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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ATORES, ENCENADORES - LXVII

 

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NOVA REFERÊNCIA A DAVID MOURÃO-FERREIRA ATOR

No ano passado publiquei nesta série uma primeira evocação de David Mourão- Ferreira ator, no quadro específico de juventude e sobretudo de experimentalismo na atividade cénica. E desde logo evoquei a sua tábua dramatúrgica, com destaque para as peças então conhecidas, mesmo que não publicadas ou representadas: “Isolda” (1948), “Contrabando” (1956) e “O Irmão” (1955-1988).

Nessa análise que em parte se retoma e completa, procurei definir um critério de seletividade que claramente se aplica à crónica presente: pois por um lado temos aqui evocações e referência a atores e encenadores “profissionais” no sentido do exercício constante e dominante da atividade; e por outro lado, evocações e referências a personalidades destacadas do meio artístico, literária e até político, que marcaram também, na obra e no talento, a vida cultural-teatral e do espetáculo.

Refiro pois, a propósito, um livro muito recente, que analisa com larguíssimo detalhe (mais de 800 paginas) a vida e a obra de David Mourão- Ferreira, no 20º aniversário da sua morte, dando o devido destaque à criação dramatúrgica, no sentido amplo do termo, mas também à sua atuação como diretor e como ator. “Clave de Sol – Chave de Sombra – Memória e Inquietude de David Mourão Ferreira”, assim se intitula o livro, da autoria de Teresa Martins Marques (Âncora Ed. 2016). Estudo exaustivo sobre a vida e a obra, de que ainda não terminei a leitura e ao qual voltaremos: mas, desde já se diga, estudo de grande qualidade, analisa a criação dramatúrgica mas também as intervenções como ator e animador de iniciativas teatrais.

 De facto, como já vimos, David Mourão Ferreira é um exemplo flagrante de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro- espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, repita-se, conciliado com a escrita e a produção das peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.

Citei nessa área especifica da criação teatral “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, como já aqui se evocou, peça nunca publicada, mas à qual se se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, com sucessivos nomes, até à versão e edição definitiva em 1988.

O livro de Teresa Martins Marques analisa estas peças e refere ainda os seguintes títulos, além de esboços e intenções: “O(s) Amor(es)  de Carlos”, possivelmente esboçada a partir de 1936, o que é notável de precocidade,  “O Intrujão”, referenciada  postumamente, “Cada Qual tem os seus Dramas” (1945), escrita para a rádio em coautoria com José Rabaça, “O Sétimo Dia da Criação”(1948), e “O Crime” (1965). E acrescem esboços, traduções, diálogos e adaptações diversas à cena e ao cinema.

Esta dramaturgia concilia aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente encontramos, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referência permanente a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social, num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem, como já referi, diretamente ligadas a versões cinematográficas e/ou televisivas da sua ficção e mesmo intervenções diretas, área que poderá ser desenvolvida.

 Já aqui vimos que em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG publicou um vasto memorial sobre David Mourão Ferreira, em que colaborarei, e que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David à escritora Graziana Somai. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor, então assinando David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Exma. Sr.ª Professora D. Carmen”.

E novamente assinalo que este escritor de obra imensa e variada, foi ator em várias temporadas e em vários palcos, a partir do Teatro Estúdio do Salitre em 1949 e anos seguintes. E não se reduz a mera aventura amadorística esta companhia dirigida, já o vimos, por Gino Saviotti. Teresa Martins Marques identifica o elenco que, juntamente com David, integrou os espetáculos do TES em 1949: Ruy de Carvalho, Armando Cortez, Rogério Paulo, Cecília Guimarães, Ricardo Alberty, Luís Horta – nada menos! E foi ainda ator esporádico em outras produções e em outros espetáculos.

E surge também como ator em versões e encenações das suas próprias obras. Cito especialmente a “auto-interpretação” do seu próprio personagem na minissérie produzida pela RTP em 1991, a partir do romance de David “O Amor Feliz” (1986). Mas já agora se diga que a sua regular intervenção televisiva, durante décadas, em sucessivos programas de análise cultural e literária, revelam a capacidade de comunicação cénica e televisiva absolutamente excecional.   

Ouçamos então novamente, a esse respeito as suas recordações na entrevista citada:

“Comecei por participar num grupo de teatro da própria Faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) Isolda e Contrabando. Entrei como ator em peças da Commedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”….

No artigo que publiquei na revista Colóquio citada, identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão-Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.

  Recordo que David Mourão- Ferreira me referiu a intenção de escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett. Ora, já tive ensejo de assinalar que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária pessoal e até politica: ambos foram grandes escritores, ambos foram inovadores, ambos serviram o Estado e o público, ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências.

E já agora: ambos foram veementes na controvérsia acerca das obras respetivas… E nesse sentido, transcrevo aqui a “critica à crítica” com que David Mourão- Ferreira, escrevendo aliás a seu respeito na terceira pessoa, incluiu nas “Notas do Autor” com que encerra a 2ª edição da peça “O Irmão” (Guimarães Editores -1988)

“Não se lhe afigura (a ele, DMF) sequer admissível, no caso pouco provável de poderá esta peça ir a suscitar a atenção de qualquer encenador, que sobre ela se exerçam aquelas hoje em dia habituais violências e atrocidades que, sob a pomposa designação de «trabalho dramatúrgico» muitas vezes não correspondem mais (existem exceções) que a vingativas formas de impotência criadora ou ao simples propósito de parasitariamente se meter o bedelho onde não se é chamado.”…! 

 

Duarte Ivo Cruz