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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   O golpe de estado do 18 de Brumário (9 de novembro) de 1799, termo da primeira década da Revolução Francesa, traz à tona a nova burguesia, aquela classe de oportunistas que foi sabendo mexer os cordões do PREC coevo, e até foi designada por Nação, quando mais não era do que a faixa de 2% da plebe, os privilegiados que faziam negócios e ganhavam fortunas. No Antigo Regime, a assembleia dos representantes da nação (em Portugal chamada Cortes), reunia três classes: clero, nobreza e povo. Com a revolução, acabou por congregar só uma - em liberdade, igualdade e fraternidade -, mas, nessa mesma, uma minoria era mais livre, mais igual e, com ironia, mais fraterna do que o povo em geral. Este, acabou por ser constituído por citoyens passifs (expressão de Sieyès), assim se respeitando o conselho de Voltaire que diz ser país bem organizado aquele em que le petit nombre fait travailler le grand nombre, est nourri par lui, et le gouverne.  

 

   Seguir-se-á o Consulado e o Primeiro Cônsul tornado Imperador. Napoleão será a reincarnação "republicana" da monarquia, muito próxima, aliás, da fórmula de Luís XIV: L´État c´est moi.

 

   A China também terá, a partir de 1912, os seus imperadores republicanos: Sun Yat-sen, fundador da modernidade sínica, e Chang Kai-shek, durante a primeira república, Mao Zedong, Deng Xiaoping e Xi Jinping, em tempos de república popular. Deixa-me ler-te um texto de Sun Yat-sen:

 

   Na China, desde a Antiguidade, a maioria dos indivíduos dotados de forte ambição sonhou ser imperador...  ... Esse tipo de ambicioso encontra-se em todas as idades da história, sem interrupção...  ... Assim, na história da China, em qualquer idade, sempre se lutou pelo trono imperial, e todos os períodos de anarquia que o país sucessivamente atravessou tiveram a sua nascente nessa luta pelo trono. Os países estrangeiros fizeram guerras de religião, ou bateram-se pela liberdade. Na China, desde há milhares de anos, lutou-se perpetuamente por essa única questão:  vir a ser imperador.

 

   [Introduzo aqui uma máxima de Benjamin Constant, amante de Mme. de Staël, filha de Necker, conspirador do 18 Brumário, que Napoleão fez Tribuno: a política é, antes do mais, l´art de présenter les choses sous la forme la plus propre à les faire accepter. Sugiro, Princesa, que a tenhas sempre, subconscientemente, como lembrete].

 

   Para melhor entendermos a figura do Imperador no imaginário religioso, ético e político chinês, na sua própria visão do mundo, cito-te, primeiro, Confúcio: Quem governa pela virtude é comparável à estrela polar, imutável no seu eixo, mas centro de atração de todo o planeta. Dito este, claramente, nos antípodas do de Constant. O Imperador Celeste é paradoxal, ser humano e ser divino, senhor e chefe de todos, mas por todos, finalmente, controlado. Recorro a duas longas transcrições para entendermos melhor. A primeira é tirada de La Vie des Chinois au temps des Ming (Paris, Larousse, 2003), de Gilles Baud-Berthier e outros:

 

   Fils du Ciel, l´empereur est un être quasi divin. E traduzo: Manda em todos e só obedece ao Céu e aos seus próprios antepassados. Mas é também aquele que cumpre os ritos oficiais, o chefe dos funcionários, o pai dos seus súbditos. E finalmente é um homem como os outros, movido pelas suas ambições, as suas inclinações, as suas fraquezas...

 

   A segunda transcrição, muito mais longa, traduzo-a de um livro recente (Paris, Perrin, fevereiro de 2018), da autoria de Bernard Brizay, cuja leitura te recomendo: Les Trente «Empereurs» qui ont fait la Chine. Trata-se, aliás, não de um texto do próprio Brizay, mas de um trecho que ele respigou de La Chine devant l´Europe, livrito escrito pelo marquês de Hervey de Saint-Denys, em meados do século XIX, e publicado no reinado de Xianfeng:

 

   Chamam-lhe Filho do Céu, desejam-lhe dez mil anos de vida, prestam-lhe honras divinas. Ninguém pode passar diante da porta exterior do seu palácio, de carro ou a cavalo. O seu trono, mesmo vazio, é respeitado tanto como ele mesmo seria. Recebem de joelhos os seus despachos, queimando incenso. Comanda 400 milhões de homens. A sua morada é uma autêntica cidade, rodeada de altas muralhas, recinto reservado aos inúmeros serviços de uma corte sumptuosa. Ali se encontram casas de habitação para o imperador, a imperatriz, as princesas ou damas de segunda classe, as de terceira e até de quarta classe; pavilhões de trabalho para os ministros; salas de receção, de representação, de audiência; outras consagradas às cerimónias religiosas ou às festas do monarca; exércitos de oficiais de todas as patentes, de servos e de eunucos; oficinas imensas onde todo um mundo de operários se ocupa no fabrico sem interrupção dos objetos necessários aos sete ou oito mil habitantes dessa cidade privilegiada. Nenhum príncipe se encontra rodeado de maior prestígio, pompa e magnificência...

