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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Capa do Livro "Quand l’Histoire Commence", Bertrand Badie

  1. UMA NOVA HISTÓRIA?

Nas CNRS Editions, do Centre National de la Recherche Scientifique, Bertrand Badie publicou, em 2012, um opúsculo intitulado Quand l´Histoire commence, pequeno ensaio sobre o desafio da globalização: E se o fim das relações internacionais clássicas, as dos diplomatas e soldados de antanho, fosse na realidade o princípio de uma nova história? Se então começasse a História, essa já não só dos Estados rivais, mas a verdadeira, a total, a da humanidade inteira e das sociedades compenetradas?
Esta ideia de nova História, de uma História que começa, surge em antítese à teoria do "fim da História", tal como o franco-russo Alexandre Kojéve (1902-1968) a desenhou, coroando uma análise do processo histórico europeu que é, afinal, uma leitura hegeliana de Thomas Hobbes. Diz Badie que a tese (de Kojéve) é sobretudo brilhante pela sua pertinência histórica: ela descreve bem e lindamente o modelo de desenvolvimento europeu. Aí encontramos as raízes feudais da guerra e os modos de invenção da alteridade que então se impuseram. Ali descobrimos a sociogénese dos Estados europeus que efectivamente se desenharam opondo-se uns aos outros...  
... Ali se adivinha uma história da nação, uma construção social da alteridade, o sentido profundo do estrangeiro que remete, na sua história semântica, para o incompreensível, para o outro que nunca será o próprio, que não poderá nem deverá jamais ser o equivalente de si...
Mas em que é que esta lógica e esta história são fatais, marcas forçadas do destino, ao ponto de virem abolir a História se deixarem de ser seguidas? No plano lógico, porque será a política a arte de gerir a confrontação, mais do que a de organizar a coexistência? E porque é que esta visão alternativa, que também tem os seus defensores, e em todas as culturas, não se estenderia a todo o espaço mundial?

Assim, ao arrepio dos teóricos do afrontamento - e deste enquanto motor da História, seja na dialéctica hegeliano-marxista do senhor e do escravo, ou em pensadores vários do concerto das nações (incluindo, claro fica, o nazi Carl Schmitt), ou ainda nos arautos do choque das civilizações, para não falarmos em teorias da natural regulação dos mercados pela concorrência - há quem proponha uma nova História, dinamizada pela utopia da organização da inevitável coexistência, pela procura do respeito da diferença e das singularidades, por um lado, e da harmonização de regras universais que sustenham o reconhecimento essencial da prioridade da paz que assenta na justiça...
Será certamente muito difícil. Mas será possível. Na sequência do abominável e assassino ataque terrorista ao semanário Charlie e a uma loja cacher, falou-se e escreveu-se muito, levantaram-se publicamente manifestações e protestos vários. Reparei que, mais do que a profunda mágoa humana, de cada um e de todos nós, com que nos fere a destruição violenta de uma vida - que, pela sua natureza e pela nossa condição comum, é também a nossa vida - se considerou o crime contra a liberdade de expressão.
Esqueceu-se muitas vezes, em tantos discursos, que crime bem maior é atentar contra a vida humana. Sobre este, todos podem sentir da mesma maneira, pelo que denunciá-lo, chorá-lo e puni-lo, nos reunirá num valor comungado. E era sobre este ponto de encontro que se deveria ter mais chamado a atenção e o coração de todos. Mas preferiu-se, quase sempre, insistir na revolta contra a violação de um direito de expressão que, para nós, é universal e deve ser ilimitado, mas para outros (e são muitos) não pode nem deve ser ofensivo.
Bem sei que, pelo seu lado subjectivo - a ofensa sente-se - é praticamente e juridicamente impossível definir-lhe limites ou contornos universalmente aceitáveis: o que magoa uns, é motivo de risota para outros, e a verdade de uns pode ser razão de contestação para outros. Por isso mesmo, a cada um de nós deve ser reconhecido o direito inalienável de se exprimir sem restrições externas.
Isto dito, reafirmo que não me parece sensato, e muito menos de boa política, ter-se continuado a impor à atenção universal a nossa firme condenação daqueles assassinatos por considerá-los atentados contra a liberdade de expressão, mais insistentemente do que a nossa repugnância face a tão sórdida violação do mais fundamental de todos os direitos, do qual aliás decorre o necessário respeito pela dignidade igual de todos: o direito à vida.
Essoutra mensagem nossa teria vindo em apoio aos milhões e milhões de muçulmanos - e tantos, nesta circunstância, voltaram a manifestar-se - que veem no Corão a revelação do amor misericordioso de Deus, e incansavelmente vão pondo em causa a tradição, sobretudo sunita, dos ditos do Profeta (hadith), que tantos ulemas ou teólogos islâmicos foram, durante séculos, preferindo ao ensino do próprio texto do livro revelado, inicialmente, aliás, sob comando de califas da expansão omíada e abássida. E teria dado a muitos outros - que vivem e trabalham (até nas forças de defesa e segurança, como nos serviços de saúde) nos nossos países, e são nossos concidadãos, como tantos que conheci na Guiné, leais servidores de Portugal - mais necessária confiança nos valores da nossa cultura e na sua contribuição para a construção de um mundo que seja, para todos igualmente, mais justo e mais pacífico.


Camilo Martins de Oliveira

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