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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   André Velter, diretor da coleção Poésie da editora Gallimard, dizia, em recente entrevista à revista Lire: Baudelaire é aquele que, em momento histórico do seu século, realiza absolutamente o que é o génio da língua nesse instante - isto é, a aliança que se opera entre o som e o sentido, aqui levada a um extremo grau de suavidade, de sensualidade. Soube criar uma poesia metrificada e rimada, que simultaneamente parecesse tão natural e sofisticada quanto possível. Em Baudelaire, não há momento algum em que cheire a suor. É uma poesia que nos dá o sentimento de que o sentido que ele quer exprimir e a música que quer criar vêm naturalmente, com a evidência do surto. Eis uma graça que muito raramente se encontra, mesmo em poetas, e que lhe é absolutamente específica...   ... Com ele, tudo se torna lícito! Eis o que é magnífico em "Les Fleurs du Mal", essa liberdade de colher todas as flores...   ... Baudelaire pensa que a beleza não reside no tema abordado, mas na maneira de o fazer, e que daí, portanto, será necessário procurar por todo o lado. Volto assim, Princesa de mim, cento e sessenta anos depois da primeira edição de Les Fleurs du Mal, a essa embriaguez baudelairiana da língua francesa, que, sem talvez ter traduzido qualquer dos seus poemas, Cesário Verde soube provar e beber em língua portuguesa. Como sabes, sou hipersensível à musicalidade marítima das palavras e, talvez por isso, tanto gostei de L´Homme et la Mer:

 

          Homme libre, toujours tu chériras la mer!

          La mer est ton miroir; tu contemples ton âme

          Dans le déroulement infini de sa lame,

          Et ton esprit n´est pas un gouffre moins amer.

 

          Homem livre, sempre amarás o mar!

          O mar é o teu espelho; contemplas a tua alma

          Na onda que ao desenrolar-se acalma...

          Mas nem por isso deixas de amargar!

 

   Esta tradução é minha. Maria Gabriela Llansol tem outro génio, e verte assim:

 

          Homem livre,

          Ser-te-á sempre querido o mar, ele te reflete

          E tu te contemplas no infinito oscilar da sua rebentação,

          Sua planura não é menos cruel que teu abismo __

 

   Nas leituras que tenho feito de Baudelaire, nunca se desperta em mim qualquer desejo de tradução, de tal modo sinto que as palavras usadas pelo poeta, e a sua arrumação, são música escrita na língua que as anima e lhes dá novo significado. Explico mal, Princesa, o que te quero dizer; talvez percebas melhor este meu pensarsentir se procurares entender como, afinal, encontro, na língua portuguesa, mais Baudelaire em Cesário Verde, que não o traduz, mas profundamente o respira: Na parte que abateu no terremoto, / Muram-me as construções retas, iguais, crescidas; / Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, / E os sinos dum tanger monástico e devoto. // Mas, num recinto público e vulgar, / Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, / Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, / Um épico doutrora ascende, num pilar! // E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, / Nesta acumulação de corpos enfezados; / Sombrios e espectrais recolhem os soldados; / Inflama-se um palácio em face de um casebre. // Partem patrulhas de cavalaria / Dos arcos dos quartéis que foram já conventos; / Idade Média ! A pé, outras, a passos lentos, / Derramam-se por toda a capital, que esfria. Neste "spleen" de Lisboa, O Sentimento dum Ocidental ecoa Le Spleen de Paris, ambas as cidades são doentes e fechadas, abafam o poeta dum tédio que se chama "spleen", palavra cujo étimo grego significa a bílis negra do baço. Mas desse e nesse mal estar nascem flores, flores do mal a que a consciência e a graça das palavras poéticas trazem consolação e beleza. Assim Baudelaire canta em Le Soleil:

 

          Le long du vieux faubourg, où pendent aux masures 

          Les persiennes, abris des secrètes luxures,

          Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés

          Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés,

          Je vais m´exercer seul à ma fantasque escrime,

          Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,

          Trébuchant sur les mots comme sur les pavês,

          Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.

 

          [...] Quand, ainsi qu´un poète, il descend dans les villes,

          Il ennoblit le sort des choses les plus viles,

          Et s´introduit en roi, sans bruits et sans valets,

          Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.

 

   Fantástica esgrima, essa procura da rima, esse tropeçar nas palavras, aos encontrões a versos há muito sonhados! Quando o poeta desce à cidade transforma em nobreza a vileza das coisas, torna-se rei, sem alarido nem lacaios, entrando em todos os hospitais e em todos os palácios. A consciência do mal pode também ser o seu exorcismo e, pela revelação da beleza ignota, a poesia deletéria torna-se edificante. Escreveu Santa Teresinha:

 

          Seigneur, la souffrance

          Devient jouissance

          Quand l´âme s´élance

          Vers toi sans retour.

 

   A alma humana é um mistério que ninguém vê e todos sentimos. Assim a poesia como real absoluto, no dizer de Novalis.

 

Camilo Maria         

Camilo Martins de Oliveira