre presente provam-no os vários momentos decisivos e traumáticos da nossa história, em que nos questionámos em termos de Ser, Ter e Dever Ser, tipo interrogações vitais e sempre ultrapassadas, a que não será alheia (também) a singularidade derivada da ancestralidade de uma existência oito vezes secular, a forte identidade e unidade cultural que uma pequenez geográfica maioritariamente permite.    


Se para muitos somos o país mais internacionalizado da União Europeia, em termos humanos, não é menos verdade que herdámos dos fenícios, celtas, iberos, cartagineses, gregos, romanos, árabes, e de todos os demais povos que por aqui passaram, um internacionalismo tolerante.   


Trata-se de um país dependente que sempre soube gerir dependências, que sempre se levantou queda, após queda, que se viabilizou e realizou quando dado como inviável ou irrealizável, que se multiplicou de muitos modos, nomeadamente através da língua, recebendo influências dos povos com que se cruzou, incluindo os que dominou, sem necessidade de se hipostasiar, sem esquecer que a par da permanência de estruturas de longa duração, há caraterísticas que podem alterar-se se as condições estruturais de natureza política, económica, cultural e social se modificarem, o que exclui pretensos e imutáveis carateres intrínsecos de um ser português.   


01.10.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  EPÍLOGO

 

E eis-nos chegados ao epílogo deste nosso Folhetim de Verão, de 2021. A última imagem que deixamos é a da cerimónia de inauguração, da primeira linha de caminho de ferro portuguesa, entre Lisboa e o Carregado, reinava Sua Majestade o Rei D. Pedro V de saudosíssima memória. É uma referência simbólica, que recorda um tema que ciclicamente se torna atual. O desenho é de Bernardo Marques e pretende apenas dizer que as trinta boas razões que encontrámos adicionalmente às de há um ano para gostarmos de Portugal pressupõem uma ligação permantente entre o passado que recebemos e o futuro que preparamos.

E lembrei-me neste cenário de um saudoso amigo queiroziano dos quatro costados que um dia me fez entrar numa narrativa meio policial, que se iniciava num almoço nas imediações do Passeio Público e numa minha descoberta, para mal dos meus pecados, do fantasma de Carlos Fradique Mendes, que, para surpresa de muitos, continuava vivo a deambular pela cidade. O resultado foi incómodo. Descobri-o, e ele não me perdoou e jurou vingança. Essa sanha foi, porém, passando com o tempo, e a verdade é que o redescobri, há dias, de novo nas imediações do Salitre, junto da estátua romântica da morgadinha de Valflor, sempre igual a si mesmo – um verdadeiro dandy, com a sua cultura flamante de sempre.

Se há um ano encerrei a prosa do folhetim com o inefável Oliveira da Figueira, que nos irá visitar em breve, vindo do universo de Hergé e do Tintin, hoje fecho portas com esta derradeira conversa com Fradique.

De que falámos? Recordámos o amigo comum Zé Fernandes e, com ele, a revelação do poeta sublime nas páginas da “Revolução de Setembro”, afilhado de Antero e Jaime Batalha Reis. Depois fomos até ao capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça e da Ramalhal figura, publicado em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”…

Mas então queixou-se-me. De quem? Do nosso José Maria Eça de Queiroz, do próprio, por este se ter apoderado da sua figura. O certo é deixou de ser um mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, tornando-se marca da sua própria identidade. E assim deixou o anonimato e tornou-se uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires. E confessou-me que a celebridade o perturba. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo, mas preferiria manter-se na sombra. Então reli-lhe o que José Maria escreveu. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Carlos pertencia a uma velha e rica família dos Açores. Descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes. E surpreendeu-se que eu soubesse um conjunto de pormenores sobre tal figura recôndita. Julgo ter sido esse o ponto que permitiu voltarmos à paz na nossa relação tempestuosa…

“Com o ímpeto de ave solta”, viajou por todo o mundo, “a todos os sopros do vento, desde Chicago até Jerusalém, desde a Islândia até ao Sara. Nestas jornadas sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções, achara-se envolvido em feitos históricos e tratara altas personalidades do século”. A geografia era o seu domínio preferido para continuar uma conversa. E a sua qualidade única de ser longevo e ubíquo levavam-no a falar-me com numa ciência exata nos grandes mistérios contemporâneos da Síria, do Líbano ou do Afeganistão. Tudo se explicaria pela cegueira e pela ganância. Os factos contemporâneos tinham explicações claras, que ele conhecia perfeitamente…

Mas antes de nos separarmos neste último encontro em que ele desejou mesmo desvanecer-se sem que eu pudesse voltar a vislumbrá-lo citou-me o meu velho e saudoso amigo Zé Fernandes: “É curioso que o José Maria, com a sua perspicácia crítica, nunca tenha posto suficientemente em relevo esse meu lado negativo como ser social, suficiente também para diminuir, se não para ofuscar de todo a valia dos meus supostos talentos”… (José Pedro Fernandes, Autobiografia de Carlos Fradique Mendes, Editorial Notícias, 2002). E não perdoou a Ramalho Ortigão o excesso: “Fradique marcha cinco léguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford, mete-se sozinho no deserto a caçar o tigre, arremete com um chicote na mão contra um troço de lanças abissínios”. Puro exagero! Puro exagero! E nisto, não sei por que fas ou porque nefas, Carlos desvaneceu-se subitamente. Com se tivesse voado ou tivesse feito um genial número de prestidigitação… Desconfio que não voltarei a reencontrá-lo. Sei o seu segredo essencial, mas não sei onde se esconde verdadeiramente. Mas ao menos ficámos em paz… E fui Avenida abaixo, qual Borda d’Água sem companheiro. Chegado ao fim Agosto, é tempo de eu voar com o ímpeto da ave solta.

