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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

FALAMOS MUITO...

  


Falamos muito, e tememo-lo, nós os ocidentais, esse epifenómeno que dá pelo nome de "fundamentalismo islâmico". Para uma cultura da permissividade como prática de vida, é evidente que a cultura do culto da "lei" como norma de vida é incompreensível. Mais: é inaceitável. Isto é: em nome da liberdade de expressão e ação, lançamos um anátema sobre quem pensa que ela não é legítima ou, mais simplesmente, deve ser limitada. Até já se chamou, a este desentendimento, choque de civilizações... Mas também podemos evocar as cruzadas - com o que trouxeram de sofrimento imposto pelos cristãos do ocidente aos de Bizâncio - ou as guerras de religiões cristãs na Europa da reforma, os ódios entre chiitas e sunitas muçulmanos, o holocausto nazi a par do estalinista, as rivalidades entre cristãos além-mar, como as que alimentaram martírios de católicos no Japão dos sécs. XVI-XVII, ou o descalabro das missões jesuítas na América do Sul. Ou ainda as "bruxas de Salém", para não falar desse prenuncio de "técnicas científicas" nazis que foram as medições morfológicas de jesuítas e outros religiosos pela nossa 1ª República... E temos muito mais: Rwanda, Pol Pot no Cambodja, Sudão, Bósnia, eu sei lá! Somos, instintivamente, animais agressivos, quando tememos o outro. Ou quando o queremos comer. Quando nos fechamos no individualismo, de cada um ou do seu grupo, e esquecemos que a racionalidade que nos diferencia necessariamente nos obriga ao exercício crítico que S. Tomás de Aquino dizia ser "diferenciar (distinguir) para compreender." A diferença, ou a consciência dela, não é divisão (e muito menos guerra): é reconhecimento. Parafraseando Paul Claudel, para quem a "connaissance" - o conhecimento - é «nascer com»: o reconhecimento, neste sentido, é renascermos com os outros. Será a procura da harmonia, com a coragem que nos conduzirá ao encontro das raízes comuns a todos, que já o primeiro livro judeo-cristão assinalava dizendo que Deus nos criou, homem e mulher, à sua imagem e semelhança. A todos nós. A divisão, essa entre o bem e o mal, o belo e o feio, cada um de nós a traz em si, como o "visconde cortado ao meio" do Italo Calvino. "L’enfer c’est les autres" dizia Sartre. E assim existencialmente, demasiadas vezes, o entendemos. Mas o próprio sabia que o inferno está em nós e se propaga, como incêndio, na projeção da paixão de nós sobre os outros. "O pecado - escreveu um dominicano francês, Jean Cardonnel - é a paixão dos nossos limites". Os outros, os que não entendemos logo, são um apelo insistente a que sejamos mais firmes e fortes no que somos e mais abertos ao abraço dos outros, que é o que todos poderemos ser num mundo em globalização. Nesse mundo, que tão rapidamente nos cerca, só a fortaleza das nossas raízes nos ajudará a responder à nossa vocação do Outro. O diálogo só é possível com autenticidade. As rendições sempre começaram por traições.

 
Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 02.11.12 neste blogue.

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR...

  


Quando por razões ideológicas, se negou a referência ao Cristianismo num projeto de Constituição Europeia, recusaram-se as raízes e cometeu-se um quase-crime de lesa história. Foi algo de mesquinho, na medida em que não se negou apenas a afirmação de uma realidade, mas teimou-se em não a compreender que o Cristianismo é culturalmente multirradical. Também se disse que o nosso reconhecimento nos abre ao conhecimento dos outros. Aliás, um dos obstáculos sérios, por exemplo, ao diálogo islâmico-cristão está no facto de ninguém perceber com clareza quais são os nossos valores, aqueles que deveriam estar na mão que a Cristandade deveria estender ao Islão. Poderá parecer paradoxo, mas é a perceção desapaixonada e serena da nossa identidade, a consciência perspetiva, no tempo e no modo, dos nossos valores, que nos aproxima dos outros e nos permitirá racionalmente interrogar-nos por que não poderá, por exemplo, a Turquia, maioritariamente muçulmana, aceder à União Europeia? Ou, positivamente: como poderá fazê-lo? Não tem, certamente, e sabe-o, que negar a matriz cristã da Europa, com a qual, aliás, lidou durante séculos. Tampouco tem de se converter ao Cristianismo, pois a própria tradição cristã da dignidade da pessoa humana fundou, no Iluminismo e depois dele, o respeito ético e jurídico da liberdade religiosa... Tal como sabemos, uns e outros, cristãos e muçulmanos, que nem sempre os nossos poderes instituídos, políticos e religiosos, respeitaram nos outros a dignidade divina da pessoa humana e a liberdade da sua escolha, também houve, na Cristandade e no Império Otomano, admiráveis exceções de tolerância e acolhimento. Também nestes valores comuns que, em culturas diferentes, traduzem o princípio fundador que é o da misericórdia de Deus, deveremos encontrar um caminho e o seu sentido, de harmonia, não como receita, mas como procura. Há que lembrar ainda, no diálogo com o islamismo, um princípio que se foi afirmando ao longo da história do Cristianismo europeu e, finalmente, conduziu ao Estado laico das democracias atuais: o da distinção entre poder espiritual e temporal, entre a submissão a Deus e o tributo a César. Desde a tentação constantiniana às lutas entre os sacro-impérios e Roma, entre os reis de Portugal e o Papado, passando por guelfos e gibelinos, cismas de Avignon e tratados de Tordesilhas, até à unificação da Itália e às suas sequelas, aprendemos muito. Ao fim e ao cabo, o que Jesus Cristo disse: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Neste princípio assenta a liberdade religiosa, que o Estado constitucional e democrático deve garantir até como contrapeso à própria tentação totalitária do poder político. Universitário e escritor muçulmano, Abdelwahab Meddeb, no seu livro com um título desafiador, "Pari de Civilisation", para fundamentar a sua visão cosmopolita da religião cita Kant e a sua proposta "Para a Paz Perpétua": "Diversidade das religiões? - curiosa expressão! Tão singular, como se falássemos de morais diversas. Pode bem haver várias maneiras de crer, por força da história dos meios utilizados para a promover, os quais pertencem ao campo da erudição e dos livros religiosos (o Zendavesta, os Vedas, o Corão, p.ex.). Mas só pode haver uma religião valendo para todos os homens e todos os tempos. Assim, os modos de crer só podem conter o veículo da religião, o que é contingente e pode variar segundo a diversidade dos tempos e dos lugares". Muito interessante é ainda verificar que Abelwahab Meddeb refere que a expressão "paz perpétua" surge, pela primeira vez em Nicolau de Cusa (herdeiro espiritual do místico dominicano medievo Mestre Eckhart), na sua obra "De Pace Fidei", escrito durante a guerra com os turcos, que conduziu à tomada de Constantinopla em 1453. Em tempos tão conturbados, Nicolau de Cusa, respeitado homem de Igreja e amigo de Papas, procurou como que "estabelecer uma paz perpétua em religião": "Apesar da diversidade dos ritos, a paz da fé permanece todavia inviolada". Proximamente regressaremos ao tema das fronteiras da Europa e do desafio da definição geográfica, política e cultural da União Europeia, bem como à análise dos critérios que, para o efeito, têm sido propostos. Por agora, interroguemo-nos apenas sobre se serão suficientes os princípios definidos no Conselho de Copenhague em 1993: o Estado de direito, a estabilidade das instituições, a democracia pluralista, o respeito das minorias, a economia de mercado e a incorporação nas diferentes esferas jurídicas nacionais, do "acquis communautaire"... Pois tudo se constitui com objetivos inspirados pelo desejo de realização de valores fundadores. A falta de visão a prazo e a ausência de profundidade de reflexão são, no momento em que escrevo estas linhas, fustigadas por Fernando Henrique Cardoso, contestando o consumismo como guia. Por aí me ocorrem estas palavras de Zigmunt Bauman: "O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como os habitantes da líquida, consumista e individualizada sociedade moderna pensam o bem-estar ou imaginam o ´bem social´ (...) é mais notável, não pelo que classifica de modo equivocado ou claramente erróneo, mas por aquilo que nem chega a classificar, que deixa totalmente fora do cálculo, negando qualquer relevância típica à questão da saúde nacional e do conforto individual e coletivo". No presente debate sobre a "crise financeira" na Europa, é evidente a preocupação de cada um com o que pode consumir, dos políticos com as suas obsessões, e das nações europeias com o seu egoísmo nacional. Falta-nos espírito. O que nos fará sair da " crise" não será o debate de modelos econométricos e contabilísticos impostos, sem outra razão que a das previsões matemáticas (que vão falhando), e muito menos a exigência infantil do consumismo misturado com "direitos adquiridos". Temos, no fundo, de repensar o sentido da vida e o valor (esquecido) da pessoa humana.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 28.09.12 neste blogue.