 

   Mas o arguto marquês francês acrescenta: No meio de todos os atributos do poder soberano, o temido monarca não pode dar um passo como entender. O seu vestuário, os seus atos, as suas posturas e as palavras que pronuncia são regulados por minucioso cerimonial. A ordem das suas refeições, a natureza e a quantidade dos alimentos que lhe são servidos em cada estação, em cada circunstância, são igualmente determinadas... Numa palavra: a sua vida é o cumprimento de um rito.

 

   Assim também, ainda nos nossos dias, se desenrola a vida do imperador e família do Japão, Império do Sol Nascente. Herança vinda, da dinastia sínica dos Tang, para a corte nipónica de Nara. Na tradição sino-nipónica, a personagem cuja designação traduzimos, nas línguas ocidentais, por imperador, tem um carácter hermético, que encerra a presença do divino numa terra eleita, podíamos até chamar-lhe mistério, um sacramento da união do Céu com a Terra, pois estabelece essa ligação. Não é exatamente o mesmo que o imperator romano, este apenas um deus entre deuses vários, assim por política obrigatoriedade de veneração dum soberano, mais fácil de impor a um universo de povos, culturas e religiões diversas quando tal poder é sacralizado. Sabes, Princesa, o que a recusa do reconhecimento da divindade imperial custou aos judeus e aos cristãos primitivos. Para estes, a perseguição político-religiosa durou até à conversão de Constantino, em 322. Mais tarde, Roma irá servir-se da religião cristã - já também religião do próprio imperador - como cimento do império, tornando-a religião oficial. E assim se iniciarão séculos de conflitos entre o poder temporal e o espiritual, e períodos de confusão entre ambos. Quando o nosso Afonso Henriques busca e consegue o reconhecimento papal dele como rei, por exemplo, não é só uma bênção religiosa que procura, é a afirmação do poder papal como o único entre o rei e Deus. Para melhor entendermos tal diligência e o seu objetivo final, transcrevo-te um trecho do prólogo da obra El Rey, Historia de la Monarquia, por vários autores (Editorial Planeta, Barcelona, 2008), escrito por Rafael Escudero (das Reales Academias de la Historia y de la Jurisprudencia e Legislación):

 

   Hay, sin embargo, una forma egrégia y superior de ser rey, la de ser rey de reyes o emperador, de lo que en nuestra historia constatamos un intento frustrado (el de Alfonso X, que trató en vano de conseguir el imperio alemán) y dos bellas realidades en la Edad Media y en la Moderna. En aquella, com la Península articulada en diversos reinos, el caso del Imperio castellanoleonés, com un rey, Alfonso VI, que aparece como «emperador de toda España» o «emperador de las dos religiones», o de Alfonso VII, coronado emperador en la catedral leonesa de Santa María en 1135. En la Edad Moderna, en fin, el emperador por antonomásia, Carlos, que se hizo com la Corona imperial en 1519 y de quien diria ante las Cortes el doctor Pedro Ruiz de Mota que «él sólo en la tierra es rey de reyes». [Carlos V, imperador do Sacro Império Romano Germânico e, em Espanha, Carlos I]

 

   O imperador Afonso VI tivera duas filhas: uma bastarda, Teresa, casada com Henrique, da linhagem dos Duques de Borgonha, mãe de Dom Afonso Henriques, o qual de seus pais herdaria o título de Conde de Portugal; outra, legítima, Urraca, casada com Raimundo, da casa dos Condes de Amous, o qual foi feito, em virtude do seu casamento, Conde da Galiza, sendo o filho de ambos reconhecido como sucessor do Imperador castelhano-leonês com o nome de Afonso VII. De acordo com o costume feudal que confundia soberania e propriedade, Afonso VII, primo direito de Dom Afonso Henriques, ao morrer, em 1155, deixou o império dividido pelos seus dois filhos: Sancho herdou o reino de Castela, Fernando o de Leão. Mas nessa altura, já Portugal tinha rei seu, pois o uso desse título régio já constava do tratado de Zamora, celebrado entre os primos Afonso (VII e Henriques), o que parece traduzir o reconhecimento da sua legitimidade pela autoridade do imperador. Todavia, outros cronistas, como Rodrigo Ximenez de Rada no De Rebus Hispaniae, não referem essa eventualidade, pretendendo que Afonso Henriques era o primeiro que em Portugal tomou por si mesmo (sibi imposuit) o nome de rei, pois seu pai usava o título de conde, e ele, inicialmente, o de dux. Pediu ao papa Eugénio III, de que se constituiu vassalo (censuale), muitos privilégios... Sobre esta questão, como sobre o nosso primeiro rei, recomendo-te a leitura da biografia de D. Afonso Henriques do José Mattoso (Lisboa, Círculo de Leitores, 2008). Mas deixa-me reter aqui duas observações: a primeira aponta para o facto aparente de que o primeiro Rei de Portugal - que, aliás, mesmo filho de bastarda do imperador Afonso VI, pertencia, pela linhagem paterna a uma nobreza franca superior à de seu tio Raimundo, pois seu avô Henrique, Duque da Borgonha era neto de Roberto II, rei de França -, Afonso Henriques ter desde logo procurado o reconhecimento direto do papa, prestando vassalagem a Eugénio III; a segunda verifica que, apesar de tal reconhecimento papal apenas se ter oficializado em Maio de 1179, pela bula Manifestis probatum , de Alexandre III, o Rei de Portugal nunca se considerou vassalo do primo, mas antes seu igual, porque ambos descendentes diretos, ainda que por via uterina do imperador Afonso VI.

 

   Reconhecimentos papais fazem-me reevocar Napoleão. E, para te deixar entretida com esta carta, trago-te um trecho longo do Alain Minc (Une Histoire de France, Paris, Grasset, 2008, pag. 235): Le sénatus-consulte du 18 mai 1804 lui conférant le titre bizarre d´«Empereur héréditaire des Français» est ratifié lors d´un plebiscite, par une majorité encore plus écrasante que la Constitution de l´an VIII. E passo a traduzir:

 

   Napoleão não se contenta com isso. Quer os fastos e pompas de uma sagração e sobretudo a presença do papa. Incrível ressurreição da tradição monárquica. A França galicana, a França da Constituição civil do clero, negoceia a vinda a Paris do soberano pontífice para presidir à cerimónia! Nessa altura, Napoleão nada em surrealismo político. Cospe na cara das monarquias europeias com a execução do duque de Enghien e, depois, quer imitá-las, talvez macaqueá-las. A mímica da sagração de Reims é para pôr um ponto final à Revolução.Tenta vincular a sua dinastia ao precedente dos Carolíngios - donde o título de Imperador - e trata os mil anos de reinado capetiano como um parêntese. Deseja a bênção do papa mas, no momento da cerimónia, tira-lhe a coroa das mãos...   ... Estranha monarquia que cortou o cordão umbilical com Deus, mas que mantém a filiação com as conquistas da Revolução! O Consulado  correspondera à fase racional do bonapartismo; o Império será o seu período barroco.

 

    E isto me leva a Vladimir Putin, abrindo a porta para a minha-tua próxima carta, que começará por desenvolver a notícia que seguidamente te traduzo de Le Monde Diplomatique, deste mês de março, transmitida num artigo de Anaïs Llobet: Debaixo de muito sol, em maio de 2017, o patriarca Cirilo de Moscovo e de toda a Rússia, inaugura a igreja do mosteiro de Stretenski, no coração da capital. A seu lado, o presidente Vladimir Putin, de semblante solene e impassível, acompanha integralmente o ritual. Depois, entrega ao patriarca um ícone antigo de quatro séculos representando João Baptista, o profeta que anunciou a vinda de Jesus, imagem que até então estivera em lugar de destaque no seu gabinete no Kremlin. Ficará doravante exposta no altar do novo local de culto.

 

   Isto tem que se lhe diga, tal como as conversações em curso entre o Vaticano e a China oficial, ou a expansão económica, cultural, política e militar do Império do Meio nos dias que vão correndo, em manifesto contraste com o recuo e total proibição, ainda durante a dinastia Ming, da exploração, por via marítima, do mundo exterior de então. Como português, terei também de recordar o falhanço da embaixada de Tomé Pires, no século XV, num tempo em que, fora da China, os servidores do Filho do Céu só procuravam quem lhe prestasse vassalagem, e o Rei de Portugal lhe enviava uma carta a reclamar-lhe o mesmo...  

  

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira