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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Vão soando trumpetas estridentes, proclamando Jerusalém capital de Israel há já mais de três mil anos! Tanto, tanto, muito, muito tempo, meu Deus!, de cabeça de um estado que nem dois milénios durou... A falácia, com tão pouco rigor histórico como juridicamente irrelevante face ao direito internacional vigente, pretende justificar abusos do sionismo e servir populismos fáceis. Atropelando factos, entendimentos e, até, sentimentos religiosos e comunitários do próprio judaísmo. Imagina, Princesa, Portugal a reclamar Goa, por lá ter estado, efetivamente, como governo, durante meio milénio, ou pensa na balbúrdia gerada pelo pretenso estado islâmico, a reclamar a restauração de um califado... Tenho nas mãos, Princesa de mim, um livro notável do professor de sociologia da Universidade de Paris-X-Nanterre, Shmuel Trigano, fundador e diretor do Colégio de Estudos Judaicos da Aliança Israelita Universal: intitula-se Le Judaïsme et l´Esprit du Monde (Grasset, Paris, 2011), e trabalha o sentido histórico e contemporâneo do judaísmo na religião, na política e nos costumes, sem esquecer uma análise teológica da eleição de Israel e, depois, do seu desaparecimento da cena das nações: As duas entidades que se constituem no lugar vacante de Israel são dum género totalmente novo. Já não são locais (Cananeus, Filisteus, Samaritanos) mas «universais», eco devolvido da levitização de Israel, isto é, da sua extensão ao universo, à custa da sua unidade formal na terra. O cristianismo e o islão são uma Samaria à escala do universo. O reverso do povo no exílio é o império de Roma e de Meca, e esse duplo império levanta-se contra Israel à maneira dos Cananeus, quando Israel esquece a sua vocação e se afasta da aliança... 

 

   Esta obra de Shmuel Trigano divide-se em quatro livros de três partes cada um: Éthique (La séparation de la femme); Ethnos (L´Élection d´Israël); Ethos (Le cachement de l´âme); Ethnikos (Le reste d´Israël). A segunda parte do Livro II (Le Royaume d´Israël), inicia assim o seu primeiro capítulo (La Souveraineté): Porque é que o povo de Israel constitui uma realidade política? Poderíamos deduzi-la do facto de estar ali um povo, qualquer condição coletiva sendo naturalmente política na medida em que implica uma coerência organizada da massa humana e um sistema de relações regulando o poder.

 

   Ora, eis o que está precisamente em questão neste caso. Como regra geral, a Cidade política institui-se sobre a reunião de vários grupos humanos. Com Israel, a existência do povo precede a edificação da Cidade, como se o povo se bastasse a si mesmo e invertesse a ordem natural do político. Toda a dificuldade está em compreender que essa condição fundamental não está, por isso, fora do político, mesmo sendo meta-política. Este paradoxo ilustra o sentido duma expressão como «Reino dos Céus». A meta-política afixa-se no coração da política. O povo é maior do que o estado, mas não é o seu contrário. É o que verifica a história de um povo que sobreviveu a mais de vinte séculos sem estado, nem território, sem que por isso nele se tenha perdido o poder do Estado e da Terra. Poderíamos chegar a dizer que a fonte da soberania do estado está no povo que, ele próprio, surge do meta-político. Por soberania entendemos o que a língua hebraica designa por malkhout, compreendida como «reino» ou «realeza», tradução demasiado limitativa dum conceito muito mais lato. Em suma: a cidadania, o modo gerente da relação dos membros desse povo, precederia a Cidade, e transcendê-la-ia.

 

   Essa ideia de identidade (e identificação) meta-política transmitiu-se ao cristianismo e ao islamismo, muito embora ambos tenham padecido a tentação do império, isto é, de reunir num mesmo estado político, quer a cristandade, quer a "umma" dos muçulmanos, tal como vem sucedendo com a visão sionista do judaísmo. Mas não será o «Reino de Deus», afinal, e para cada uma das confissões monoteístas, algo diferente? Vamos por partes, começo com um trecho do inglês de Cambridge, Tom Holland (In the Shadow of the Sword: The Battle For Global Empire and the End of the Ancient World, Anchor Books, Random House, New York, 2012):

 

  Todavia, era nada menos do que aterradora realidade o facto de que ao longo da sua história o povo judeu nunca tinha sido confrontado com um perigo mais insidioso e opressor do que aquele a que os adoradores de Jesus o expunham. Insidioso, porque essa heresia tinha suficientes semelhanças com a sua própria fé, para exercer um fascínio terrível e secreto sobre muitos deles, inclusive alguns rabinos; e opressor, porque, ao que parecia, não havia uma única região do mundo a que não tivesse chegado... ...mas, acima de tudo, estendera-se para o ocidente, onde se estendia o «reino mais importante do mundo, o reino dos Romanos». Havia mais de um milénio, e mais do que nunca agora, que esse reino exercia o seu poder sobre Jerusalém e a Terra Prometida e, durante todo esse período, tinham sido infligidos muitos, muitos, sofrimentos ao povo judeu. Contudo, quinhentos anos depois do nascimento de Jesus, os Judeus tinham mais uma razão para temerem a força e o poder de Roma. Os Césares que, como outrora os reis da Babilónia, tinham edificado templos a uma multidão de demónios, tinham-se doravante empenhado em encerrar esses santuários para os substituir, por um culto quiçá ainda mais nefasto. A que é que o povo romano tinha decidido consagrar a sua devoção, se não ao mais ameaçador de todos os falsos ídolos? Chamavam-lhe Christos, que em grego significa «Messias».

 

   Sim, no palácio de César, agora, só se venerava Jesus. Os Judeus já não eram os únicos a acreditar-se povo eleito de um Deus único. Os Romanos também, esses senhores dum império ainda mais rico e intimidante que o dos Persas, tinham -se recentemente convertido à convicção de que Jesus reinava mesmo no Céu, para dele fazer o coração batente do seu império.

 

   Muitos acreditam que o cristianismo é um aperfeiçoamento, um passo em frente na revelação de Deus como Salvador universal. Outros mantêm que Jesus não é o Messias, porque este será o que vier cumprir a promessa da restauração de Israel como Reino de Deus, o regresso e a posse da Terra Prometida, o esplendor de Jerusalém. Nesse caso, esta Cidade de Deus não é a Jerusalém Celeste, meta-política, mas sim a Jerusalém política, a cidade capital de um reino prometido e finalmente entregue a um povo eleito. Já muitos exegetas e teólogos, judeus e cristãos, exumaram dos textos bíblicos duas leituras simultaneamente contraditórias e possíveis. Alguém, Princesa, já não recordo quem, até falou em Bíblia paradoxal. O certo é que, no Antigo Testamento, pistas de narrativas divergentes apontam, ora para um destino nacionalista e político, ora para uma mensagem libertadora da condição humana, carregada por um povo escolhido para a semear e fermentar. Socorrendo-me da Geschichte Palästinas: von der omanischen Eroberung bis zu Gründung des Staates Israel (Verlag C.H. Beck oHG, München 2002), bom livro da professora Gudrun Krämer da Freie Universität Berlin - que, aliás, tem uma edição revista e traduzida também pela autora na Princeton University Press (2008)  -, verifico como, ao longo de séculos, essa terra que chamamos Palestina não formou qualquer unidade geográfica ou politicamente independente: Como parcela do Crescente Fértil, que se estendia do Mediterrâneo ao Golfo Pérsico, e dos Montes Tauro e Zagros, a norte, ao deserto da Arábia, a sul, a Palestina sempre foi terra de passagem. Daí a maior importância da toponímia corrente, já que os nomes dados a territórios, cidades e lugares, refletem a existência prévia de povos, com suas culturas e poder político. Ora, os nomes que o Ocidente foi retendo nas regiões que envolveu na designação genérica de "próximo" ou "médio" Oriente (que claramente indica uma perspetiva europeia), e designadamente na Palestina, foram evidentemente recolhidos da Bíblia, assim colocando os Judeus no centro, empurrando todos os outros grupos populacionais (mesmo se e quando constituíam a maioria) para as traseiras, e nem sempre os considerando sequer. Isto vale para tempos antigos ("bíblicos") e modernos. Claramente vale também para Cristãos Árabes, acerca dos quais sabemos muito menos do que sobre os habitantes Judeus daquela área, pelo menos no que toca à época moderna. Os Palestinos, quer Muçulmanos, quer Cristãos, têm lamentado a sua marginalização, seja na perceção pública, seja na investigação histórica. Mesmo assim, a achega "bíblica" prevalece, e é a mais poderosa historicamente. Não será tão cedo possível escaparmos-lhe. A reivindicação judaica da Palestina como a "Terra de Israel" (Eretz Yisrael) assenta ela própria em narrativas bíblicas e afirma a ininterrupta presença do povo Judeu nessa terra e o seu vínculo a ela. A reclamação Árabe, entretanto, põe em dúvida a ininterrupta presença de Judeus, e aponta raízes Árabes com mais de um milénio. Alguns referir-se-ão aos Cananeus, que se estabeleceram naquela terra antes dos Israelitas, como seus próprios antepassados.

 

   [Abro aqui um parêntese, Princesa de mim, para te assinalar que, de 26 de setembro até 14 de janeiro, está no Institut du Monde Arabe, em Paris, uma exposição sobre Chrétiens d´Orient - Deux Mille Ans d´Histoire, por ocasião da qual a revista Le Monde de la Bible (nº222, setembro-outubro-novembro de 2017) publica um interessantíssimo e ilustradíssimo dossiê acerca da história, da cultura e da fé dos cristãos árabes]

 

   Ao escrever-te esta carta, não pretendo meter-me no barulho de discussões estéreis, porque infelizmente motivadas por populismos, interesses inconfessáveis, preconceitos religiosos, culturais e históricos, e conduzidas por gente condizente e, muitas vezes, ignorante, charlatã ou exibicionista. O passado foi e deixou o que a História vai descobrindo, sobretudo na medida em que procurarmos entender povos e personagens, anseios e contradições, afrontamentos e proximidades. Por mim, prefiro mesmo ir buscando razões e exemplos de entendimento e de paz, lugares para todos à volta da mesa comum. Assim, venho recordar-te uma carta antiga, em que te falava do livro de Vincent Lemire, Jérusalem 1900 - La ville sainte à l´âge des possibles (Armand Colin, Paris, 2013). Começo por te traduzir um passo de Identité narrative et communauté historique, de Paul Ricoeur, filósofo francês, mestre do atual presidente Macron, que Lemire, para abrir o livro, foi buscar a Cahier de politique autrement [que bela designação, quelle trouvaille!], de 1994: Quando a história se esforça por reconstruir, reconstituir o que no passado foi o modo de viver, de perceber o mundo, de viver as relações com os outros, é preciso ter em conta o seguinte: os homens do passado tinham um futuro a que podemos chamar o futuro do passado, que faz parte do nosso, nosso passado. Ora grande parte do futuro do passado não se realizou. As gentes de outrora tiveram sonhos, desejos, utopias, que constituem uma reserva de sentido não realizado. Um aspeto importante da releitura e da revisão das tradições transmitidas consistirá portanto no discernimento das promessas não cumpridas do passado. Com efeito, o passado não é apenas o resolvido, o que aconteceu e já não pode ser mudado (pobríssima definição do passado), mas permanece vivo na memória, graças, diria eu, às flechas do futuro que não foram disparadas ou cuja trajetória foi interrompida. Nesse sentido, o futuro incumprido do passado talvez constitua a parte mais rica de uma tradição...

 

   Eis como Vincent Lemaire inicia o primeiro capítulo, 1900, l´âge des possibles: Para partir à descoberta de uma cidade desconhecida, é preciso aceitar viajar com pouco peso. Impõe-se afastar ideias preconcebidas e imagens convencionais, para nos apercebermos de outra realidade. Para partir à descoberta de «Jerusalém 1900», a bagagem mínima cabe em poucas linhas. No final do século XIX, Jerusalém é parte do Império Otomano. Desde 1872, ela é capital administrativa de um distrito chamado «Kudüs-i-Sherîf» ou «Filastîn» nos arquivos imperiais. Alberga 20.000 habitantes em 1870, 70.000 na véspera da Primeira Guerra Mundial. A cidade intramuros mede apenas um quilómetro quadrado, empoleira-se a 750 metros de altitude, no cimo da dorsal palestina que percorre a região de norte a sul. Os primeiros consulados europeus abrem nos anos 1840, e as peregrinações ocidentais ganham considerável importância a partir de 1880. Na verdade, Jerusalém é o berço comum dos três monoteísmos, e abriga lugares santos essenciais para fiéis do mundo inteiro. Os seus habitantes são judeus, cristãos e muçulmanos, mas também comerciantes, professores, engenheiros ou pedreiros. O movimento sionista é oficialmente fundado em 1897, em Basileia, e a imigração judia amplifica-se na viragem do século. No fim do século XIX, a cidade moderniza-se e dota-se de instituições municipais autónomas. Eis, para a «Cidade Santa», a idade dos possíveis, momento hoje tão esquecido, sepultado sob ruínas de guerras e a barulheira de guerras ideológicas.

 

   Falo-te mais desse período naquela carta antiga. Pensossinto, como então, que, em vez de ser tão estulta e infundadamente reclamada como sede de qualquer poder político exclusivo, Jerusalém deve ser cidade e símbolo de reconciliação e encontro.

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira