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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Foi certamente em loja de aeroporto, na partida para um dos meus inúmeros voos intercontinentais, que adquiri An Intimate History of Humanity (Harper Perennial, New York, 1996), do oxfordiano (St. Anthony´s College) Theodore Zeldin, que a Livraria do Congresso dos EUA classificou na categoria de antropologia filosófica. Dei com esse livro agora, abundantemente anotado pelo meu lápis, ao arrumar a minha biblioteca. Abrindo-o distraidamente, caio no capítulo intitulado How new forms of love have been invented, e leio na página 75: Love is no longer what it was. There are two types of women in the world today of whom there were very few in the past: the educated and the divorced. E continua (traduzo): A toda a hora novas espécies de pessoas emergem, e dão nova direção às paixões. Pode parecer que continuam a acreditar em que o amor é misterioso, falando acerca de se enamorarem descontroladamente, como se o amor nunca mudasse. Todavia, no passado, muitas vezes separámos os diferentes elementos que compõem o amor e os recombinámos para que nos servissem à medida desejada, torcendo, acrescentando, suprimindo. Os humanos têm sido muito menos desamparados face à paixão do que a lenda reza. Foram capazes de lhe introduzir novos significados, vezes sem conta, tão surpreendentemente como transformaram cereais em pão, pastéis de massa tenra ou folhada.

 

   Repara, Princesa, em que o professor Zeldin começa esse capítulo pela lembrança daquela "revolução" ocorrida em 1990, em que adolescentes de Lyon, manifestando-se nas ruas da cidade, sob a liderança de Mandarine Martinon, de 16 anos, aluna de liceu provinda de um meio social proletário remediado, conseguiram obter do governo francês a bela soma de quatro mil e quinhentos milhões de francos, para a reabilitação das escolas, seu funcionamento e seus espaços. O "programa" de Mandarine é assim resumido pelo antropólogo britânico: pessoalmente, ela tem alguns ideais: igualdade é o que mais conta, democracia também, resistência à opressão estatal, embora mantendo o papel do estado na cultura e na televisão; é pela desmilitarização, mas sem abolir as forças armadas; quer ajudar os pobres; é a favor da inovação e da mudança, mas também receia a mudança e tem dúvidas sobre o desejo de mudança dos outros. Por isso, não tenta converter nem persuadir. A sua escola vai constituindo comissões para debater muito modestamente sobre como alterar o seu orçamento próprio e como atribuir a cada grupo os seus direitos; a sua única ambição é transformar a escola de fábrica de exames em ´lugar onde se viva´. A escola tornou-se na outra casa das crianças; aceitam-na como aceitam a sua própria casa; tudo o que querem é aproveitá-la ao máximo. Mandarine Radisson (Martinon) é hoje mencionada no sítio da rede Copains d´avant, entre muitos outros alunos do liceu Piierre Brossolette, de Villeurbanne, no período de 1989-92.

 

   Modestamente, quase incógnita, quiçá já casada, pois se chama Mandarine Radisson (Martinon). Na adolescência, logo desde os seus doze anitos, teve namorados, amizades, amor não. Nasceu em 6 de dezembro de 1973, filha de um maoísta de maio de 68, com quem sempre se deu bem, mais por feitios e cumplicidades, do que por acerto de horizontes de vida. O pai era o cozinheiro lá de casa, seria também mais anarco-divertido do que totalitarista. Esse convívio humano terá dado à filha, que se sentia insegura, aquela distância que uma certa humilde ironia nos oferece na observação do mundo. E ter-lhe-á também transmitido, do espírito revolucionário do jovem que o pai fora, mais o anseio de localização da justiça, e reivindicação dela, do que o desejo soturno de caça ao outro... Numa sociedade em que se apagavam luzes e outras se acendiam, incendiavam e perdiam como silenciosas estrelas cadentes ou focos de holofotes de barulhentos espetáculos, aquela miúda (hoje com 44 anos) debatia com os seus amigos: discutimos se a amizade é possível entre homens e mulheres. Decidimos que é, sim, mas que tal é difícil, porque os desejos do corpo complicam as relações... A isto comenta Zeldin que eles concluíram que "o sexo já não é a solução milagrosa, nem sequer um caminho para a amizade mas, pelo contrário, um problema que nela surge". Tal perceção varia entre rapazes e raparigas, e ainda mais entre elas do que entre eles: Mandarine entende que, ao abordarem com força o sexo, os rapazes estão a tentar disfarçar o poder que as raparigas têm sobre eles, estão a pretender ser fortes, a esconder as suas emoções. Reagindo, as moças separam-se entre as que procurarão vários parceiros, para fugirem a compromissos, e as que buscam um caminho a dois durante toda a juventude: sentimo-nos mais fortes quando somos dois, defende Mandarine. Esta divergência encontra-se claramente entre filhos de pais divorciados, explica Zeldin: ou tentam criar uma relação estável, ou simplesmente rejeitam a própria ideia de casal. Afinal, todos nós procuramos o amor e nos deparamos com amores, ou ainda, com mais ou menos luz, até às apalpadelas no escuro, nos confrontamos com o amor total, o amor fiel ou vário, qualquer amor ou amor nenhum. Neste sentido, pode dizer-se que o amor é simultaneamente a promessa mais alegre e mais triste que encontramos, fazemos e recebemos, na vida. No mundo hodierno, compreendo que se fale tanto e se aconselhe a educação sexual nas escolas. Mas lamento que se escamoteie uma satisfação da necessidade mais profundamente humana de sermos todos despertados para o bem estar no amor, que só o querer bem oferece. Talvez fosse esse o melhor caminho para chegar à raiz, e não nos gastarmos tanto a acudir a consequências que a falta de seiva espiritual vai tornando sucessivamente mais inevitáveis. O próprio testemunho desta adolescente francesa, criada em meio proletário, com pouca ou nenhuma "religião", nem moral burguesa, chama-me a atenção para o incontornável facto de o relacionamento sexual estar hoje visivelmente no cerne do desenvolvimento psicológico e afetivo dos jovens, já que a sua circunstância é a da liberdade dos convívios e contactos e de disponibilização de meios preventivos e contracetivos. E só desonestamente poderei negar que o abandono familiar e escolar a que tantas e tantas vezes são votados - por envolventes socioeconómicas e culturais - é fator poderoso da demanda de refúgio em carinhos e outras expressões de afeto humano, designadamente pelas pulsões correspondentes à sua própria idade biológica. Mas tal testemunho tampouco deixa de ser revelador de insatisfação vivencial e espiritual, de receio e dúvida, de sentida necessidade de entendimento das situações, das opções possíveis, de confiança na própria responsabilidade. Sabes bem, Princesa de mim, como sempre me desgostaram os moralistas ditadores, e vou rezando para que todos, e cada um de nós, possamos ter a fibra interior e a clarividência possível para decidir e proceder de modo a querer bem, sempre melhor e sem atrairmos males por vir. A educação, creio, é precisamente semear e cultivar a árvore de bons frutos que cada um de nós poderá ser. E que só será na medida em que compreender que a sua própria consciência é insubstituível.

 

   Fui, adolescente ainda, muito marcado pela leitura assídua de textos do cristianismo primitivo, anteriores ao período romano, iniciado com a conversão de Constantino, no primeiro quartel do século IV. E encontro, ao escrever-te esta, um trecho do livro Crainte et Tremblement - une histoire du péché, de François Euvé, professor na faculdade de teologia do Centre Sèvres (Seuil, Paris, 2010) que resume bem o meu pensarsentir: Recorde-se que nenhuma codificação vem, no começo, regular a prática cristã. O Evangelho não define precisamente qualquer doutrina, qualquer moral, alguma forma de culto litúrgico. Há apenas o modo de agir de Jesus, que os discípulos são convidados a seguir. Mas que significa exatamente "seguir"? A imagem inicialmente dominante é a de "via": são convidados a pôr-se a caminho. Esta condição itinerante deverá estar bem presente no nosso espírito, sempre que nos aproximarmos de outro, para lhe desejarmos que procure e siga a via do bem querer.

 

   Termino esta carta, Princesa, com citações traduzidas da Mandarine:

 

   Vêmo-lo nos filmes americanos, mas em casa não. Só o conhecemos pelos filmes.

   Não queremos que o amor seja tornado ordinário, banal. Devia ser algo pessoal. Não quero tornar públicos os pormenores da minha vida privada. Se formos forçados a falar da nossa vida privada, então isso tornar-se-á uma obrigação, e eles perderão qualquer interesse.

 

   Que o professor Theodore remata assim: Donde se pode ver que o amor é um dos últimos refúgios em que uma pessoa, ele ou ela, pode ser capaz de conseguir algo nobre, e receber a aprovação de outra pessoa: uma das poucas formas de êxito que se aguentará contra a autodesconfiança.

 

Camilo Maria      

 

Camilo Martins de Oliveira