CONTRA OS FUNDAMENTALISMOS...

  


Valerá a pena debruçarmo-nos sobre a história de Deus nas culturas dos homens antes de Cristo, a saga da Revelação, o percurso a que um agnóstico, Régis Debray, chamou itinerário de Deus. Ou, ainda, procurarmos, noutras tradições do pensamento e da fé, raízes espirituais, frutos e concordâncias do Cristianismo e do Ocidente cristão. Fá-lo-emos, à procura de pilares e pontes para o diálogo entre civilizações e culturas, com que teremos, sob ameaça de confrontos violentos, de responder a um tempo-mundo em que comunicações e migrações nos põem, todos os dias, em casa uns dos outros. Falámos da identidade cristã de Europa, olhemos agora para o enraizamento da cristandade europeia. O Cristianismo, enquanto religião do Deus incarnado no homem e na história, nesta tem as suas múltiplas raízes. Num estudo sucinto, notável pela erudição e pela profundidade da análise ("Jésus l´Héritier - Histoire d´un métissage culturel"), Christian Elleboode, professor na Universidade Católica de Lille, parte à descoberta das raízes do cristianismo na história dos homens. Do animismo primitivo aos deuses das civilizações da agro-pastorícia, do Egipto e da Mesopotâmia à Pérsia e ao monoteísmo israelita, onde nasce, como herança e antítese, o Deus da misericórdia e do amor universal que Cristo incarna e apregoa, há todo um caminho de revelação da transcendência pela imanência. Ao fim do percurso, uma conclusão: "Crente ou incréu, judeu ou cristão, é fundamental, para que haja diálogo, romper com a obsessão da procura do aspeto original de cada religião, reconhecer as suas dívidas culturais e aceitar finalmente a mestiçagem como um fenómeno que em nada altera a identidade dos indivíduos. Pelo contrário, é a ideia de pureza original que confunde as pistas e se torna fonte de conflitos. Hoje, num mundo mais global, em que os valores cristãos se encontram em diáspora e, simultaneamente, interrogados e contestados em sua casa, quer pela imigração de outras gentes, credos e culturas, na "nossa" Europa, quer sobretudo pelo materialismo e o economicismo consumista e ganancioso que o próprio "Ocidente" gerou, devemos refletir sobre as raízes espirituais da Europa e sobre a fidelidade como condição do diálogo. Não falamos de negociação nem de relativismo: não se trata de uma possível troca de valores, trata-se de um esforço comum na procura de um sentido da história e para o futuro. Ou do que, para um crente, é a comunhão dos homens no universo de Deus. Quando, ao esbofetearem-me a direita, eu ofereço a esquerda, não me submeto, mas interrogo: se disse ou fiz mal, diz-me o quê; se não, porque me bates? O diálogo e o entendimento são exercícios difíceis, só possíveis a prazo, onde seguem a fé e a esperança, e se constroem, dia a dia, pela fidelidade do amor. Situam-se numa perspetiva diametralmente oposta à das relações "líquidas" que Zygmunt Bauman aponta como causa de precaridade. Interrogar o outro, o diferente, é necessariamente interrogar-me também, e à minha diferença. Para o incréu, é um imperativo da dúvida sistemática. Para o crente, um imperativo da humildade: se Deus me revelou assim a verdade, como e porquê a terá frustrado a outros? Ou será que, no itinerário da sua revelação, Deus foi abrindo outros caminhos, para que os homens de boa vontade, que são a sua glória, na encruzilhada se reconheçam? Afinal, o que nos une? Tudo o que Deus semeou ou só a nossa semente contra a dos outros? A rutura do Deus de Jesus Cristo com o Deus de Israel antigo é clara: quem são os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe? Não é a minha família ou nação que os define, são os que me seguem no amor universal. E S. Paulo dirá que não há escravo nem homem livre, homem nem mulher... Contra todos os fundamentalismos, inclusive os nossos.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 14.09.12 neste blogue.

DE AMOR PALPITA O CORAