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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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É FIRME O AMOR QUE RESISTE

 

Minha Princesa de mim:

 

Dizem-nos narrativas épicas e mitológicas, fenícias e gregas, inspiradoras da Eneida de Virgílio, que Dido, filha do rei Muto, foi afastada de Tiro por seu irmão e deu à costa em África, ali onde está Cartago. Os berberes indígenas concederam-lhe como reino todo o território que ela cobrisse com a pele de uma vaca. Astuta, Dido mandou cortar a pele em tiras finíssimas, e com elas desenhou uma circunferência delimitando o campo de Cartago, que assim fundou, e de que seria rainha... (E assim ilustra a ocorrência um quadro de Giovanni Pittoni, no Hermitage, em São Petersburgo). Virgílio, no seu poema heróico, situa este episódio da chegada de Dido a Cartago, tirado da mitologia da expansão fenícia pelo mediterrâneo, no tempo da queda de Tróia, que teria ocorrido três séculos antes. Com o propósito evidente de fazer coincidir a fundação mítica de Roma por Eneias com a de Cartago, e de "profetizar" a derrota final desta por aquela, só na terceira guerra púnica, pela imolação de Dido numa pira de fogo, depois de ter cometido sepuku com a espada de Eneias o troiano que, depois de a ter possuído, a abandonara. O sacrifício de Dido não é circunstancialmente idêntico em todas as récitas.  O drama de amor de Dido e Eneias é narrado no livro quarto da epopeia escrita por Virgílio e foi tema de muitas obras de arte europeias: num quadro do Guercino, exposto na Galeria Spada, em Roma, a morte de Dido é representada em primeiro plano, acentuando o carácter sacrificial do acto da rainha, sobre uma pira funerária. Ao longe, vê-se o navio de Eneias, que Cupido parece não conseguir fazer regressar. A pintura é de 1631, mas já no século anterior Ludovico Dolce escrevera uma tragédia, em cujo prólogo Cupido anuncia a morte de Dido e a destruição de Cartago. Curiosamente,outra heroína romana se sacrifica trespassando-se com uma adaga, depois de ter sido violentada pelo filho do rei: Lucrécia, mulher de Collatinus que, na sequência de uma revolta popular que provocará juntamente com Junius Brutus, será, com este, cônsul da república que então substituirá a monarquia. Lucas Cranach, o Velho, pintou Lucrécia nua, cravando o punhal no peito. O quadro, de 1532, está na Gemäldegalerie, em Viena. Mas nem sempre as lendas e narrativas antigas sacrificam mulheres à ambição política, cobiça militar, ou concupiscência pessoal dos homens. Na Gemäldegalerie de Berlim, não na de Viena, por exemplo, está um A Continência de Scipio, pintado em 1728 por Jean Restout, representando Cipião o Africano a restituir a Allucius a sua bela prometida, que o general romano, vencedor do cartaginês Aníbal na batalha de Zama, recebera como espólio de guerra. E não só devolve a noiva, como, com ela, oferece o tesouro que os pais dela lhe tinham trazido para seu resgate... Publius Cornelius Scipio tem a magnanimidade generosa deste gesto, depois de ter conquistado, em terras da Hispânia, Carthago Nova, colónia da Carthago de Dido. Esta só será destruída pelo neto adoptivo do Africano, Publius Cornelius Aemilianus Scipio, que assim finalmente realizará a determinação do SPQR (senado e povo romano) : Delenda est Carthago! Cartago deve ser destruída para que o Mediterrâneo seja mare nostrum. A Dido & Aeneas de Purcell, com libreto de Nahum Tate, inspirado no livro IV da Eneida, única ópera desse compositor inglês, também foi muitas vezes considerada por caleidoscópios políticos, chegando a pretender-se que celebraria a restauração da monarquia protestante, com William e Mary, sendo as bruxas dessa história alegorias da Igreja Católica... Parece hoje provado que, afinal, a sua composição tem data anterior e destinava-se ao divertimento de Carlos II, casado com Catarina de Bragança e ocupando o trono inglês, após o exílio em França, durante a República de Crommwell. Por mim, não vejo qualquer intuito político na bela ópera, toda ela sempre cantada, sem diálogos recitados. E as bruxas não estão lá para meter medo, são já, após Shakespeare,  motivo de divertimento e riso, contrastando e realçando o drama que se narra e é trágica história de amor... Curiosamente, lembro-me de  já ter visto esta ópera precedida por uma pantomina de Eco, em que esta explica que repete tudo o que ouve porque Narciso não a quer ouvir... A abrir o ato II, a feiticeira convoca as suas fantasmagóricas irmãs bruxas: Wayward sisters, you that fright the lonely traveller by night, e, batendo às janelas dos moribundos, como assustadores corvos surgis, aparecei agora! Aparecei porque vos chamo para partilhar a fama de uma asneira que incendiará Cartago inteira! A cena passa-se na gruta em que Eneias possuirá sexualmente Dido. Uma tremenda trovoada pretende condenar o acto amoroso, estarrecer o público ( na segunda metade do sec. XVII?), e sobretudo anunciar, de acordo com a trágica lenda, que a rendição de Dido será, finalmente, a de Cartago... Assim respeitadas, com algum cepticismo e muita ironia musical (os coros de bruxas são divertidíssimos), as conveniências socio-políticas e pretensamente históricas, ficamos nós, espectadores e ouvintes, amantes de beleza e harmonia  --  e, talvez por tanto, fiéis ao sacrifício  --  com a última ária de Dido, que não pode aceitar a ambição de Eneias  --  essa em que ele crê porque irá fundar Roma  --  nem a sua traição aos deuses, para obedecer ao amor. O amor é assim: não pode, em si mesmo, conhecer divisão. E Dido canta: No faithless man, the course pursue... Segue, homem infiel, o teu caminho, que eu tão resoluta como tu estou: nenhum arrependimento há-de reclamar a mínima injúria feita à chama de Dido! Já basta, seja o que for que agora pretendas, teres pensado, por uma vez só, abandonar-me... E à sua aia Belinda dirá: Dá-me a mão Belinda, agora que as trevas me envolvem. Deixa-me repousar em teu regaço, mais tempo nele gostaria de descansar... Mas invade-me a morte... Bem vinda seja! E quando jazer o meu corpo na terra morto, não te atormentem os meus erros em teu peito! Lembra-te de mim, esquece o meu fado... Em cada um de nós vive um mundo. Ninguém tem direito a esquecê-lo. Nem nós, nem quem nos amachuca. Nenhuma razão de estado, nem qualquer outra  -  exceto a consciência e a fé de cada um  -  vale o sacrifício de uma vida. Jesus já morreu por todos. Dou-te uma mão cheia de firmeza.

 

          Camilo Maria

 


Camilo Martins de Oliveira 

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