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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Kazuo Shinohara imagina um espaço com uma escala que confunde a medida humana.


“I would like for the houses I make to stand on this earth forever.”, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)


Encontrar uma forma, neste mundo cheio de coisas, deveria estar relacionado com a procura de algo que realmente deve existir - ligado à subjetividade de cada um e muito próximo da compreensão de uma experiência particular. Kazuo Shinohara no texto ’Theory of Residential Architecture’ (1967) reflete sobre a urgente necessidade em produzir uma arquitetura que perdure no tempo.


Segundo Shinohara, a constituição de um espaço interessado com a natureza e o desenvolvimento do ser humano, pode contribuir para uma intensa observação de si próprio. A constante mutabilidade é uma característica intrínseca do cosmos - o ser humano e tudo ao seu redor estão sempre em constante mutação (não existe distinção entre um e outro).


‘I believe that the world flows ceaselessly through the small spaces of the house.’, Kazuo Shinohara, ‘Beyond Symbol Spaces’ (1971)


Um espaço, também nunca toma a forma que se deseja, está sempre em permanente alteração. Para Shinohara, a arquitetura não existe para manipular o ser humano, mas para abrir novas possibilidades e transições. 


No livro ‘Kazuo Shinohara: Traversing the House and the City’ de Seng Kuan (ed.) lê-se que Shinohara redefiniu a habitação através de um espaço onde o significado pode ser gerado com base numa experiência pura e singular - um espaço que privilegia a relação entre o sujeito que é único e o meio envolvente que é específico.


‘Human emotion must never be identified with a mere gap between material things’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)


A experiência sensível faz parte da vida humana. A arquitetura para ser eterna tem de ser capaz de criar um espaço possibilitador que incorpora o fluxo da intensidade da vida humana. Um espaço duradouro necessita de todos os seus serviços e equipamentos mecânicos, somente como tela de fundo. A vida numa casa não acontece entre soluções técnicas e funcionais. Segundo Shinohara, uma casa é a forma expressiva mais ativa, pois é na ação física diária que o ser humano floresce. 


Durante um primeiro período ou estilo, do qual a Umbrella House faz parte, Shinohara desenvolveu uma retórica de permanência, de expansividade, de irracionalidade, que acentuava os desejos mais emotivos de uma casa - contrapondo-se à corrente arquitetónica Metabolista. Seng Kuan explica que o primeiro estilo de Shinohara é um exercício de diálogo com a tradição arquitetónica japonesa, onde se destilaram conceitos de composição como a frontalidade e a divisão a partir dos seus estudos de habitações pré-históricas, casas comuns minka e edifícios de estilo Shoin (tais como Katsura Imperial Villa e Jikō-in).


“From the moment a small space touches the human heart it has become art.’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)


Segundo Shinohara, o espaço de uma casa incorpora espontaneamente uma resposta à abundância da emoção humana. A casa é assim a forma criada pelo ser humano mais integral e intensa. Uma casa contém tudo aquilo que constitui vida.


Segundo Shinohara, para se moldar a vida e segurar o que é fugaz, é preciso criar um espaço de conceitos. Os conceitos não se descrevem por palavras e só residem nos espaços criados que correspondem aos desejos mais profundos. Shinohara não pretende estabelecer bases sólidas, estáticas e uniformes, mas, sim, de alguma maneira segurar, firmar e conter emoções, reações e variações à deriva e sem rumo.


Shinohara imagina, por isso, um espaço com uma escala para além do que se conhece, para além de sistemas formalizados e regulamentados - uma escala que confunde a medida humana. Shinohara anseia, assim por uma extensão abstrata e inesperada do chamado espaço simbólico - onde toda a concretude do quotidiano será posta em causa como forma de recuperar a extensão da perceção que se tem do mundo. 


‘I want to create spaces that are beyond mere human physical scale, and then return these to human beings. (…) The intuitive impulsiveness of an architect may well capture spaces having non-everyday scale.’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Gaston Bachelard, a casa e o universo.


“C’était comme une nuit d’hiver, avec une neige pour étouffer le monde décidément.”, Rimbaud (Bachelard 1994, 40)


Uma verdadeira casa contém todo o universo assim que o mundo exterior se uniformiza. 


No livro “The Poetics of Space”, Gaston Bachelard escreve que a existência de condições adversas exteriores pode fortalecer o real significado de uma casa. A presença, por exemplo, do inverno pode aumentar o valor de uma casa como lugar permanente.


Não é a solidez das paredes que oferece resistência às intempéries, pois a ausência de resposta é uma das características essenciais na definição de uma casa. Segundo Bachelard, esta ausência de luta, intrínseca a uma casa, pode significar, por um lado, enraizamento, proteção e resistência e, por outro confiança na sabedoria dos elementos que, mesmo em fúria, veem as casas dos seres humanos e concordam em protegê-las. Bachelard explica que as tempestades são particularmente agressivas nas casas que acentuam a fragilidade do ser humano. 


Existe um diálogo constante entre uma casa e o seu universo exterior. Bachelard argumenta que é o inverno, por exemplo, que faz aumentar a necessidade de abrigo e de proteção. Durante o inverno, uma casa torna-se espaço de reserva e o mundo exterior reduz-se a nada, a um não-lugar - a neve e a escuridão uniformizam e sufocam todo o universo (as estradas desaparecem, os sons ficam abafados e todas as cores se ocultam). As certezas exteriores deixam de existir. Bachelard afirma que o inverno simplifica e imobiliza o cosmos. O mundo passa a estar fragmentado, fechado e finito. 


Como resultado desta simplificação universal, sente-se a negação do cosmos. O espaço interior dilata-se e expande-se. O eu separa-se do universo e interrompe a sua ligação ao mundo exterior. Dentro de uma casa tudo se multiplica e se expõe. A natureza verdadeira do eu poderá experienciar toda e qualquer interioridade com maior intensidade. No interior de uma casa, há espaço para a existência, a matéria e o movimento acontecer. 


A casa é, assim um centro bem definido de regressos e de abertura para todo aquele que sonha. É um espaço paradoxal, de disponibilidade imediata e de obscuridade profunda. O diálogo entre os dois espaços - interior e exterior - torna-se então dinâmico, ora de confiança ora de angústia. Casa e cosmos não são apenas dois espaços contíguos. Na realidade, interior e exterior, são dois elementos coincidentes e que, apesar de opostos podem despertam um no outro a eternidade. O espaço interior de uma casa é assim um fragmento de infinito sem forma, pura matéria celeste.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Umbrella House e a imanência do espaço vazio.


“Quand les cimes de notre ciel se rejoindront
Ma maison aura un toit.”, Paul Eluard (Bachelard 1994, 38)


Umbrella House
(1959-1961) de Kazuo Shinohara é uma casa total e muito pequena completamente exposta à imponente estrutura que a cobre e que a sustenta. 


Shinohara percepciona uma casa como sendo como uma obra arte - um lugar onde se expressa subjectividade. Uma casa é muito mais do que a concretização de determinadas tarefas quotidianas. É acima de tudo a materialização de uma ideia, cuja relação com qualquer contexto deve ser universal. É um lugar que permite o sonho, a expressão, o movimento, a hesitação, a demora, a espera, o encontro e a solidão. É claro constituída por hábitos e ritmos, mas é sobretudo testemunha de pensamentos e sentimentos irrepetíveis. É passado, presente e futuro. É intimidade, presença e abismo. Por isso, a Umbrella House não é só um contentor funcional mas sim um invólucro espiritual. É espaço que transcende e que é difícil de compreender.


Nesta casa objecto e sujeito fundem-se. Shinohara deseja simular um espaço sem referências explícitas, nem detalhes concretos em relação a exemplos tradicionais japoneses. Talvez o templo ou a casa do chá sejam as referências mais próximas, onde a enorme cobertura piramidal é unidade. O nome atribuído à casa - umbrella (guarda-chuva) - traz à memória as delicadas construções de papel. A sua cobertura flutuante transforma esta casa num objecto singular, num todo único e indeterminado, que pode ser compreendido por inteiro. Shinohara ao expôr, no seu interior, a estrutura de madeira que suporta a cobertura, afirma a capacidade que uma casa tem de proteger e de abrigar. 


Numa casa tão pequena, Shinohara corporiza o espaço não funcional ou abstrato (em reação contra o conceito de Existenzminimum dos anos 30) através de uma simplificação radical das funções necessárias para o habitar. Para Shinohara, só foi possível desenvolver a ideia de espaço não usado e não existente tornando imanente o espaço vazio. Espaço, para Shinohara, não é algo físico nem substancial - é fluxo, transitoriedade, transparência, impermanência e imersão.


Ao enfatizar-se o esvaziar cósmico e a ausência de funções - principalmente numa casa tão pequena e perante uma sociedade extremamente mecanizada - possibilita-se assim a imensidão da vida humana. 


“The real work of design is not the mere production of housing as a social goal, but should instead be the creation of spaces that will strongly appeal to people. Unless it attains the status of a work of art, a house has no reason for being. The strength of my conviction that 'A House is a Work of Art' was born of the struggle with this small house. I wished to express the force of space contained in the doma (earthen-floor room) of an old Japanese farmhouse, this time by means of the geometric structural design of a karakasa (oiled-paper Japanese umbrella).", Kazuo Shinohara, text for Umbrella House, October 1962 (first published in English in The Japan Architect, vol. 38, Tokyo, February 1963).


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


“Tante Olga” de Anatol Herzfeld simboliza uma nova forma de conduzir a vida. 


“Kunst ist Seelsorge (A Arte sustenta a alma)”, Anatol Herzfeld 


Anatol Herzfeld (Karl-Heinz Herzfeld, 1931-2019) foi aluno de Joseph Beuys, mas começou a sua carreira como polícia e pugilista. Manteve a sua ligação à polícia, enquanto artista, através da educação rodoviária para crianças, na qual explicava aos seus alunos as regras de trânsito através de fantoches por si criados. Ao longo do seu trabalho como artista, as crianças foram também um tema fundamental do seu trabalho, uma vez que tinha um fascínio pela extraordinária intuição que as crianças têm quando se exprimem - e que frequentemente é suprimida na escola.


Anatol, tal como Beuys, sempre alargou a sua prática artística muito para além da pintura e do desenho, pois ambos acreditavam que a arte tem a capacidade de transformar e curar o ser humano. Ao utilizar frequentemente elementos como a cadeira, a mesa, a casa, mas também o soldado, o peixe e a flor crucífera, Anatol deseja transmitir a ideia de que a arte talvez não constitua uma profissão especializada, mas sim uma atitude humanitária intensificada.


Uma das obras-chave que Anatol realizou para a Documenta 6 de 1977, em Kassel, foi um barco feito de folhas de fibra de vidro - com a forma de um barco de papel - chamado "Tante Olga”. Anatol navegou este barco desde o Norte da Alemanha até Kassel. O barco recebeu o nome de Olga Tapken, que era a proprietária de um restaurante em Oldenburg, e que concedeu, a ele e aos seus colegas artistas, o terreno para a academia "Freie Akademie Oldenburg", que ele fundou juntamente com o artista local Eckart Grenzer. Trata-se de uma escola secundária destinada a formar artistas, independentemente da sua educação escolar, na tradição de Joseph Beuys, que se opunha às rígidas regras de candidatura às universidades de arte que exigiam um nível A (Abitur) para a admissão. A escola atraiu, para além do próprio Joseph Beuys, também Blinky Palermo (esta alcunha foi também dada por Anatol em memória de um famoso pugilista com o mesmo nome), que trabalhou e actuou juntamente com Anatol em vários eventos. O lema desta escola era "Kunst ist Arbeit--Arbeit ist Kunst” (Arte é trabalho, trabalho é arte) - um princípio que Anatol também promoveu com os seus eventos artísticos "Arbeitszeit" (tempo de trabalho).


O objetivo da viagem do seu barco “Tante Olga” era levar todos os sonhos das crianças até Kassel. Mas representava também uma acção / protesto contra a divisão de Friesland em dois distritos distintos de Wittmund e Ammerland (revertida em 1980). Na sua opinião, não podia ser aceitável destruir uma área que cresceu una culturalmente durante séculos. Joseph Beuys comentou após esta viagem que “Finalmente a arte era livre em terra, no mar e no ar".


O barco como símbolo representa uma travessia e uma descontinuidade, simboliza um meio para chegar a um outro modo actual de ser. Se a vida e a existência são uma viagem, o barco possibilita a transição e a transformação. A possibilidade de um renascimento, a oportunidade de passar de um estado a outro mais essencial. Por isso, este barco de Anatol simboliza uma nova forma de conduzir a vida. 


Com a sua viagem, Anatol pôde trazer para Kasssel o seu apoio às crianças e também o seu princípio de "Arbeitszeit”. Foi a partir daqui que Anatol se estabeleceu igualmente como artista performativo, utilizando as suas obras para transmitir mensagens políticas. Um exemplo mais recente é um enorme canhão de ferro puxado por um tractor que Anatol utilizou para lançar sementes de flores e borboletas de papel em vários locais. O barco “Tante Olga” ainda existe e atualmente está exposto no espaço exterior de uma escola em Kassel.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O Upper Lawn Pavilion possibilita o aumento da duração de momentos específicos e insignificantes.


“Rather it is a romantic vignette of a mural play-life of weekend hermits, in a hermitage that is an unassuming permanent-tent whose whole encircling landscape (…) is the rustic setting for a ‘gazebo’ from which to watch the interweaving patterns of weather and seasons.”, Alison Smithson in Diary (1962-82) (Smithson 2023, 51)


O Upper Lawn ou Solar Pavilion é arquitetura que deixa a vida acontecer. É arquitetura que não se impõe, nem demonstra qualquer tipo de poder. É acontecimento que se adapta e que vive da constante mudança e transitoriedade permanente. É recipiente capaz de generosamente gravar, fixar e revelar um lugar particular na sua plenitude. Usa a natureza como testemunha da vida banal que se passa dentro de uma cápsula por vezes fria, húmida, vazia e completamente exposta.


Este invólucro-experiência é fonte infinita de repouso, de ideias e de pensamentos que têm a possibilidade de infiltrar-se na consciência humana. É dador de tempo, que permite a demora. É revelador de diferentes estados e possibilita o aumento da duração de momentos específicos e insignificantes: “Bareness restores to ordinary objects their ‘absolute quality’”, Alison Smithson (Smithson 2023, 59)


O diário do Upper Lawn Pavilion, escrito por Alison Smithson, publicado no livro “Upper Lawn Solar Pavilion” dá a conhecer, tal como num filme, as histórias que se passam dentro de uma casa. Paul Clarke, no texto “Sticks and Stones” (Smithson 2023, 7-15), escreve que a arquitetura dos Smithsons embora se oriente para uma certa simplicidade, desencadeia sobretudo um complexo campo de oportunidades ínfimas no seu habitar. Clarke explica que os Smithsons acreditavam na potência da liberdade de movimentos e no papel performativo dos habitantes na formação da arquitetura. É a ocupação que dá vida. Ao nada ser insignificante, tudo ganha uma enorme importância. A arquitetura é assim feita de momentos insignificantes - das mudanças de luz, da definição de sombras, das diferentes estações, dos ritmos, dos sons e da consciência do tempo que passa.


Clarke escreve que os Smithsons se afastaram de uma arquitetura puramente formal, representativa e estática e iniciaram uma experiência espacial que é enriquecida pela vida, pela materialidade e pelo lugar. Os Smithsons possibilitaram a reconciliação do interior e do exterior, ao sublinhar o mundo tal como encontrado. Os Smithsons transformaram a arquitetura num observatório, de maneira a reencontrar-se com o seu princípio primeiro - um invólucro que vê através de um vidro, de um filtro, de um espelho.


Este pavilhão solar é uma membrana-testemunha que ora se fecha ora se abre. O jardim, a paisagem e a história daquele lugar fazem parte permanente deste espaço. Clarke lembra a atenção dos Smithsons em relação à arquitetura como um fenómeno transitório, de maneira a eliminar qualquer sentido de duração e de permanência. O transitório, para os Smithsons, é a condição necessária para que a arquitetura se possa sintonizar com um contexto específico. A arquitetura é testemunha de um tempo limitado, é aquilo que está entre a terra e o céu. É a transição entre o ser humano e o mundo. O Upper Lawn Pavilion está agarrado às pedras da antiga casa mas eleva-se para o desconhecido, para o incerto e para o intemporal.


No prefácio escrito para a primeira edição deste diário, publicado em 1985, Enric Miralles escreveu que este pavilhão é gerador por excelência daquilo que é essencial. Por ser esvaziado, tudo se modifica à mais minúscula alteração. Este é um espaço protegido e que tal como um caleidoscópio nos oferece infinitas imagens frágeis, irrepetíveis, presas por um acaso. Aqui a vida pode ser vivida de forma mais pura e subtil, em consonância com as flutuações do tempo. O Upper Lawn Pavilio representa assim um sentido de futuro e de experiência única, mas principalmente celebra a vida fugaz que acontece dentro e fora de um espaço.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme ‘Le Genou de Claire’ é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu.


No filme ‘Le Genou de Claire’ (Eric Rohmer, 1970) o espaço exterior físico manipula e influencia a vida das personagens. O espaço exterior é assim entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera material.


A história deste filme só existe porque se dá naquele determinado lugar e naquele preciso momento. Abre-se numa porção vaga e desocupada do tempo. Jérôme aceita as regras de Aurora para justificar o seu amor fiel e verdadeiro a Lucinde. Na opinião de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, Aurora, é a verdadeira narradora desta história ao conduzir as cegas acções de Jérôme. É o carácter demiurgo de Aurora que transporta Jérôme para momentos de escolha. É através de Aurora que Jérôme se fragmenta e se transforma em corpo que sente sem restrições. É um momento de prova, de resistência e de decisão para Jérôme de modo a encarnar algo sublime.


Em ‘Le Genou de Claire’, a película foi filmada cronologicamente de modo a proporcionar uma acentuação das verdadeiras e objetivas variações e instabilidades do tempo e do espaço que se refletem nas personagens. As montanhas, o lago, as cerejeiras, o sol, a chuva, as diferentes horas e a distinta luz contribuem para explorar o movimento aleatório que permite o advir da reflexão e da narração. C. G. Crisp, no livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, escreve que nos filmes de Rohmer, a moral parece originar-se natural e inevitavelmente de uma observação objectiva do mundo, em vez de ser uma ordem imposta a esse mundo: “the world must seem to generate the ideology, rather than the ideology the world.” (Crisp 1988, 34). 


Deste modo, apesar das tentativas permanentes do narrador em controlar as circunstâncias exteriores, este filme de Rohmer é meteorológico porque parece estar constantemente dispostos à mudança e ao acaso. São os lugares que ajudam a construir as personagens de Rohmer. É precisamente junto do lago Annecy que Jérôme se vai construindo e se marginalizando. O filme faz crer que é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu (lugar de reflexão) através do inesperado confronto com os outros (lugar de relações humanas).


“Rohmer’s Moral Tales should deal with the unstable, the relative - as must any narrative - and that the ‘pre-destined beloved’ should be more or less absent from the films. Love, in this reading, is ’something else’ - or rather ‘somewhere else’ - it is outside time and outside narrative. Only the digression from that state, only the sensual desire with its implication of movement and process, can let itself be told.” (Crisp 1988, 66)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme Le Signe du Lion, a cidade é usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino.


No filme Le Signe du Lion (Eric Rohmer, 1959) a cidade aparece como o último refúgio do ser humano. Revela-se abrigo mas também uma claustrofóbica prisão. Neste filme, a cidade é a condutora para a redenção e para o arrependimento.


A história de Le Signe du Lion acompanha a transformação de Pierre Wesselrin, um artista fracassado e boémio que vive em Saint-Germain-des-Prés. Pierre ficou sem casa logo após ter sido deserdado. Apesar do seu talento para a música, Pierre sempre dependeu dos seus amigos para viver. É verão e todos estão ausentes. Pierre procura em vão alguém que o salve.


Objetivamente vai-se seguindo, a degradação desta personagem. Ao seguir Pierre pelas ruas de Paris, presencia-se ao que ele está exposto, permite-se a participação da consciência da personagem e a uma visão objetiva de uma sucessão de factos. O espaço físico de Paris é descrito sob um sol tórrido e o andar lento, perdido e abandonado de Pierre. A cidade é assim usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino. É uma odisseia de quem anda sem parar, de quem quer encontrar um poiso num espaço duro e cheio de pedra. A cidade descobre-se árida e desolada e a pedra, neste filme, representa a rigidez, a ordem, a opressão e a restrição urbana.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.” de C. G. Crisp lê-se que Rohmer, em Le Signe du Lion abstem-se de inserir no filme alusões explicitas às implicações religiosas da narrativa - é a exploração de um trajeto de uma personagem na sociedade e a sua relação com os outros que aqui importa. Rohmer confia que será através de uma paciente e meticulosa acumulação de observações do mundo real exterior que irão revelar inevitavelmente a evolução da personagem. (Crisp 1988, 26)


Pierre perdeu o seu lugar, o seu território e quer voltar a tê-lo. Mas o desalento e a resignação dominam os passos deste homem.


Rohmer filma Paris meticulosamente, seguindo percursos com precisão topográfica. No livro “Eric Rohmer”, Joël Magny escreve que Rohmer filma o estado de alma de Pierre, indiretamente, através da cidade visível. Por meio da composição, do som, da música repetitiva, da luz, de símbolos e da montagem - o mundo objetivo segue assim como sendo o reflexo do mundo subjetivo de Pierre. Para Magny, Rohmer realiza um cinema que dá a conhecer, que dá a ver através do espaço e do tempo. Na verdade, os trajetos físicos estão ligados a motivos e a aspirações espirituais. Magny explica que cada gesto, cada passo e cada movimento têm um duplo significado físico/material e intelectual/metafísico. Cada percurso é revelador da essência das coisas. Por isso, ao procurar abordar objetivamente o mundo e os indivíduos, Rohmer consegue também aproximar-se do acaso e do inexplicável. O modo de vida de Pierre, em Le Signe du Lion consistia em acreditar simplesmente na sua sorte e não no seu talento e em esperar por um meio de subsistência vindo do exterior (de amigos ou de uma tia com herança).


Crisp escreve que no decorrer da sua degradação física, Pierre, despojado de tudo e preso num labirinto de pedra quente, é forçado a seguir caminhos (urbanos e suburbanos) sob o olhar impiedoso de Deus. Nesse momento a cidade recusa-se a abrir qualquer horizonte. Na opinião de Crisp, a luta contra a pedra das paredes da cidade é uma metáfora que descreve o combate que Pierre tem de travar contra si próprio e contra a sua natureza mundana. Como se de um grande peso se tratasse, Pierre quer libertar-se das pedras assim como deseja aprender a rejeitar o domínio das coisas do mundo.


Para Rohmer, a existência de Deus não é deduzida diretamente através da ordem terrena, é sim, um compromisso total e irracional. Para Crisp, embora seja possível interpretar as experiências de Pierre como uma provação, os vários momentos em que parece não haver intervenção divina afiguram-se arbitrários, ambíguos e até mesmo acidentais (a herança perdida, o óleo derramado, o bilhete de metro caído, os amigos ausentes, o sapato quebrado).


“On peut lire alors cette fable comme une parabole chrétienne: aide-toi, le Ciel t'aidera! C'est lorsque Wesselrin utilise ses dons musicaux (qu'il avait galvaudés jusque-là) pour gagner les quelques piécettes nécessaires à sa subsistance, en jouant du violon à la terrasse des cafés remplis de touristes, que le ciel lui enverra la Grâce. C'est par sa musique que ses amis vont le retrouver.” (Magny 1986, 35)


Só no final, ao tocar violino, no limiar do abismo e da total desintegração, Pierre realiza que as suas pretensões eram vazias e irrelevantes. A salvação de Pierre é assim racionalmente injustificável, é ordem acaso. Magny esclarece que o plano divino, que faz de Pierre de novo um herdeiro, é a expressão do momento em que, quando não há mais perigo de decadência, quando não se pode cair mais fundo, o milagre acontece e o movimento da esperança ressuscita.


Para Crisp, Pierre personifica toda a humanidade ao ter de ultrapassar sucessivas provas físicas que o levarão da queda à culpa e da graça e à salvação. E a cidade é a testemunha deste prodígio e a possibilitadora desse momento fora do tempo - é espaço onde todas as regras são suspensas, onde a fenda se abre e a ordem sobrenatural se manifesta. É a cidade que faz com que de novo Pierre encontre o seu caminho.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Em Les Nuits de la Pleine Lune opõe-se espiritualidade e fisicalidade.


O espaço físico reflete o interior de cada ser. A atenção, ao mundo que nos rodeia, recai sempre sobre aquilo que nos dá outra dimensão. Os filmes de Éric Rohmer promovem frequentemente a analogia entre o pensamento e o espaço físico.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, C. G. Crisp explica que, no filme Les Nuits de la Pleine Lune (Rohmer, 1984) , a obsessão de Louise em estar sempre no centro, onde acontece tudo, transmite-se nas constantes viagens entre as duas casas que se situam em Marne la Vallée e Paris. Louise tem vontade de estar no lugar de maior artifício, pretensão e movimento e não à margem. Crisp explica que até para Louise as outras personagens servem somente para fornecer olhares de admiração e estabelecer uma infinita rede de conexões.


O provérbio, que aparece no genérico, lembra que quem tem duas casas pode enlouquecer e pôr em perigo a sua alma. Segundo Crisp, o erro de Louise é o de confundir o centro geográfico e social (neste caso Paris) com o centro espiritual (lugar onde que a vida fará sentido). Nos filmes de Rohmer, as verdades essenciais e as relações permanentes só são descobertas na periferia das coisas, na borda, no que está perdido, em instantes fugazes ou em momentos em que a cidade (espaço) se torna enganosa e indiferente. A intensidade da vida metropolitana faz o indivíduo perder-se no anonimato da agitação.


O novo conjunto habitacional de Marne la Vallée (onde Louise habita com Rémi) parece ser sombrio e taciturno e Louise sente-se aí aprisionada. Louise, durante todo o filme, não deseja encontrar-se em Marne la Vallée. Louise anseia sim pelo alvoroço e a inquietação da cidade central para se esvaecer. Crisp escreve que Louise é acima de tudo seduzida pela necessidade de ser completamente livre e de manter todas as possibilidades em aberto.


“Louise: (…) J’ai besoin d’être seule, de temps en temps, vraiment seule. (…)
Octave: La solitude, ce n’est pas marrant du tout.
Louise: Je verrai. Qu’on me laisse au moins voir par moi-même!
Octave: Qui t’empêche?
Louise: Les autres, les gens qui m’aiment, en général. On m’aime trop.” (Rohmer 1999, 13)


Para Crisp, o filme explora motivos já conhecidos na obra de Rohmer, no que diz respeito à oposição e confronto entre espiritualidade e fisicalidade. Na série dos contos morais, a personagem principal conseguia, como que por milagre escapar às fraquezas espirituais. Porém, em Les Nuits de la Pleine Lune, a éterea Louise não é resgatada por nenhuma moral. Mas é no final, sob a lua cheia, que a casa de Paris (o espaço central) passa a ser cativeiro. É a própria Louise, que propõe a Rémi a abertura de outras possibilidades (sem imaginar o desgosto que irá ter).


Para Crisp, a angústia de Louise, no final, é um sinal de derrota, mas é principalmente um sinal de conversão tardia a sentimentos profundos. Na opinião de Crisp os jovens deste filme são descrito através de uma existência sombria e sem sentido - incapazes de escolher, ávidos de experiência e de tudo ao mesmo tempo e carentes de princípios (pelo menos inicialmente). Louise não suporta a natureza - a vida no campo provoca-lhe angustia - mas Crisp sublinha que é o seu estilo de vida noturno que a fará redescobrir precisamente o domínio dos seus impulsos através da natureza lunar.


Sendo assim, Crisp termina, esclarecendo que este é um dos filmes que mais efetivamente explora as oposições estruturais que estão presentes na obra de Rohmer. Neste filme, opõe-se liberdade e pertença; multiplicidade e unidade; espiritualidade e fisicalidade. Na busca pela liberdade, Louise toma consciência da sua dependência. Na procura pela sua individualidade, Louise encontra-se apenas solitária. Na vontade em viver no centro de tudo, Louise descobre que é na margem que estão os sentimentos mais profundos e permanentes. Estas e outras ironias servem para demonstrar que, dentro da estrutura fixa, característica dos filmes de Rohmer, existe infinito espaço contentor de contradições, isto porque o espaço físico é mesmo reflexo da dimensão interior.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior.


“.. Architecture produces desire. The exhilaration we find when we walk into the space between or inside certain buildings produces a kind of psychological space. It can represent an experience we never had before and want to see more of.”, Steven Holl (Holl 2008, 29)


Steven Holl no livro “Urbanisms. Working with doubt”, escreve que a dúvida deve fazer parte de um projeto urbano. É a dúvida que suspende o absoluto e a perfeição e que permite a construção de sistemas mais dinâmicos e abertos. Steven Holl é da opinião de que o poder experimental das cidades não pode ser completamente racionalizado, deve sim ser estudado subjetivamente.


A subjetividade associada assim à dúvida pode ajudar a recuperar a importância de características fenomenológicas no contexto urbano. São o espaço, a matéria, a luz, a cor e o som que acentuam e incentivam as perceções de cada indivíduo e podem dar profundidade à realidade objetiva.


A experiência urbana cheia de contradições e incoerências pode, deste modo, ser imensamente enriquecedora para o ser humano. Para Steven Holl, a verdadeira tarefa do urbanista deve sobretudo acentuar valores relacionais e de conexão, de maneira que a arquitetura de pequena escala possa ser o elemento primeiro, apto a gerar essas necessárias ligações.


Steven Holl explica que é a arquitetura que tem a capacidade de envolver e de introduzir diferentes dimensões ao espaço. A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior, na ocasião em que a circunstância se converte em algo intrínseco e interno. É a flexibilidade, a complexidade e a metamorfose espacial que aumentam e potenciam a expansão de cada indivíduo. Assim que a arquitetura é incomensurável, sem limites conhecidos e aceita justaposições, possibilita que o espaço tenha sempre a capacidade de se tornar e de vir a ser - será espaço em potência.


Para Holl, a arquitetura deve assim ser porosa, em que espaço e movimento se interpenetram constantemente. A arquitetura objeto, sólida, estável e maciça deve dar lugar a fenómenos experienciais diversos e a sequências espaciais independentes de qualquer direção. Através do tempo, é a arquitetura que permite o encontro - livre, experimental e verdadeiro - do indivíduo consigo próprio, com outros indivíduos e com o mundo que o rodeia.


“The recognition of spatial and material phenomena meets the imagination.” (Holl 2008, 29)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior.


“I look outside myself, and the tree inside me grows.”, R. M. Rilke


Gaston Bachelard em The Poetics of Space, ainda no capítulo “Intimate Immensity” explica que Baudelaire, na sua poesia, se refere a vastidão como sendo um conceito que não pertence ao mundo objetivo. A palavra, vastidão, quando usada é um vocábulo que evoca pausa, silêncio, unidade, respiração, imperturbabilidade. De facto, vastidão é o eco dos lugares mais ocultos e desconhecidos do ser. É uma abertura para um espaço ilimitado: “With it, we take infinity into our lungs, and through it we breath cosmically…” (Bachelard 1994, 197)


Para Bachelard, poetas tais como Baudelaire, ajudam no constante contentamento do olhar, que na presença de um objeto familiar, permitem a extensão da esfera interior e particular.


“Space, outside ourselves, invades and ravishes things: 
If you want to achieve the existence of a tree, 
Invest it with inner space, this space

That has its being in you. Surround it with compulsions, 
It knows no bounds, and only really becomes a tree

If it takes its place in the heart of your renunciation.”, R. M. Rilke


Objetos, espaços e lugares precisam de ser impregnados de imagens construídas na esfera interna e intima - caso contrário não existe ligação, nem vínculo. Na verdade, eu e objeto são um só. Para ultrapassar o seu limite, o objecto ou o espaço precisa do sujeito para transmitir as suas imagens. O objeto contém o sujeito e o sujeito contém o objeto. Juntos tomam o lugar um do outro. 


Bachelard esclarece que, quando o sujeito sabe que um objeto ou espaço do mundo é reflexo de imensidão, isso significa que é o próprio sujeito que está à procura da sua essência. O eu e o mundo têm assim um forte vínculo metafísico: os dois espaços - interior e exterior - completam-se e são uma plenitude.


É o espaço íntimo que descodifica e abre o mundo. É este espaço que permite ampliar, dilatar e alargar o mundo exterior. Ao dar valor a um espaço está-se a conceder ainda mais espaço do que aquele que existe objectivamente. O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior: “… may all matter achieve conquest of its space, its power of expansion over and beyond the surfaces…” (Bachelard 1994, 202-3)


Deste modo, para Bachelard, é a imensidão que une o espaço íntimo e o mundo exterior - e assim que a solidão humana se aprofunda, os dois infinitos tornam-se idênticos. E é através desta dinâmica e desta coexistência de espaços que se manifesta a consciência do próprio existir.


Ana Ruepp