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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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FOMOS EM BUSCA DO JAPÃO


27. INEI RAISAN

 

O Elogio da Sombra, que Junichiro Tanizaki publicou em 1933, aos 44 anos, vinte anos depois de A Tatuagem, a primeira novela que editou, poderia -  penso eu muitas vezes - intitular-se também O Elogio do Silêncio. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que se traz ao de cima, que se manifesta. E esta atitude vale tanto para o naturalista, como para o impressionista, o cubista ou o abstracionista: todos eles afirmam uma visão própria, pretendem transmitir realidades tal como delas se apoderaram. Para o japonês, o que se procura, o que determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. Olhar ou escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante  -  torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar ou escuta da alma que traz a obra de arte - cheia de um mundo invisível e inaudível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos , e a sua acumulação de objectos exibindo abundância material, com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nos interiores japoneses, o bom gosto não amontoa, não pretende mostrar nem demonstrar coisa alguma, basta-se. Afasta e singulariza cada objecto de estimação - e todos se guardam e esperam a sua vez de exposição - um kakemono pendurado na parede, uma caligrafia, um sumi-e, uma pintura, ou ainda um arranjo de flores, uma peça de cerâmica ou qualquer outro artesanato - de modo a poder ser contemplado e convidar ao íntimo diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples está patente na arquitectura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, tal como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, mesmo quando têm a grandeza de  Katsura, para não falar na elegância linear do palácio imperial de Kyoto. Esse refrear do exagero e da ostentação sente-se ainda nas construções mais elaboradas do que eu chamaria "barroco Tokugawa" - e que se ergueram para demonstrar a grandeza e a força de um poder político ou de uma linhagem - como o Nijo-jo, em Kyoto, ou os mausoléus dos shogun dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Mas vamos ao Inrei raisan, Elogio da sombra, do Tanizaki, não sem antes lembrar que já tínhamos falado de shoji (janelas ou divisórias em molduras de papel japonês translúcido) e de toko no ma (alcova ou recanto de uma sala, onde se coloca um único objecto decorativo, seja um arranjo floral, uma cerâmica, uma caligrafia...): Se comparássemos uma divisão de uma casa japonesa com um desenho a tinta da China, os shoji corresponderiam à parte em que a tinta está mais diluída, a toko no ma ao sítio onde ela é mais espessa. Cada vez que vejo uma toko no ma, essa obra prima da delicadeza, maravilha-me verificar até que ponto os japoneses penetraram os mistérios da sombra, e com que engenho souberam utilizar os jogos de sombra e de luz. E isso sem qualquer procura especial de qualquer efeito preciso. Numa palavra, sem outros meios além de madeira não trabalhada e paredes nuas, arranjou-se um espaço retirado, onde os raios luminosos que nele podem penetrar geram, aqui e ali, recantos vagamente escuros. E todavia, contemplando as trevas agachadas por detrás da trave superior, ou em redor de um vaso de flores, ou debaixo de uma prateleira, e sabendo bem que apenas são sombras insignificantes, sentimos que o ar, nesses lugares, encerra uma espessura de silêncio, que uma serenidade eternamente inalterável reina sobre essa escuridão. Feitas as contas, quando os ocidentais falam de "mistérios do Oriente" talvez assim se refiram a essa calma um tanto ou quanto inquietante, secretada pela sombra quando atinge aquela qualidade... Uma das minhas primeiras impressões, quando ia entrando na cultura japonesa, foi precisamente um  sentimento ou intuição do mistério através dessa experiência do silêncio e da sombra como forma de contemplação. Tanizaki chega a escrever: Há quem diga que a cozinha japonesa não é coisa que se coma ,mas coisa que se olha, pelo que sou mesmo tentado a dizer: que se olha e, mais ainda, se medita! Tal é, na verdade, o resultado da misteriosa harmonia entre a luz das candeias tremendo na sombra e o reflexo das lacas! E o escritor irá comparar o cinema japonês do seu tempo (a preto e branco) com o europeu ou americano, dizendo que ele é diferente, não só pelos temas e cenários, mas, desde logo, pela própria fotografia, pelo valor dos jogos de sombras e dos contrastes... E dirá mais: Se o fonógrafo e a rádio tivessem sido inventados por nós, é provável que teriam sido concebidos de modo a valorizar as qualidades próprias da nossa voz e da nossa música. Em princípio a nossa música caracteriza-se por uma certa retenção, pela importância que dá ao ambiente, a ponto de perder parte do seu encanto quando é gravada e amplificada. Na arte oratória evitamos as explosões da voz, cultivamos a elipse e, sobretudo, damos grande importância às pausas; ora, na reprodução mecânica do discurso, a pausa é completamente destruída... Tal como o prémio Nobel Kawabata, Tanizaki teve obra censurada durante a ditadura Showa, antes e durante a guerra do Pacífico. Ele foi, certamente, um romancista perturbante, e até difícil de classificar: já em 1910, aquando da publicação da sua primeira novela, a intelectualidade e crítica japonesa, em vésperas da transição da era Meiji para a Taisho, se mostrava surpreendida, irritada ou perplexa... Curiosamente, em seu abono surgiram duas grandes figuras contraditórias no pensamento e na literatura nipónica do tempo: o "romântico" e conservador Mori Ogai, de que já falámos, e o naturalista ou realista Nagae Kafu, que com o primeiro não tinha em comum nem o estatuto social, nem a filosofia e estilo de vida. Ao que dizem, Junichiro Tanizaki só nunca se terá aborrecido com a qualificação de esteta... E talvez seja obra prima deste romancista o ensaio sobre estética japonesa, que intitulou Elogio da Sombra. Aí, ironicamente, o romancista travesso, por vezes quase sórdido, revela-se um conservador japonês de gema. Será, quiçá por isso mesmo, um guia privilegiado para a interpelação de valores nipónicos no tempo e no modo. Que alma japonesa espreitará o mundo e a vida no universo electrónico e informático, que tem no bairro de Akihabara, em Tokyo, a sua maior montra, onde incessantemente surgem as últimas novidades, artigos de consumo que espicaçam comportamentos de isolamento pessoal e convívio virtual?  


Camilo Martins de Oliveira