GOM

 

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  (XXX) MANOEL DE OLIVEIRA, INESQUECÍVEL

 

Quase a acabar o nosso folhetim, vamos ao Porto e encontramos Manoel de Oliveira (1908-2015), e terminamos na Arrábida, sempre a Arrábida… A começar, um delicioso relato feito pelo jovem poeta Carlos Queirós de uma conversa com o grande Luigi Pirandello, numa viagem de táxi entre os Restauradores e o Hotel Palácio do Estoril. O Mestre estava fatigado e escusara-se a ir a Alfama a uma festa popular organizada por António Ferro. Tinham acabado de ver a exibição do documentário «Douro Faina Fluvial» do jovem Manoel de Oliveira. Carlos Queirós conta o ocorrido: «Durante a exibição do filme – que o crítico francês Vuillermoz declarou ter sido, como realização, a estreia mais auspiciosa que tinha visto. Contudo, alguns espectadores ameaçaram patear. Pirandello, inclinando-se para trás, perguntou a um dos portugueses que o acompanhavam no camarote: “Porque estão a bater com os pés? – Porque não gostam. – Mas o filme é muito bom! – É verdade, mas não gostam… E Pirandello, com ar de quem acaba de reconhecer uma classe (talvez a lembrar-se do que aconteceu a algumas das suas melhores peças): – Ah! São os idiotas!…». E, entre dentes: de facto, confundem os pés com as mãos… Estava tudo dito. Sabemos que Oliveira estava suficientemente seguro de si, inspirado por Walter Ruttmann, e agora contava com o veredicto absoluto de Pirandello. José Régio disse, aliás, de «Douro», na «Presença»: «Realizado num mínimo de condições favoráveis, é, além duma surpresa e duma audácia, um milagre de apaixonada persistência» e Adolfo Casais Monteiro foi perentório: o filme «inaugurava em Portugal uma nova época».

De facto, um grande autor anunciava-se. Não falaremos hoje de tantas obras que nos encantaram, como “Aniki-Bobó” até “Amor de Perdição” (que o tempo apenas valorizou) ou “Palavra e Utopia”. Falaremos apenas de “O Convento” (1995), baseado na novela de Agustina “As Terras do Risco”. O romance decorre na Arrábida, onde há muitos séculos o homem conhece a confrontação com a sua própria obscuridade, dando-lhe às vezes o nome de Deus, outras de rei ou de poderes telúricos, terramotos e tempestades. A trama desenrola-se no misterioso convento, isolado na serra da Arrábida. Michel Padovic, investigador americano (John Malkovich) está apaixonado pela busca de uma pista histórica inédita e procura indícios de que William Shakespeare era um Judeu espanhol, descendente de gente expulsa da Península Ibérica, que teria partido para Florença e daí para Inglaterra. Acompanhado pela mulher, Helène (Catherine Deneuve), Michel trabalha na Arrábida. E deparamos com a releitura do mito universal de “Fausto” – entre Shakespeare e Goethe. Alguém vende a alma ao demónio em troca do conhecimento. E Manoel de Oliveira trabalha o mito, demonstrando que Fausto existe em todo o tempo. Mas é por Hélène que se interessa o guardião do local, a figura algo sinistra de Baltar (Luís Miguel Cintra), que vive com Piedade (Leonor Silveira). Há vários tempos sobrepostos: o presente, a Idade Média e a Antiguidade clássica, já que Hélène se transfigura em Helena de Troia.

João Bénard da Costa está  muito ligado a este filme. Conhecia a serra como ninguém. Manoel de Oliveira pediu-lhe ajuda para fazer um levantamento das histórias da Arrábida. “Numa das cenas, eu devia contar (disse João) à Catherine Deneuve a história do Convento Velho, que eu contei tantas vezes a tanta gente ao longo da minha vida. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, naquele momento, que sentia estar a viver um sonho. Um ano antes, naquele mesmo sítio onde vou tantas vezes, até poderia ter imaginado esta cena, rido com ela e pensado que ela era um sonho. Mas não. Estava ali, com a Catherine Deneuve, a contar uma história da Arrábida. (…) A verdade é que tenho vivido coisas que nunca pensei viver, que parecem fazer parte da dimensão do sonho, da dimensão do cinema. Nesse sentido, sou um homem privilegiado”. De facto, todo o carácter mágico que rodeia “O Convento” estava bem patente nos vários planos apresentados. Agustina, por sugestão do seu amigo, começa a escrever “Pedra de Toque”, sobre um dos lugares mais mágicos de Portugal. No entanto, demorou-se na escrita, mais do que o realizador necessitaria. Então este falou a Agustina para que ela resumisse o enredo. Assim foi, e Oliveira elaborou um guião próprio, dando início à concretização do filme. E apresentou o filme como “inspirado na ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Resultado? Agustina não gostou. Recusou-se a ver o filme e qualificou o episódio como “desencontro total” e “colaboração falhada”. A zanga foi séria, mas o tempo aplainaria esse acidentado episódio. Agustina seguira uma via algo diferente da de Oliveira. Teria preferido a obsessão do investigador tão concentrado no seu estudo, correndo o risco de se confundir com ele. Pelo contrário o cineasta optara por enfatizar a história dos ciúmes entre duas mulheres. E, como bem sabemos, Agustina sempre repetiu que “o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e o amor não entra nos meus romances”. A verdade é que não podia ser durável a zanga, por várias razões – de facto o que houve com “Pedra de Toque”, que depois se tornou “Terras do Risco”, por maior fidelidade à Arrábida, que passou à tela como “O Convento”, foi um mero equívoco, gerado pela pressa de Oliveira e pela falta de um real acerto de ideias quanto ao projeto. Quando vemos o filme, percebemos que poderia ter sido ela a principal responsável pelas ideias, com mais ou menos ciúmes e desencontros. Talvez tenha existido no cineasta um excesso de confiança no exercício de seguir o que a autora teria feito. Passada a tempestade, no ano seguinte, Oliveira voltou a lançar a Agustina o desafio para escrever sobre mulheres e homens, num cenário em que dois casais, um mais novo e outro mais velho, se encontram nos Açores. E assim o filme “Party” (1996) vai marcar uma rápida reconciliação – sendo curiosa a forma como Agustina vai aos Açores para conhecer pessoalmente Michel Piccoli e Irene Papas, que contracenam com Rogério Samora e Leonor Silveira. Surpreendida, a escritora depara-se com a filmagem de uma garden party em plena tempestade – com chuva, neblina e vento forte… E Agustina concluiria que a nova colaboração cinematográfica foi interessante.

GOM

 

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  (XXIX) RUY BELO, HOMEM DE PALAVRA(S)

 

Para Ruy Belo (1933-1978), “a poesia não constitui um fenómeno isolado no contexto cultural. Poesia é fundamentalmente a linguagem, e a língua, sendo em si mesma um facto de cultura, permite a fixação e a transmissão de toda a cultura. A poesia enquadra-se na arte e distingue-se das outras artes quanto ao ‘meio’ (o termo aqui, embora, claramente insuficiente, é aplicado na sua aceção vulgar) de expressão”. E é esta circunstância que a autonomiza e distingue. De facto, o poeta compreende, melhor que ninguém, que cada palavra é um infinito, “que exerce o sortilégio que o poder mágico lhe permite”. E recordámos, de modo insuspeito, Alexandre O’Neill a dizer que é bom termos o infinito entre nós, sem quaisquer ilusões. E Ruy Belo, no seu permanente repensamento, foi suficientemente claro: “Não há bem mais humano do que a palavra, de tal maneira que ela até compromete na inteligência do homem toda ou quase toda a sua existência. Ela ajuda a criar, e participa da história do homem. Daí que pô-la em jogo seja movimentar o universo”. E se a palavra é humana, naturalmente que se torna social, comprometida, responsável. Abre diversas relações com outras palavras, mas sobretudo com pessoas. A poesia é o lugar “onde convivem umas com as outras as palavras”. Teresa Belo recordava, por isso, os exercícios intermináveis que o poeta dedicava aos encontros e desencontros de palavras. Mas “O Guardador de Rebanhos” veio de um só jacto. E foi na leitura de Homero que se educaram os atenienses, mas Platão preconizava a expulsão dos poetas da cidade pelo perigo que representavam. Hölderlin reconhecia a inocência da palavra, mas considerava-a o mais perigoso dos bens. “A vida não se compadece com ideologias vãs / a vida pede pouco mais que vida / Para sabedoria não existe idade / mas a felicidade existe um só momento…”  

A esta luz Ruy Belo pensou Portugal. Contra a ideia de fatalismo do insucesso ou do atraso, e sem dó nem piedade no sentido crítico, as gerações da “Vida Nova” e de “O Tempo e o Modo” assumiram plenamente a dureza da denúncia e a aventura das propostas audaciosas. O atraso recusa-se. E a leitura de “Portugal Futuro” obriga-nos a não baixar os braços e a renovar o ânimo crítico. Uma cultura acomodatícia ou conformista tende a tornar-se frágil. A clareza crítica contrapõe-se à cacofonia… Daí a necessidade de uma visão dialógica de diferentes culturas, não como amálgama em que ninguém se entende. Eis como é importante a tradição de D. Pedro das Sete Partidas, mas também de Pedro Nunes, Garcia de Orta, D. João de Castro – de Camões, de Fernão Mendes Pinto e de Vieira… E esse cosmopolitismo liga-se à diversidade das culturas da língua portuguesa – da saudade até à morabeza… Haverá melhor definição de património vivo? «O portugal futuro é um país / aonde o puro pássaro é possível / e sobre o leito negro do asfalto da estrada / as profundas crianças desenharão a giz /esse peixe da infância que vem na enxurrada / e me parece que se chama sável / Mas desenhem elas o que desenharem / é essa a forma do meu país / e chamem elas o que lhe chamarem / portugal será e lá serei feliz / Poderá ser pequeno como este / ter a oeste o mar e a espanha a leste / tudo nele será novo desde os ramos à raiz / À sombra dos plátanos as crianças dançarão / e na avenida que houver à beira-mar / pode o tempo mudar será verão / Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz / mas isso era o passado e podia ser duro /edificar sobre ele o portugal futuro» (in 'Homem de Palavra[s]').

GOM

 

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  (XXVIII) O MUNDO DE JÚLIO POMAR

 

Helena Vaz da Silva terá sido porventura quem melhor entendeu a força e a diversidade do mundo de Júlio Pomar, num magistral diálogo que com ele teve. Pomar nasceu em 1926 em Lisboa. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e as Escolas de Belas-Artes de Lisboa e Porto. Em 1942 participou numa primeira mostra de grupo, em Lisboa. Realizou a primeira exposição individual em 1947, no Porto. Em virtude de atividades oposicionistas é preso durante quatro meses, com apreensão de um dos seus quadros pela polícia política (“Resistência”) e ocultação dos frescos realizados para o Cinema Batalha no Porto. É autor do célebre retrato de Norton de Matos, candidato oposicionista. Afirma a independência da criação artística, mas associa o trabalho de pintor ao combate político, dando prioridade à defesa da responsabilidade social na criação de uma arte acessível e interveniente. Em 1963 instala-se em Paris. Na expressão de José-Augusto França, Pomar pertence à terceira geração modernista com uma obra multifacetada que se prolonga por sete décadas, destacando-se depois de um período inicial, dito neo-realista (“O Almoço do Trolha” ou “O Gadanheiro”), e de uma transição marcada por “Maria da Fonte” (1957), as exposições «Tauromachies» e «Les Courses» (Galerie Lacloche, Paris, 1964 e 1965); a participação numa mostra dedicada ao quadro de Ingres “Le Bain Turc” no Louvre (1971); as séries de pinturas “Mai 68” e “Le Bain Turc” (Galeria 111); as exposições «L’Espace d’Eros» (La Différence, 1978); «Théâtre du Corps» (Galerie de Bellechasse, 1979) e «Tigres» (Galerie de Bellechasse e Galeria 111, 1981 e 1982). Refira-se ainda «Um ano de desenho – quatro poetas no Metropolitano de Lisboa» - Camões, Bocage, Pessoa e Almada (Estação Alto dos Moinhos) em 1984 no CAM - Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian - que já em 1978 promovera a sua primeira exposição retrospetiva; além de «Ellipses» (Galerie de Bellechasse, Paris, 1984) e «Mascarados de Pirenópolis» (Galeria 111, ARCO, Madrid, 1988).

No começo da década de noventa, na sequência de uma estada no Alto Xingú, na Amazónia, realiza em 1990 as exposições «Los Indios» (Galeria 111, ARCO, Madrid) e «Les Indiens» (Galerie Georges Lavrov, Paris), a que se sucede «Pomar/Brasil», antologia organizada também pelo CAM da Gulbenkian e apresentada em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa. O Ministério da Cultura francês convida Júlio Pomar a realizar um retrato de Claude Lévi-Strauss, que precede o do presidente Mário Soares para a galeria oficial do Palácio de Belém (1991). Seguem-se as exposições «Pomar et la Littérature» (Charleroi, 1991), «Fables et Portraits» (Galerie Piltzer, Paris, 1994). A temática ficcional é retomada em «O Paraíso e Outras Histórias» (Culturgest, 1994) e «L’Année du cochon ou les méfaits du tabac» (Galerie Piltzer, 1996). A presença da Amazónia reaparece em «Les Joies de Vivre» (Galerie Piltzer, 1997) e «Les Indiens – Xingú 1988-1997» (Festival de Biarritz), enquanto a série “La Chasse au Snark” é mostrada em Paris (Galerie Piltzer, 1999) e em Nova Iorque (Salander-O’Reilly Gallery, 2000).

Trata-se de uma atividade intensa e de um permanente desejo de diversificação temática, que encontramos na repetição exaustiva, exigente e transformadora. Pomar recusou sempre a facilidade da expressão plástica. Nas suas múltiplas obras encontramos tigres, chapéus de chuva, macacos, retratos, mais ou menos explícitos; sendo clara a vontade de buscar as raízes culturais como em “Lusitânia no Bairro Latino – retratos de Mário de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso” de 1985, do mesmo modo que procura temas em fontes literárias e em matéria mitológica.

Apresenta «Pinturas Recentes», inéditas em Portugal, no Centro de Congressos de Aveiro em 2000. Regressa à Galeria 111 com a exposição «Os Três Efes – Fábulas, Farsas e Fintas» (2002), a que se sucedem «Trois travaux d’Hercule et quelques chansons réalistes» e «Méridiennes –Mères Indiennes» (Galerie Patrice Trigano, Paris, 2002 e 2004); «Fables et Fictions», esculturas e suas fotografias por Gérard Castello-Lopes (Galerie Le Violon Bleu, Sidi Bou-Said, Tunísia, 2004), que se prolonga em «A Razão das Coisas», assemblages e bronzes, fotografados por José M. Rodrigues, Serralves, Porto (2009). Marcelin Pleynet comissaria a exposição antológica no Sintra Museu de Arte Moderna – Coleção Berardo, designada «Autobiografia» (2004). As décadas recentes da obra de Júlio Pomar foram antologiadas por Hellmut Wohl no Centro Cultural de Belém em «A Comédia Humana». O Museu de Serralves, no Porto, incluiu numerosas assemblages inéditas na mostra «Cadeia da Relação», comissariada por João Fernandes (2008). Em 2009 expôs «Nouvelles aventures de Don Quixote et Trois (4) Tristes Tigres» (Galerie Patrice Trigano), e em 2012-13 apresenta «Atirar a albarda ao ar» na Cooperativa Árvore e na Galeria 111, Lisboa. Júlio Pomar é autor de “Catch: thèmes et variations”; “Discours sur la cécité du peintre”; “Et la peinture?”  (Éditions de la Différence), tendo os dois últimos sido traduzidos por Pedro Tamen com os títulos “Da Cegueira dos Pintores” (IN) e “Então e a Pintura?” (Dom Quixote); com duas coletâneas de poesias “Alguns Eventos” e “TRATAdo DITO e FEITO” (Dom Quixote). Júlio Pomar criou em 2004 a Fundação com o seu nome, tendo sido inaugurado o Atelier-Museu Júlio Pomar, criado pela Câmara Municipal de Lisboa, no edifício na Rua do Vale n.º 7, Mercês, com o projeto arquitetónico de reabilitação da autoria de Álvaro Siza. (Texto baseado na biografia do Atelier-Museu Júlio Pomar).

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  (XXVII) O TRAÇO DE ÁLVARO SIZA VIEIRA

 

Agora, o Porto, mas a pensar em Lisboa… Um contemporâneo acompanha-nos. Quando, na sequência do tremendo fogo do Chiado de 1988, houve que reconstruir o coração de Lisboa, foi lançado o desafio a Álvaro Siza Vieira o arquiteto aceitou, na condição de encontrar um novo conceito para o mais antigo dos lugares que formaram a Lisboa medieval. E houve quem se perguntasse: como seria possível a um portuense de gema ser chamado a reconstruir Lisboa? Sou testemunha da inteligência e do entusiasmo que animaram o arquiteto. Só quem não conhecia a história portuguesa, poderia duvidar desta solidariedade antiga entre as duas primeiras cidades portuguesas – aquele de onde houve nome Portugal e a capital dos Descobrimentos. Jaime Cortesão bem disse que o Porto é a nossa única cidade-estado e ao falar dos fatores democráticos na formação de Portugal lembrou que a revolução de 1383-1385 foi resultado de uma aliança forte e intrínseca entre as duas cidades, solidárias por natureza. Eis como fácil foi que o arquiteto do Porto tenha compreendido como ninguém a melhor estratégia para tornar viva de novo a cidade que a lenda diz ter sido fundada por Ulisses. E o resultado está bem à vista. O Chiado renasceu moderno e vivo, olhando para o futuro, graças ao traço de Siza.

 

Álvaro Siza Vieira nasceu em Matosinhos, à beira da Foz do Douro, filho do engenheiro Júlio Siza Vieira e de Cacilda Carneiro de Melo. Casou-se com a artista Maria Antónia Marinho Leite Siza Vieira (1940-1973), prematuramente falecida, tendo dois filhos. Entre 1949 e 1955 estudou na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, onde lecionou de 1966 a 1969 e depois de 1976. Adolf Loos, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto e Le Corbusier são referências do percurso profissional e artístico de Siza Vieira, podendo dizer-se que procedeu por essa influência à criação do que se designa como modernismo arquitetónico português. O primeiro destaque é sem dúvida a Casa de Chá da Boa Nova em Leça da Palmeira que é uma das joias do património cultural português. A ligação ao arquiteto Fernando Távora, mestre de Álvaro Siza, merece especial menção, já que a Escola do Porto tem em ambos referências pioneiras, até pela respetiva capacidade inovadora, com consequência além-fronteiras. Lembremo-nos dos exemplos das Piscinas de Marés (Leça da Palmeira), do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, da Igreja de Marco de Canaveses, da Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre). Além da América (Brasil e Estados Unidos) e da Ásia (Coreia do Sul), encontramos obras de Siza Vieira em Espanha, Países Baixos, Bélgica. São de sua autoria o Plano de Recuperação da Zona 5 de Schilderswijk (Haia), dos anos oitenta, os Blocos 6, 7 e 8 de Ceramique Terrain (Masstricht), o Centro Meteorológico da Vila Olímpica de Barcelona, o Centro Galego de Arte Contemporânea (Santiago de Compostela), o Café Moderno de Pontevedra, a Reitoria da Universidade de Alicante, o Pavilhão de Portugal na Expo-98 (Lisboa); o edifício Bounjour Tristesse (Berlim) ou a Fundação Nadir Afonso (Chaves). Não é possível dar uma lista completa das obras fundamentais do arquiteto português. Mas por exemplo sentimos especial emoção quando vemos o projeto Serpentine Pavillon em Kensington Park da autoria partilhada de Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura, onde encontramos a marca indiscutível da escola portuguesa da moderna arquitetura. A lista de prémios é impressionante, a começar no Prémio Pritzker da Fundação Hyatt pelo projeto de renovação da zona do Chiado e a continuar na medalha Alvar Aalto (1988), no Prémio de Arquitetura Contemporânea Mies van der Rohe, Prémio Nacional de Arquitetura (1993), Medalha de Ouro do Royal Institut of British Architects; Prémio Luso-espanhol de Arte e Cultura; Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza; Prémio Vida e Obra da Sociedade Portuguesa de Autores e Prémio Nacional de Arquitetura Espanhol.

O traço de Álvaro Siza é inconfundível. Não podemos falar da arquitetura contemporânea sem lembrar o seu caminho. A cidade e o património histórico encontram-se como projetos de perenidade!

GOM

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  (XXVI) A IRONIA DE ALEXANDRE O’NEILL

 

Alexandre O’Neill (1924-1986) foi entre nós um dos mais dotados artífices da escrita do português do último século. Em Caixadòclos definiu o seu autorretrato com especial culto da ironia. António Tabucchi salientava, aliás, a importância da cultura portuguesa do picaresco, do chiste e do anedótico, que teve no poeta expressão superlativa: «– Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / – Que és o esticalarica que se vê. / – Público em geral, acaso o meu nome... / – Vai mas é vender banha de cobra! / – Lisboa, meu berço, tu que me conheces... / – Este é dos que fala sozinho na rua... / – Campdòrique, então, não dizes nada? / – Ai tão silvatávares que ele vem hoje! / – Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / – É o do terceiro, nunca tem dinheiro... / – Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você... / – Dos dois ou três nomes que o surrealismo... / – Ah, agora sim, fazem-me justiça! / – Olha o caixadòclos todo satisfeito / a ler as notícias...» (Feira Cabisbaixa, 1965)

Quando nas comemorações do dia 10 de Junho de 1990, António Alçada Baptista anunciou a publicação das “Poesias Completas – 1951-1986” (Imprensa Nacional) fê-lo com a consciência plena de que homenageava um poeta singular que ajudou (e muito) à introspeção nacional, que traduz bem do carácter português. Uma ironia forte e subtil, o uso do escárnio e maldizer, desde os trovadores a Nicolau Tolentino, com linguagem de hoje, concedem a O’Neill um lugar especial na literatura. “Há mar e mar, há ir e voltar” – criou a fórmula mágica, mas viu recusada outra, por ser rebarbativa: “Vá de Metro, Satanás”. Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947) apesar de saudações sentidas a Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerava essencial não se levar muito a sério, demarcou-se de escolas e cartilhas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo como escola, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente. “No Reino da Dinamarca” (1958), vemo-lo seguir o próprio caminho – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!”. Há humor e mágoa, rir e roer… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…”. E em “Abandono Vigiado” (1960): “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento – como no jogo dos sinais ortográficos. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.

Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o seu programa, a que voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“se fosses só três sílabas”), diferença a diferença para chegar até nós (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. Como poderemos entender-nos sem ler o seu português castiço, que Tabucchi endeusava (como os sinais sonoros de Maria Parda). “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”…" E, em Um Adeus Português (1958), sente-se a força de uma cultura, que O’Neill entendeu como ninguém, onde lírica, tragédia e ironia se encontram sempre: “Nesta curva tão terna e lancinante / que vai ser que já é teu desaparecimento / digo-te adeus / e como um adolescente / tropeço de ternura / por ti». Do mesmo modo que a Peregrinação Interior de António Alçada tem Alexandre por marca: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado).

GOM

Oiçamos a voz do poeta!

 

 

 


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  (XXV) MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

 

Pode dizer-se que Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) é no conjunto multissecular da cultura portuguesa uma referência fundamenal e indiscutível. E tornou-se um autêntico símbolo artístico da contemporaneidade universalista. Falamos de uma artista plástica que se afirmou através de uma personalidade multifacetada, que soube interpretar os tempos difíceis e sombrios em que viveu, dando-lhes força positiva. E assim concedeu uma dimensão de eternidade a um período de violência e irracionalidade, que Maria Helena e seu marido Arpad Szenes souberam transformar em referências de humanidade e criatividade.  Nascida em 13 de junho de 1908, filha do Embaixador Marcos Vieira da Silva e de Maria da Graça Silva Graça, ficou orfã de pai com apenas três anos, sendo educada pela mãe, membro de uma família influente de Lisboa, filha do proprietário do jornal “O Século”. Estudou pintura em Portugal e foi para Paris, onde frequentou Belas-Artes depois de 1928. Em 1930 casou com o pintor húngaro Arpad Szenes (1897-1985), formando um casal marcante para as gerações artísticas do seu tempo. Maria Helena expõe no Salon de Paris em 1933 e, pela primeira vez, em Portugal dois anos depois.

 

A origem judaica de Arpad tornou-o alvo da perseguição do regime nazi, sendo obrigado a vir para Portugal e daqui a partir para o Brasil, por ambos serem apátridas, onde viveu até 1947, mantendo uma relação esteita e intensa com a intelectualidade do momento: Murillo Mendes, Saudade Cortesão, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jaime Cortesão, Agostinho da Silva. A presença no Brasil teve a maior importância pelo contacto com o modernismo e pela compreensão do significado do diálogo entre as artes e a literatura. Regressada a França, ainda na condição de apátrida, naturaliza-se francesa, com seu marido, sendo reconhecida pelos meios artísticos como uma das maiores pintoras europeias da sua geração. Tem uma atividade criativa extremamente fecunda na pintura, nas tapeçarias, nos vitrais para Reims, nas gravuras, ilustrações de livros infantis e cenários para o teatro. Além da atenção dos melhores críticos europeus e da admiração e amizade de André Malraux, a pintora merece a atenção da moderna investigação da História da Arte em Portugal, sob a coordenação de José-Augusto França. Em 1960 recebeu o grau de cavaleira da Ordem das Artes e Letras e em 1961 recebeu o grande prémio da Bienal de São Paulo (Brasil). Em 25 de abril de 1974 é de sua autoria, em ligação com Sophia de Mello Breyner, o cartaz “A Poesia está na Rua”. Em 1977 recebe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada.

 

“Ma Femme Chamada Bicho” de José Álvaro Morais (1978) é uma longa-metragem portuguesa, rodada em 1976, falada em francês e português, com a produção do Centro Português de Cinema para o Museu da Imagem e do Som, retrata a relação terna e fecunda entre Maria Helena e Arpad, enquanto dois grandes artistas, tendo o documentário o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Criada em sua honra, a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva tem sede em Lisboa no Jardim das Amoreiras. A estação do Metropolitano de Lisboa da Cidade Universitária tem azulejos de sua autoria, o mesmo acontecendo com a estação do Rato, na proximade da Fundação que tem seu nome, onde a memória de Vieira e Arpad está eternizada. Em 2019, o nome de Vieira da Silva foi atribuído a uma rua de Paris, situada no 14.º bairro, onde habitou e trabalhou durante vários anos. Na mesma altura, foram colocados na entrada de honra do Palácio do Eliseu, na qual o Presidente francês acolhe todos os Chefes de Estado e convidados de honra que o visitam, as pinturas “Jardins suspendus” (1955) e “Stèle” (1964), pertencentes ao espólio artístico e cultural do Governo Francês.

 

GOM

 

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   (XXIV) A LÍNGUA MIRANDESA

 

Hoje damos um salto a Miranda do Douro. É uma fronteira mágica, que vem de Alcanizes (1297) e que se forma de povos e de um encontro de duas línguas. José Leite de Vasconcelos, mestre dos mestres, dizia em 1882, para admiração de alguns: “Não é o Português a única língua usada em Portugal”. De que falava o erudito? Da língua mirandesa, cuja origem remonta ao período em que as Asturias e Leão desenvolveram no seu território um conjunto significativo de romances linguísticos, distintos de outros como o galaico-português ou o castelhano. A esse romance deu a tradição a designação de leonês, ainda que rigorosamente se deva designar como asturo-leonês, que ganhou importância em razão da Reconquista cristã. É certo que essas variedades do romance foram limitadas na sua influência uma vez que a língua usada pelos tabeliães e na documentação oficial era o latim. Só os idiomas correspondentes ao exercício de um poder forte e efetivo (como no futuro reino de Leão e Castela ou em Portugal) estabeleceram normas unificadoras. Mesmo assim é possível encontrar testemunhos escritos desse grupo linguístico asturo-leonês. A perda de influência política do hoje Principado das Astúrias e do antigo reino de Leão levou à absorção pelo Reino de Castela, a partir do século XIII (1230), da identidade linguística asturo-leonesa, que no entanto manteve vestígios, como no caso do mirandês, como variedade do leonês ocidental.

Quais as razões para a persistência mirandesa? O facto do nordeste transmontano estar fora do convento romano de Bracara Augusta, mas em Asturica Augusta; a pertença da Terra de Miranda à diocese de Astorga (até ao século XII); a não pertença da região de Bragança ao condado de Portugale; a colonização leonesa nesta região, como se vê nas Inquirições de D. Afonso III, mercê da ação dos mosteiros de Santa Maria de Moruela, S. Martinho de Castanheda, de Castro de Avelãs e dos Templarios de Alcanizes; a ligação leonesa a Miranda; e o isolamento da região, muito mais ligada económica e administrativamente a Leão e Castela.

Para ilustração do que dizemos, transcrevemos o texto que o deputado Júlio Meirinhos apresentou em 1998 na Assembleia da República para justificar a decisão de reconhecer os direitos linguísticos do mirandês: «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yé de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta com uito séclos de ejistência. Sien se subreponer a la ‘lhéngua fidalga i grabe’ l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba. Saliu de l absedo i de l cenceinho na que bibiu tantos anhos. Deixou de s’acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume de l’alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Perués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual.»

À língua mirandesa corresponde uma cultura bem característica. Por exemplo, a dança dos Pauliteiros vem das raízes indo-europeias da dança das espadas, mas também devemos lembrar as danças paralelas e de roda, que encontramos noutras zonas europeias onde se faz sentir o fundo céltico, além das “cantigas de segada e demais rimances”, sem esquecer as cantigas dos ciclos da lã, do linho e das mondas, as cantigas de ronda; os jogos de roda e os cânticos  religiosos das mais importantes festividades (como Natal, Reis, Carnaval e Páscoa). E não podemos esquecer o teatro, com os populares “colóquios”, ao ar livre, em dias de festa, de inspiração religiosa e profana.

Em memória de Amadeu Ferreira (1950-2015), grande jurista, escritor e estudioso do mirandês, que chegou a manter uma muito apreciada crónica nessa língua no Centro Nacional de Cultura (partilhada com o jornal Público), juntamos uma série de provérbios mirandeses. Pode dizer-se que sem o entusiamo de Amadeu Ferreira e a sua determinação não teria sido possível consagrar o mirandês como língua oficial da República Portuguesa. Naturalmente que há um desafio muito exigente que tem de ser assumido e assegurado, já que sem a aprendizagem e o culto do mirandês, o idioma será mais um à beira de extinção. Eis por que consideramos esta questão como da maior relevância para a afirmação e perenidade da cultura portuguesa.

E eis os provérbios, que compreendemos tão bem, e que muito chegados nos são!

“A quien pineira i amassa / nun le fura la fogaça”.

“Las forfalhicas de l cerron / pa la tarde buônas son”.

“Mais bale um paixarico na mano / que dous a bolar”.

“Pan i bino, / anda camino”.

“Quien cuônta un cuônto / acrescénta un puônto”.

“Cesteiro que fai un ciesto / fai un ciênto, / Dando-le berga i tiêmpo”.

“Malo háia qien mal de mi diç: / Malo háia quien me lo chega al nariç”.

“Nun te fies na perro que nun lhadra, / Nin na home que nun fala”.

Antre primos i armanos / Nun metas las manos.”

“Filho sós, / Pai serás, / Cumo fazires, / Assim acharás”.

 

GOM

 

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   (XXIII) VOLTANDO À CASA DE PASCOAES

 

Como nos aconselhou Garrett, continuamos a deambular ora pelas terras ora pelo nosso quarto, como Xavier de Maistre, porque “o prazer que se encontra em viajar dentro do seu quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos homens e não depende da fortuna”…  E voltamos a encontrar Teixeira de Pascoaes, não tanto o da “Arte de Ser Português”, mas o inesgotável poeta que soube unir, como salientou Unamuno, a lírica e a tragédia. Nascido a 2 de novembro de 1877 na freguesia de São Gonçalo de Amarante, morreu a 14 de dezembro de 1952 no Solar de Pascoaes em Gatão. Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos era filho de Carlota Guedes Monteiro e de João Pereira Teixeira de Vasconcelos, deputado às Cortes por Amarante e agricultor de boa fazenda e inesgotável conversador, conhecedor profundo das raízes culturais da língua e do povo. O filho era "homem cabisbaixo, sisudo, com uns olhos tristes e espantados", que fez o curso oficial no Liceu de Amarante, onde teve os seus primeiros versos publicados no "Flor do Tâmega", partindo em 1896 com 18 anos, para Coimbra, para cursar Direito. Ainda nas margens do Tâmega, com 17 anos, publicou no Porto "Embriões" (1895). E em 1896, já a estudar em Coimbra, editou "Bello", "Sempre" e "Terra Proibida", onde Jacinto do Prado Coelho já nota “a imaginação do abstrato, o sentimento religioso das coisas, que tornariam inconfundível a sua poesia".

 

Convive com Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, Fausto Guedes Teixeira e João Lúcio, mas não vive a boémia coimbrã, já que, segundo Jacinto do Prado Coelho, «o verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo." Em Amarante, começa a exercer advocacia. Em 1906, abre escritório na Cidade do Porto, onde conhece Leonardo Coimbra, Raul Brandão, Jaime Cortesão e António Patrício. Em 1911, é nomeado juiz substituto em Amarante, cargo que abandonará, refugiando-se na Casa de Pascoaes, buscando uma vida solitária e sem sobressaltos, em sintonia com a Natureza, escolhendo "só ser poeta". Depois de 5 de outubro de 1910, com a proclamação da República, participou ativamente na ideia de ressuscitar a Pátria, arrancando-a do túmulo da obscuridade física e moral “em que os corpos definharam e as almas amorteceram”. Assim, Pascoaes dirigirá a revista "A Águia," entre 1912 e 1916, à frente de um grupo de intelectuais portuenses, sob a bandeira da “Renascença Portuguesa”, no qual se distinguem António Carneiro, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Álvaro Pinto e Mário Beirão. A ideia de saudosismo, de uma saudade feita de lembrança e desejo, havia sido agravada pelo Ultimato inglês de 11 de janeiro de 1890. De algum modo, Pascoaes é um herdeiro da Geração de 70, procurando dar ao progresso geral da humanidade e da natureza uma orientação natural e positiva através da História, subjacente aos "vencidos da vida", elevando o culto da saudade e da sua essência espiritual, que considera arreigado na literatura lusitana, desde os trovadores, de D. Duarte ou de Bernardim.

 

O saudosismo não é, porém, marca única de Pascoaes. Veja-se, por isso, a relação do poeta de Amarante com os seus contemporâneos, segundo Onésimo Teotónio de Almeida. «Fernando Pessoa viu em Pascoaes uma “gravidez do Divino” e adotou várias facetas da sua visão ao elaborar o projeto da Mensagem». E António Sérgio distinguiu em Pascoaes sempre o poeta das ideias mítico-filosóficas. Tratando-o sempre com dignidade. Quase quarenta anos após a polémica do saudosismo, a Academia de Coimbra homenageou Teixeira de Pascoaes através de um volume reunindo poemas e estudos sobre o autor de Marânus. O organizador do volume, Joaquim de Montezuma de Carvalho, convidou António Sérgio a participar e este acedeu prontamente, para não faltar numa homenagem “tão justa”. Se tinha levantado reparos ao nacionalismo estético-psicológico-político, criou-se a lenda de Sérgio ser adverso “a um eloquentíssimo poeta que sempre admirei e amei”.

 

A intelectualidade portuguesa rodeava Sérgio, e nos seus ensinamentos bebia inspiração para a almejada transformação da mentalidade do país. Se não custava a Sérgio ser magnânimo, não era obrigatório que o fosse. As verdadeiras razões da sua participação na homenagem são-nos, todavia, fornecidas pelo próprio António Sérgio em curtos mas lapidares parágrafos. Sérgio considera que o maior defeito do nacionalismo estético de Pascoaes é ser muito injusto para o próprio poeta, por esbater nele o que há de mais “valioso e intrínseco”, algo mesmo excecional na poesia portuguesa, profundamente marcada pela melancolia. Em contracorrente, Pascoaes é “o mais romântico de todos os escritores portugueses na modalidade mais nórdica que o alto romantismo assumiu”. Além disso, a sua poesia é “um protesto contra o Deus demiúrgico, contra a Divindade criadora do Testamento Antigo”. “As dores de quem sente, Pascoaes transfere-as por imaginação para o conjunto das coisas que espontaneamente humaniza”, o que é também invulgar na nossa lírica. “Em tal grau se dá nele a transmigração para as coisas, que nos poemas mais íntimos, de mais autêntico lirismo, ele se esquece dos homens como seres individuais e distintos, como mais próximos do poeta, reduzindo-os a elementos do grande ambiente físico, que é a personagem capital da sua obra poética; e de aí o aparecimento deste verso estranho, à primeira vista inumano: “as pessoas são nada, e as coisas tudo”. O supostamente positivista Sérgio “revela a sua idiososincrásica luminosidade, separando de modo clarividente o que se analisa à luz da razão, do pertencente a esferas íntimas do espírito humano, sempre conservando a serenidade e o discernimento necessários para reconhecer a diferença” – como salienta Onésimo T. Almeida (A Saudade e os Saudosistas – Uma Revisitação da Polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, Via Atlântica, n.º 7, outubro 2004).

GOM

 

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