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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Antero de Quental

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“A medicina já não me receita outra coisa senão viagens


Noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.

Veneza a muito bela das cidades da Europa Meridional. Veneza aquela a que os italianos sentiam como a soave austero.

Neste livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, este novo texto, híbrido, entre tradução e «transplantação», quando Antero nos diz no ensaio sobre tradução, que, tradução é mais que transplantação, Veneza era plácida, e passaremos sempre a entendê-la não como Thomas George Bonney, a descreveu, mas necessariamente como o resultado de um novo livro de Antero, uma «transplantação» com inúmeros trechos da sua própria autoria.

Assim, Veneza, era a cidade à qual o viajante sempre chegava com a sensação de caminheiro e ali se perfumaria numa preguiça indolente e indolentemente cismava uma cisma entre pombas mansas e a falta de solo; entre o espanto da fisionomia latina, bizantina, ocidental e oriental e enfim maometana.

A importância da situação geográfica e política de Veneza durante toda a Idade-Média foi o que a tornou mediadora inteligente entre civilizações hostis. E continua: Veneza, apesar de decadente, é ainda bela.

Diria que ao ler este livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, esta beleza de Veneza surge-nos muito explicitamente de um monte de ilhas onde assentava a relação com Constantinopla, Egipto, Síria, Creta, Chipre, enfim um Rialto de mãos de génio, sendo o governo nos primeiros séculos pura democracia. Diria que saber que que o Doge era magistrado e não senhor sob pena de o expulsarem ou executarem, é como atesta Antero a consciência de que se vive como perdidos em estados tão grandes, que desconhecemos a coragem que implicava a simples e reduzida cidade ter em si a força criadora e inventiva de um poder e de uma arte tão própria quanto a da arquitetura veneziana.

E, como já dissemos pelas palavras do que lemos

noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.

Fazem-me sentir estas palavras que só se assim for, se poderá iniciar a razão profunda e até íntima da razão e da elegância de Veneza desta forma ser. Afirma-se que o Canal Grande é para Veneza o que são para Paris a rua Rivoli, o Corso para Roma ou Regent-Street para Londres, e ao espreitarmos por uma gôndola lá está o Palazzo Cavalli ou a poética Ponte dos Suspiros sobre movediço chão, em corredor de ligação à prisão Estado de Veneza. São Marcos fantástico!, magistral!, e a Força e a Justiça em duas mulheres de mármore a ladeá-lo e de cujas mãos o Doge recebia a espada do governo.

E assim se diz também que por toda a parte Veneza é rainha de portas sarracenas e que se entre nela humildemente pois que não há maior contraste que os olhos possam ver. E tantos são os contrastes que noutra parte pareceriam disparatados, filhos de inabilidades, e aqui, aqui harmonizam-se, fundem-se ou o artista medieval não tivesse o sentimento do conjunto.
E eis como um dia o artista com a liberdade e o poder da Renascença denuncia a sua energia com Bramante ou com Miguel Ângelo.  E não descuida Quental que o mal, o defeito da Renascença, ou antes do movimento saído da Renascença, depois de esgotado o seu impulso primeiro e genial, foi a superstição da antiguidade, das regras clássicas, o culto do convencional.

A destreza com que o gondoleiro maneja o remo chamado fercola por canais estreitíssimos, é admirável, e o encanto do viajante é o desespero do arqueólogo na confusão de estilos ao gosto veneziano que permitem mulher formosa a cada janela rendilhada.

E do livro:

Em Veneza tudo fala do passado, por conseguinte da morte. E o que é a história, essa agitação de efémeros, durante um momento, entre duas eternidades? 

É irónico que Antero de Quental nunca tenha visitado a cidade dos doges.

Ainda hoje parte do espólio de Quental se encontra na Biblioteca Marciana de Veneza.

Antero um dos notáveis da nossa literatura.

Para mim, este livro de um cuidado e beleza indizíveis, acolhe em jeito de segredo aquele que sempre soube que o tempo continua a ser o de chegar a Veneza por mar, esse mesmo que muito tem segurado por lá as canções silenciosas que batem à porta do coração.  

 


Teresa Bracinha Vieira

 

Obs: Este livro magnífico teve a organização, introdução e notas de Andrea Senior. Giorgia Casara na revisão e Mariana Pinto dos Santos na atualização da grafia e na revisão. A todas agradeço  por este magnifico trabalho, e expresso o meu contentamento especial  à Pianola Editores por esta luz em 2015.

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