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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

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        Minha Princesa de mim:

 

   Uma jovem amiga minha, intelectualmente animada, questionava-me há dias sobre as ideias que me vêm ao pensamento, quando escrevo. Deve achar-me saltitante, pensei, um louco saído dum filme do Groucho Marx & Irmãos, ainda que com menos graça e riso... Por outro lado, tinha acabado de publicar o meu Fomos em Busca do Japão  -  que, em boa verdade, não é um livro sistemático, metódico, mas simplesmente uma manta de retalhos, registos de um olhar vagabundo... Não obedece a qualquer esquema, nem orientação com propósito à vista, tem como única disciplina tentar que esse olhar que vagueia não deixe de ser atento, sobretudo ao que não vê logo, imediatamente. E é essa atenção curiosa o fio que cose e reúne numa peça todos os retalhos. Peça que, todavia, pela sua própria natureza, é sempre imperfeita, fica inacabada, mas pode sempre ser acrescentada. Repara bem, Princesa de mim, eu não digo "nunca ou jamais é, ou pode ser, perfeita", antes escrevo que "é sempre imperfeita... e pode sempre ser acrescentada". As nossas obras, como a nossa vida, surgem-me como resposta a contínua vocação, à conversão para melhor. Aos conservadores empedernidos  -  tantas vezes receosos, tanto que se vitimizam, a eles mesmos e ao mundo - costumo dizer que a fidelidade aos princípios que são, basicamente, para os católicos, por exemplo, as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) só pode medir-se pelos obstáculos que formos, sempre fiéis à nossa vocação, ultrapassando no tempo e no modo. Já Antoine de Saint-Exupéry disse, lapidarmente, que o homem se reconhece quando se mede com o obstáculo. O problema de todos os fundamentalismos - e não só do islâmico, ainda que, hoje em dia, neste se sinta, dramaticamente, o seu paroxismo - não é o respeito dos princípios ou fundamentos, é o de não perceberem que os alicerces servem para por cima se construírem os edifícios, tanto melhor quanto mais adaptados forem às suas circunstâncias. Este meu gosto pelo sempre inacabado - pela imperfeição como necessidade? - vem da minha adolescência, como reacção à minha ansiedade, então inculcada, de conhecer tudo, e tudo arrumar na cabeça, pretensão de tudo explicar, pois que tudo seria explicável. O padre Domingos, rigoroso e justo, que foi meu professor (excelente) de português e matemática no 1º ciclo do liceu, no Colégio de Clenardo, em Lisboa, ensinava-nos também que "o acaso não existe, tudo se explica pelos desígnios e a providência de Deus". Acreditei que assim fosse. E pensava que para todas as coisas havia uma verdade única, revelada, deduzida, induzida -- que tinha o dever e o poder de encontrar ou descobrir. Hoje, pensossinto que, havendo verdade ontológica, não nos é dado conhecê-la já, mas apenas esperá-la, tudo é movimento e vário, a própria nossa condição humana nos "condena" à indefinida busca... Só o amor é perfeito, por resistir e ser fiel até e depois da morte, como por ser o motor de tudo, desde a criação por Deus até à procura do conhecimento pelos homens. A verdade não se fixa cá em baixo, o conhecimento é, como a ascese mística, uma encosta que se sobe. Sábio é quem ama a imperfeição, porque assim é impelido a conhecê-la, ajudá-la, melhorá-la. Já muitas vezes te repeti que a fé é a substância das coisas que devemos esperar, e o amor a vocação de Deus... A muitos será difícil entender assim a parábola dos talentos, em que Jesus ensina que se dará, em recompensa, o dobro a quem acrescentou, e ao que guardou o que lhe foi dado até esse pouco lhe será tirado.

   Àquela minha amiga, disse: «quiçá melhor respondendo à sua pergunta, as ideias que me vêm ao pensamento não são procuradas, surgem tranquilamente na minha conversa interior. Sem dar nem fazer por isso, vou recordando e associando, vou-me perguntando e debatendo, não me concentro em mim, mas atento na minha circunstância e em mim nela, em movimento perpétuo. Sem pretensiosismo, recordo o Vitorino Nemésio (lembra-se dele?) no "Se bem me lembro...", na RTP. Começava e ia por ali fora, sem censura alguma, nem especial cuidado. Tudo se encadeava, verdadeira e inconscientemente. Talvez só pelo gosto de conversar consigo mesmo e de partilhar com os outros, quer as banalidades, quer as surpresas dessa conversa. V. fez-me uma pergunta, até me pôs a pensar, mas não lhe sei responder, falta-me disciplina discursiva, só sei andar à solta. Quando escrevo, passeio, mais por dentro que por fora. Talvez converse intimamente com quem, já depois, me quiser ler, e que não sei quem é. Como gosto das pessoas, não por esforço próprio, antes porque Deus assim me terá inclinado, talvez o Quem seja toda a gente, como Deus no livro que Ricardo Reis achou no barco (lembra-se de O Ano da Morte de Ricardo Reis, do Saramago?). Seja quem for, não lhe explico nem ensino nada. Respiro, escuto e confesso. E esta conversa ainda vai dar outro texto.»

   Cá está ele, Princesa, ou mais do mesmo. E, para não me repetir, acabo a citar uma frase da minha amiga, que diz bem a natureza do desafio da fidelidade sem pretensão: aprendi que quando se tem o coração aberto só acontecem coisas positivas e alegres. A fé na Boa Nova é a alegria na esperança.

                                                           Camilo Maria  

 

 

Camilo Martins de Oliveira