Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 16 a 22 de abril de 2018.

 

António Tabucchi descobriu Portugal, um dia na Gare de Lyon, em Paris, através de uma tradução de “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, por Pierre Hourcade.

 

UM ENCONTRO INESPERADO

António vinha para Itália e esse encontro marcou a sua vida. Depois, tudo o aproximou de Portugal: a literatura, a família, as cidades, as letras e as artes. A sua aldeia lisboeta foi a Rua do Monte Olivete, num lugar de tantas recordações literárias – Ruben A., Alexandre O’Neill… E a sua obra é um acervo fantástico de um europeu autêntico, cosmopolita, sedento de encontros e diálogos. Quando lemos em Sonhos de Sonhos (1982) o que dedica a Fernando Pessoa, poeta e fingidor, podemos perceber um pouco o significado de uma empatia. “Na noite de sete de Março de 1914, Fernando Pessoa, poeta e fingidor, sonhou que acordava. Tomou café no seu pequeno quarto alugado, fez a barba e vestiu-se com esmero…”. Depois, chegou à estação do Rossio e partiu para Santarém. No comboio encontrou a mãe que não era a mãe e depressa se viu chegado ao destino esperado e numa tipoia em direção à casa de Alberto Caeiro. O cocheiro sabia bem onde era esse lugar e conhecia o senhor Caeiro. Mas, num ápice, já estavam na África do Sul. Ao chegar à casa, descobriu inesperadamente que Caeiro era o Headmaster Nicholas, o seu professor da High School. E a misteriosa personagem apressou-se a revelar que era a parte mais profunda de si, a sua parte obscura – “por isso sou seu mestre”. E a orientação era clara: “terá de escutar-me, deverá ter a coragem de escutar esta voz, se quer ser um grande poeta”… No princípio do encontro Fernando era apenas um rapazinho com calças à marinheiro. Agora já regressara à condição de adulto. O essencial estava definido. E apenas pediu ao cocheiro que o levasse ao fim do sonho. Era o dia triunfal da sua vida… Pode discutir-se se, afinal, foi num dia apenas que tudo aconteceu, a partir do “Guardador de Rebanhos”, isso é tema de especialistas, o certo é que esse foi o ápice crucial – e sem ele não podemos compreender a força da criação.

 

PEREIRA COMO METÁFORA FORTE
Ao lermos Afirma Pereira (1994) e A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro (1997) compreendemos que o escritor é vigorosa e humanamente crítico. Em Afirma Pereira há uma metáfora forte, em que o ano de 1938 não é um tempo confinado ao passado, mas uma realidade atual de alertas e preocupações. Monteiro Rossi, a namorada e o Dr. Cardoso, invocando a “confederação de almas”, mas sobretudo Pereira são exemplos de que o conformismo e a indiferença têm limites. Bernanos mudou ao tomar contacto com a barbárie em Espanha. Pereira vai mudando. Tabucchi afirma-se, para além de rótulos, apenas democrata. Como disse a Maria João Seixas (Público, 3.4.2000): “aquele sistema que os senhores de Atenas inventaram de se pôr uma cruzinha num caco de uma bilha, para depois se juntarem todos os pedacinhos e serem contados, esse sistema a que chamaram democracia é o melhor que até agora se inventou”. As utopias respeitava-as, desde Tommaso Campanella a Thomas More até aos escravos brasileiros que fugiram para a Amazónia – mas com cautela, já que fazem parte dos nossos desejos e sonhos. O homem tem de sonhar, sobretudo de olhos abertos. O sonho é motor da história, porque somos seres desejantes – o que lembra Spinoza sobre a necessidade de se fortalecer a alma coletiva. Por isso a luta do povo de Timor Leste foi exemplar, porque permitiu à democracia vencer, apesar de tudo… Nesta perspetiva, centrada na liberdade igual e na igualdade livre (que Norberto Bobbio sempre defendeu), era um defensor das minorias: “a nossa civilização, esta, a nossa, ocidental, não seria o que é, sem as várias minorias que a atravessam e compõem”… Por isso, via com preocupação as tendências populistas, na medida em que caiam na tentação de uniformizar tudo e de fazer da vontade geral um modo a subalternizar os poderes e contrapoderes, o pluralismo e a diversidade, que são a seiva fecunda da democracia. É importante a governabilidade se não esquecer a legitimidade do exercício, ou seja, o permanente respeito pela justiça.

 

RECORDAR “O PRANTO DE MARIA PARDA”
E sobre Portugal? Tabucchi foi um analista arguto da nossa cultura, pondo-nos de sobreaviso relativamente às simplificações e caricaturas. Voltamos à entrevista de Maria João Seixas, que lhe perguntava se seremos essencialmente líricos? Não só, disse, mas também bucólicos, não podemos esquecer a “comoção da alma lusitana” – ou seja, a “saudade”, mas o ensaísta não torna a saudade um estereótipo, seguindo o alerta de Antero de Quental. A lírica, o bucolismo e a dimensão épica têm de ser consideradas no seu conjunto. Contudo, para si a definição da “alma portuguesa” não pode esquecer o lado picaresco. Leia-se a linha que nos leva de Gil Vicente ou de Fernão Mendes Pinto até Dinis Machado de O que diz Molero. Aí está o português trocista, cultor do trocadilho e da anedota. Para escândalo de alguns, citou no “Die Zeit”, em 1997, o Pranto de Maria Parda, de Mestre Gil, onde ela diz “cada traque que eu dou é um suspiro de saudade”. De facto, como ensinou Jorge de Sena, há também uma anti-saudade que faz parte de nós portugueses, “desde as cantigas de escárnio e maldizer, consideradas, intelectual e institucionalmente, como um parente pobre das cantigas de amigo”. José Cardoso Pires concordou plenamente com esse entendimento. “Há nos portugueses um veio pícaro, um escárnio sempre presente, uma maldadezinha, um tom mais baixo, rabelaisiano”. Em Gil Vicente, “o que se escolhe habitualmente são os Autos, os do ‘sublime’. E foge-se das comédias e das farsas, onde há personagens que cheiram mal, andam rotas, sem eira nem beira, como Maria Parda”. Falando do “sublime”, dizia que apenas o tomava homeopaticamente, “porque se pode ter, com muita facilidade, uma indigestão e ficar enjoado do ‘sublime’” – e referia os poetas místicos como detentores da “chave misteriosa” que dá acesso “desenjoado e desenjoativo” aos banquetes do ‘sublime’… O analista da nossa cultura pôde assim compreender a complexidade de um cadinho cultural muito rico e pleno de vias de conceitos impossíveis de conter em meia dúzia de ideias redutoras… Não nos esqueçamos ainda dos alertas que fez relativamente à noção de lusofonia. Escreveu no “Le Monde” um texto emblemático, que intitulou de “Suspeita Lusofonia” (18.3.2000), onde dizia que Portugal, tendo perdido o seu império e as suas colónias, pode encontrar nessa ideia um terreno fértil para “uma invenção metahistórica” que funciona no imaginário coletivo como um sucedâneo do passado. Há, por isso, que contruir uma nova relação de igualdade e de intercâmbio, capaz de considerar o diálogo intercultural como multipolar, heterogéneo e complementar – sem paternalismos nem dependências. Pode pois dizer-se que a atitude de Tabucchi constitui um modo maduro e consistente para afirmar o mundo diverso da língua portuguesa, como um caleidoscópio composto por várias culturas e por uma extraordinária capacidade de recriação e de enriquecimento mútuo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença