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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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JAPÃO: UM ITINERÁRIO DE MUITOS OLHARES

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5. Arte e literatura: subtileza, silêncio e sombra
 

   Sendo basicamente uma tradução seu Nihon Bunka Shi (História da Cultura Japonesa), o ensaio do professor Ienaga Saburo intitulado, em inglês, Japanese Art: a Cultural Appreciation, percorre a evolução faseada da cultura nipónica, desde a idade da pedra até ao fim da era Edo. Pretende assim identificar as principais fisionomias do desenvolvimento dos vários aspetos da cultura japonesa durante o que se pode chamar período anterior à modernização -- isto é, o período anterior à Restauração Meiji de 1868 e a resultante introdução, em larga escala, de aquisições da ciência e tecnologia ocidentais, tal como da revolução industrial, que por sua vez conduziram ao desenvolvimento de uma sociedade capitalista. Como digo no prefácio deste meu itinerário, o Japão que desta vez viemos visitar é sensivelmente esse, ou seja, o que começa no século VI / VII, com reminiscências das tradições antigas, anteriores ao registo escrito, e se prolonga até quase ao fim do século XIX, quando o Império do Sol Nascente começa a tornar-se -- e a impor-se como -- uma forte potência mundial. Para simplificar, digamos que se trata do Japão clássico.

   Nas suas conclusões, o professor Ienaga aponta como primeira característica da cultura japonesa, ao longo da história, a falta de interesse na questão do conflito. E recorre ao filósofo e historiador Tsuda Sokichi (1873-1961) para afirmar que "bem", para um japonês, significa conformidade à ordem social e às autoridades, do mesmo modo que opor-se-lhes é "mal". A distinção entre bem e mal desenha-se claramente nesta definição. Mas "bem" não é apanágio de uma pessoa de altos ideais e devoção ao melhoramento de toda a humanidade. Em vez disso, significa o tipo de pessoa que sempre se dedica à manutenção do status quo e que obedece às leis do que se chama giri, palavra que é por vezes imperfeitamente traduzida por "justiça social", mas que traz com ela conotações de toda a espécie de obrigações e responsabilidades. [Sobre o giri escrevi a páginas 161 e 162 do meu Fomos em Busca do Japão, ilustrando com um exemplo respigado na literatura japonesa da era Meiji, precisamente do romance autobiográfico A Bailarina de Mori Ogai (1862-1922)]. Continua Ienaga: Pelo contrário, uma pessoa má será aquela que tenta dar rédea livre aos seus próprios desejos pessoais, e não, necessariamente, a pessoa fadada viciosa, de diabólica natureza, que considera o mal uma fonte de regozijo e que tenta espalhar destruição na própria vida humana. Tsuda fez esta análise sobre a literatura do período Edo, mas eu creio que pode ser vista como um comentário sobre uma característica que persiste através da cultura japonesa. Subjacente a este pensamento, há muita subtileza: não se dramatiza a luta entre o bem e o mal, as razões desta devem ser achadas no mais profundo da alma e condição humanas, têm a ver com o homem e a sua circunstância, sim, não somente com as obrigações do giri, mas, mais ainda, com a natureza ou a lembrança desse cordão umbilical, já que a frase de Ortega y Gasset -- estou sempre a lembrá-lo -- el hombre es un transfuga de la naturaleza encontra, na cultura japonesa, na literatura como nas artes plásticas, o sentimento contrário, esse de que o ser humano está indissociavelmente unido à natureza... A ideia de culpabilidade é outra. A pintura nipónica sempre privilegiou os temas da natureza, designadamente os símbolos -- retratados na fauna e na flora -- da sucessão das estações, ilustração clara do círculo do tempo, ou de como é aparente o conflito, já que as caras -- ou as verdades -- são aparências do mesmo ser. Daí serem inúteis e perigosas as palavras e as definições, mas sempre útil e generoso o silêncio, tal como essa busca da sombra em que se abrigam os segredos da alma e da concórdia. Silêncio e sombra são irmãos gémeos: para se escutar bem, é necessário fechar os olhos; e estes veem melhor quando não se distraem por aparências. Há um exercício de tiro ao arco, ainda hoje praticado, de inspiração zen, que nos ensina a acertar bem no centro do alvo se tivermos os olhos fechados no momento do disparo. Diz Pascal que le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas; parafraseando, digo agora que le coeur a des visions que la vision ne connaît pas...

   Para primeira abordagem de todos esses temas, digo quanto baste no Fomos em Busca do Japão. Mas, para este itinerário de muitos olhares, parece-me interessante, pensando sobretudo em visitas a templos de Kyoto como o Shoren-in, o Chion-in, o Nanzenji, e mesmo o Myoshinji, ou ainda o palácio Nijojo, falar da pintura de interiores -- sobre portas deslizantes, paredes, divisórias e biombos -- do período Heian, em que os temas são tirados da natureza ou de acontecimentos humanos. A esse universo se tem chamado "pintura das quatro estações", não só porque estas se encontram identificadas pelo curso dos astros, pela flora e fauna, mas porque as pessoas também surgem nos atos sociais pertinentes a cada época, conformes a calendários estabelecidos: peregrinações, festivais, celebrações em templos, etc. O professor Ienaga Saburo observa bem que ambas [as cenas da natureza e as com pessoas] são apresentadas em harmonia, nunca em conflito. Por exemplo, se o tópico for ameixeiras em flor, a pintura mostrará algo como raparigas entrando num jardim para ver as árvores. Se o assunto forem gansos selvagens, as aves provavelmente surgirão associadas a viajantes… ...Quando são ostensivamente dedicadas à descrição de coisas naturais, as pinturas incluem o humano, porque os pintores olhavam o homem e o seu ambiente natural como intimamente ligados entre si. Mesmo no género de pintura conhecido por "meisho-e", ou pinturas de lugares famosos, representações objetivas de cenas populares eram frequentemente meras cópias de pinturas das quatro estações com acrescentamento de trechos de poemas. (Há, neste museu, um biombo do 1º quartel do século XVIII, representando Itsukushima, célebre santuário shintoísta rodeado de templos budistas, precisamente na "ilha do templo" ou Myajima, em frente de Hiroshima, que comentarei precisamente pelo modo como anima com gente a representação de um lugar famoso]. Pinturas tratando do amor de homem e mulher, assunto de interesse puramente humano, tratado ao jeito de novelas, ligam as aventuras amorosas às mudanças de estação. Estes e outros exemplos semelhantes tornam claro que a pintura Yamato-e -- ou de tradição nipónica -- interpretava e exprimia o homem e a natureza numa relação de inseparável unidade. E não só a pintura que, aliás, como já referi, surge muitas vezes a integrar a caligrafia de um poema, mas de outros modos vários a sensibilidade japonesa vai insistindo nessa relação ontológica com a natureza. Quem tiver lido, ou vier a ler, o Genji Monogatari, ou qualquer haiku ou demais poesia japonesa -- ou mesmo romances modernos, como os do prémio Nobel Kawabata -- notará certamente que está lá, sempre presente, uma qualquer marca dessa intimidade da natureza no ser humano. Esta nipónica alma, enquanto modo muito próprio de pensar e sentir, deve-se, creio, ao tal amae -- que gosto de definir como a saudade irrecuperável do leite materno ou como uma espécie de resistência a transfugir da natureza -- talvez, quiçá, também ainda, ao mito inicial de um totalitarismo telúrico, ou à sageza budista de que ganhar é não desejar... Amae é aspirar-se à benevolência para connosco. Seja o que e como for, nos momentos críticos -- assim reza a História -- o ninjo dos afetos foi sendo vencido pelo giri das obrigações, por esse imperativo de disciplina e lealdade social, que levou tanta gente a morrer pelo seu chefe ou senhor, inclusive cometendo sepuku ou harakiri, se entretanto poupados pelo inimigo, desde os samurai das guerras feudais aos kamikaze que, aviadores suicidas, gritavam na 2ª Grande Guerra Tenno Henka banzai!, longa vida ao divino imperador...

   Mas, ficando pelos afetos, não posso deixar de referir, para além do Byodo-in, sobretudo pela expectativa do sol que iluminará Amida, mas também pela harmoniosa integração do templo na natureza circundante, o santuário de Toshogu, em Nikko, a nordeste de Tokyo, exemplo máximo do que já chamei barroco Tokugawa, ainda mais conivente com a verdura e o porte do bosque que o rodeia. Outra visita imperdível, como a Villa de Katsura, a sudoeste de Kyoto, insuperável arquitetura de segunda residência da nobreza nipónica, em que cada sala se vira para o silêncio e sombra da meditação interior ou se abre para a surpresa constante da visão da natureza. Até tem uma destinada a ver-se a lua cheia...

 

Camilo Martins de Oliveira

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