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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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      Minha Princesa de mim:

Recordo ainda muito bem a celebração, em casa de meus Avós maternos, em Bruxelas, da festa de São Nicolau, a 6 de Dezembro, há mais de seis décadas. Na altura, mesmo nas Flandres e Países Baixos, já se ia transferindo para o dia de Natal o hábito imperativo de dar presentes e mimos às crianças, tal como se usava noutros países, incluindo Portugal. Lembro-me de que, por cá, na pátria que, pelo casamento, adoptara, minha Mãe montava um presépio no tal dia 6, em frente do qual, no princípio de um caminho, colocava dois pastores, cada um carregando o seu borrego, que nos representavam, a meu irmão e a mim. Depois, todos os dias, os fazia avançar, em direcção ao Menino, cada  um deles com a rapidez conforme ao nosso melhor ou pior comportamento... E, assim, lá nos íamos esforçando pela recompensa que, no dia 25, Jesus nos traria. Mas, em Bruxelas, no Natal, havia apenas a celebração religiosa e  o ágape familiar: os presentes, já São Nicolau no-los trouxera, de barba branca e vestido de bispo. Esse benfeitor da criançada - em língua flamenga conhecido por Sinterklaas (de Sint Niklaas, São Nicolau) - foi o antepassado do famigerado Pai Natal, em língua portuguesa também conhecido por Papai Noel! Na verdade, foi pelo século XVII, quando holandeses fundaram Niewe Amsterdam (hoje New York), que no novo mundo apareceu o Sinterklaas, mais tarde inglesado para Santa Claus. Ali, finalmente, no século XIX, o dito santo, trocou as vestes episcopais por gorro e casacão mais confortáveis e, guiando um trenó puxado por renas, ia estacionando pelas casas com crianças, descia pelas chaminés das lareiras, e punha regalos nas meias lá penduradas... E já não o fazia em data própria, mas na noite de 24 para 25 de Dezembro, assim unindo duas tradições. Mas olha bem, Princesa  -  tu que serás sempre menina, muito menina e moça  --  para este velho também de barba encanecida, que te vai contar um passo da vida e lenda de Nicolau de Myra, tal como o leu na Legenda Aurea de frei Tiago Voragino, dominicano medievo e arcebispo de Génova. Filho de pais ricos e santos  -  Epifânio e Joana, cidadãos de Patras  --  Nicolau, logo desde o dia do seu primeiro banho, aguentou-se de pé na banheira. Além disso, só mamava o seio às quartas e sextas. Feito rapaz, fugia dos prazeres sujos, tão queridos dos outros jovens, e gastava a soleira das portas das igrejas. Guardava na memória tudo o que pudesse apanhar das Sagradas Escrituras. E quando seus pais morreram, pensou que poderia dispor dessa abundância de riquezas, não para honra humana, mas para  glória de Deus. Ora, um dos seus vizinhos, um homem todavia bastante nobre, viu-se obrigado, pela pobreza, a prostituir as suas três filhas virgens, para poder sobreviver graças a esse infame comércio. O santo soube disso e, tremendo de horror diante de tal crime, atirou para dentro da janela do vizinho uma grande quantidade de dinheiro embrulhado num pano. Na manhã seguinte, quando acordou, o homem encontrou essa massa de ouro e pôde celebrar as bodas da sua filha mais velha, dando graças a Deus. Pouco tempo depois, o servidor de Deus renovou o seu acto. Tendo achado esse ouro, e após muitas acções de graça, o homem decidiu manter-se vigilante, a fim de descobrir quem assim o arrancava à miséria. Dias depois, o santo atirou para aquela casa uma soma de oiro ainda maior. Ao barulho do choque, o vizinho levantou-se e foi atrás de Nicolau, que fugia, dizendo-lhe: "Para e não escapes ao nosso olhar!" E acorrendo depressa reconheceu Nicolau. Atirou-se ao chão e quis beijar-lhe os pés; o santo desviou-se e obrigou-o a prometer-lhe que não tornaria público este episódio, enquanto ele fosse vivo. Aí tens, Princesa, os primeiros presentes do Pai Natal, dados através de uma janela aberta, assim poupando ao mensageiro de Deus a descida fuliginosa e escura pelo cano de uma chaminé... Todavia, a coberto da noite, e sem quebra de segredo, pois só Deus sabe onde deixa cair a sua graça. Mas quantos pais natais, perguntarás, desses que hoje por aí pululam, não serão  --  afinal e bem pelo contrário  --  sinais publicitários de marcas e vendedores? Será que a nossa cultura materialista vai apagando o sabor secreto que a nossa alma tem da dádiva gratuita, da graça generosa e livre? Este beijinho é de graça
 

                                                 Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira