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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CONTINUO MUITO RECOLHIDO E DISTANTE DE TUDO…

  

Minha Princesa de mim:

 

Continuo muito recolhido e distante de tudo, procurando neste repouso recluso algum alívio dos meus achaques. Surpreende-me esta manhã a sorrir para ti.  Bom dia! Dizem que a fidelidade é repetitiva e maçadora... mas há afectos que são como o sol de cada dia: mesmo encoberto, ilumina! São esses afectos o benquerer de uma ternura tão íntima que já pertence ao bater do coração. Não é repetição, é respiração. Podem tais sentimentos ter intensidades diferentes,consoante o objecto ou o modo do momento. Mas nem na sua diversidade serão exclusivos, nem têm hierarquia possível: o amor, como reino de Deus, não é deste mundo, é trânsfuga do nosso instinto de poder e de gozo. Assim também nos ensinou Jesus que só pode amar a Deus aquele que ama os seus irmãos na humana condição. E é por ser essa sublime confusão de tudo em todos que o amar deveras exige um coração puro, livre de desejo de domínio e posse. Nas Mémoires de deux jeunes mariées, de La Comédie humaine, Balzac escreve, numa das cartas de Renée  - que acaba de ser mãe  -  a Louise: Os mundos devem ligar-se a Deus como uma criança se liga a todas as fibras de sua mãe: Deus é um grande coração de mãe. Retido na cama  -  passaram-se muitos dias de silêncio e música (não há contradição), alguma leitura avulsa e escrita zero  -  ocorreram-me associações e visões trazidas pelo fio condutor dessa ideia de Mãe como sermos. E como colo onde nascemos e ficamos. Porque nos é inerente. E logo em posterior despertar,pegando noutro livro abandonado à cabeceira,deparo com esta frase dita por um imaginado jesuíta,grande matemático e ex-colega de Augustin,o herói do romance de Joseph Malègue  Augustin ou le Maître est là:  --  Longe de Cristo me ser ininteligível por ser Deus,é Deus que me é estranho se não for Cristo. E assim pensossinto como nos é tão íntima a origem de nós, anterior como mãe antiquíssima... e tão permanente nas últimas e secretas fibras do nosso ser!  Ou,mais ainda,como nos é tão interior a transcendência,pois ser- nos-á concebível outro deus, mas só sentimos e amamos o Deus que nos anima. Nem outra alma temos, mas só esse sopro. Nesse sentido ainda se compreenderá esse dito: é Deus que me é estranho se não for Cristo. Pois Jesus é Deus feito homem, é Deus connosco. Esse Joseph Malègue, hoje bastante esquecido, foi um romancista católico francês que nos anos 30 teve, com J. Maritain e L. Bloy, entre outros, alguma circulação e leitura em países da América do Sul. Designadamente na Argentina onde, conta uma profecia, um padre jesuíta que será Papa já no século XXI, o aprecia muito. Mas tem sido a música a fazer-me companhia, num canto quentinho deste casarão. No fundo, escutar música é um modo de silêncio e, simultâneamente, de conversa. É bem verdade que a criação artística é também um diálogo. Como se ouve num concerto, no sentido em que acorda,concorda e desacorda. Cada concerto tem lugar de nascimento, tempo e modo. Surge em afinação com eles,mas também deles pode desafinar e,até, desafiá-los. Assim é, na sua circunstância,como no próprio de si mesmo: procura-se síntese,é sempre tese e antítese até à harmonia... A arte,qualquer arte  - mesmo a que o artesão pensassente como nova enquanto a vai fazendo  -  tem essa inexplicável vocação para o clássico. Clássico não é o antigo ou o perfeito, é a imperfeição que desafia outra interminável interpelação, é o sempre contemporâneo e novo. É o que tem classe, esse fruto que uma centelha de qualquer génio dispôs muito acima de nós,para que,ao longo dos tempos,sempre o quiséssemos colher de modo a podermos amar o impossível... Nesse sentido, Carl Ph.Emmanuel Bach,ainda que arquivado entre os "pré-clássicos",é um clássico. Redescoberto pela musicologia hodierna  - tal como a obra genial de seu pai recomeçou a ser-nos desvendada, depois do apagão que se seguiu à sua fama coeva, pela lembrança de Mendelsohn. Desse filho de Johann Sebastian Bach, escrevia, em 1784 Christian Friedrich Daniel Schubart: Was man an seinen Werken taldet (o que se censura às suas obras) é um certo gosto excêntrico,uma bizarria,culto da dificuldade,escrita singular...recusa de se sujeitar à moda. Frederico o Grande, rei da Prússia, personalidade marcadamente forte  - e até rebelde enquanto príncipe  -  tinha, em matéria musical, gostos conservadores, não foi grande apreciador de Haydn ou do jovem Mozart, talvez por ter sido, além de excelente flautista e hábil cravista, compositor também. Conhecem-se-lhe três sinfonias, uma cantata para vozes e umas oitenta peças para flauta. Carl Phillipp, que esteve ao seu serviço, na corte de Berlim, de 1738 a 1767, muitas vezes acompanhou o rei, ao cravo, quando Frederico interpretava árias suas para flauta. Conta Friedrich Nicolai, nas suas Anekdoten von König Friedrich II von einingen Personen die um in waren (Berlim 1788), este saboroso episódio, que transcrevo da belíssima biografia de Frederico o Grande pelo general inglês Sir David Fraser: Em certa ocasião,o distinto músico da corte Johann Joachim Quantz, flautista e compositor (e que fora professor do rei ainda príncipe) estava presente quando Frederico tocava orquestralmente com outros. Frederico era responsável por um solo de flauta numa peça ainda não ensaiada...  ...Cometeu um erro e perdeu-se o tempo. Quantz,nunca especialmente tolerante e sempre mais músico profissional do que cortesão, fungou nasalmente e a ouvir-se bem. Carl Phillipp Emanuel Bach, que ali estava, cobriu o deslize improvisando umas frases ao piano,para enrolar tudo. Os outros tocadores ficaram imperturbáveis e Frederico terminou o seu solo. Era primeiro violino Franz Benda,e Frederico pediu-lhe,dias depois que lhe dissesse francamente se ele se tinha enganado na peça,cometido um erro. -  "Sim, Majestade, assim foi." - "Então talvez seja melhor reescreveres a partitura e, desta vez, em catarro de Quantz!" E as cartas que te escrevo? Serão elas em Princesa de mim? Em dó não são, certamente. Dou-te a mão e contigo escuto a Freye Fantasie e o Rondo em C menor de C.Ph.E. Bach. Dissessem outros o que diziam da sua bizarria, ele era admirado por Haydn e Mozart.

 

       Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira 

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