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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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            Minha Princesa de mim:

 

Logo a abrir o seu Sermão do Bom Ladrão, pregado na igreja da Misericórdia de Lisboa em 1655, um século antes do grande terramoto, o padre António Vieira faz observar que o mesmo não se prega na Capela Real, parecia-me a mim que lá se devia pregar e não aqui. E, depois de explicar o significado essencial do relato evangélico "Senhor, lembra-te de mim quando chegares ao teu Reino. - Hoje estarás comigo no Paraíso" (Lucas 23, 42 e 43), dirá: Levarem os reis consigo ao Paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu Reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei. Mas o que vemos praticar em todos os reinos do Mundo, é tanto pelo contrário, que em vez dos reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao Inferno. Voltarei já ao padre António Vieira, mas ocorreu-me agora aquele passo da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de Sousa (Manuel de Sousa Coutinho), de que em antiga carta te falei e seguidamente voltarei a transcrever. Antes, porém, lembro que o escritor e frade dominicano, nascido em 1555, um século antes do sermão acima encetado, foi considerado, pelo próprio jesuíta António Vieira, um mestre cujo estilo é claro com brevidade, discreto sem afetação, copioso sem redundância, e tão corrente, fácil e notável que, enriquecendo a memória, não cansa o entendimento. Talvez por essas razões, Almeida Garrett, já no século XIX, considerará frei Luís de Sousa o mais perfeito prosador da língua. Passo a citar o tal trecho da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, quando, em tempos conciliares (Trento), o papa, em Roma, convida o frade arcebispo de Braga: Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia ele lá na sua Braga uns paços como aqueles?  - Santíssimo padre  --  respondeu o arcebispo  --  não é de minha condição ocupar-me em edifícios que o tempo gasta. ... Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse:  -- Pois que vos parece destas minhas obras? ... Então, com maior energia, respondeu:  - O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta todo o cabedal de seus poderes. Regressado ao sermão do padre Vieira, reparo na narrativa que faz daquele episódio em que Alexandro Magno, quando lhe trazem um pirata capturado, o repreende muito de andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim:  - "Basta, Senhor, que eu, porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?". Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza. E cita Séneca, que dissera terem o mesmo lugar e merecerem o mesmo nome ladrão, pirata como rei. E acrescenta: Quando li isto em Séneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos, em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina... Adiante recorre a S. Basílio Magno: "Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos". Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam... Para compor ainda esta inspiração que me vem de dois dos vultos maiores da língua portuguesa, vou ao Sermão da Dominga Vigésima Segunda, que António Vieira pregou no Maranhão, para trazer esta pérola: Isso quis significar o provérbio dos Antigos, quando disseram que a imagem de Mercúrio não se faz de qualquer madeiro: Non ex quolibet ligno fit Mercurius. E porque mais a imagem de Mercúrio que a de Júpiter, que era entre os Deuses a primeira e mais alta soberania?  -- Porque Júpiter era Deus do poder, Mercúrio da sabedoria e prudência; e a majestade do poder qualquer a pode representar facilmente; as ações, porém, da sabedoria e prudência são mui poucos os que sejam capazes de as compor e exercitar, como elas requerem. Mais fácil é parecer Júpiter que Mercúrio. Quando S. Paulo e S. Barnabé entraram em Licaónia, admirados aqueles gentios do que viam em ambos, disseram que os Deuses em semelhança de homens tinham descido do Céu à sua cidade, e a Barnabé chamavam Júpiter e a Paulo Mercúrio. Mas se Paulo, por tantas e tão excelentes prerrogativas era maior que Barnabé, porque deram a Barnabé e não a Paulo o nome de Júpiter, e a Paulo e não a Barnabé o de Mercúrio? Porque Barnabé excedia na estatura e majestade da pessoa, Paulo na eloquência, na sabedoria e na doutrina. E a representação da sabedoria requer muito maior cabedal e muito maior homem que a da majestade. Sabes, Princesa de mim, como procuro seguir o espírito clássico, e tanto admiro os nossos maiores, pela clareza dos propósitos e a justeza dos discursos que os veiculam. Não é só, nem sobretudo, por amor à forma  -  esta até pode disfarçar conteúdos vazios ou levianos  -  mas por julgar que o rigor na articulação de ideias e sentimentos (disso a que me apraz chamar o pensarsentir) e a transparência da sua expressão escorreita servem a sua verdade moral, isto é, a sua sinceridade e boa intenção. Em debates públicos, por exemplo, abusa-se hoje muito de ataques ad hominem e processos de intenção, em prejuízo evidente da apresentação e discussão de ideias, projetos e mesmo críticas. Confundem-se estas com "dizer mal", quando o exercício do verdadeiro espírito crítico é interpelar e interrogar, promover a clareza e a explicação, e nunca amarfanhar seja quem for. É ter a coragem de se dizer o que pensassente. Eis o que pode construir diálogos, em que cada parte expõe e defende a sua razão, sem receio de ser perseguido por isso, antes sabendo que a confrontação, mesmo que não resulte em consensos, é sempre promotora de luzes e progressos. Deixo-te, a este respeito, outro trecho do padre António Vieira, que poderia figurar, a meu ver, a lição de moral que retiramos da conversa de frei Bartolomeu dos Mártires com o papa: 

   Saibam estes eloquentes mudos, que mais ofendem os reis com o que calam, que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz, é sinal que lhes não toca e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala, é argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar... Refere-se o pregador jesuíta aos nossos oradores evangélicos que, por receio, interesse ou habilidade, não pregam o que deviam. Sabemos bem que, oradores ou não, evangélicos ou outros, os que se calam muitas vezes prolongam situações de corrupção e injustiça. Tal como não ignoramos que os poderes do mundo, políticos, clericais, económicos  -  ou simplesmente marginais e secretos  -  não são, as mais das vezes, criados na cultura do atendimento e do respeito dos outros. Mas se outro recurso nos faltar, sempre nos resta este de clamar até que a voz nos doa...

                                                                       Camilo Maria

  
 

Camilo Martins de Oliveira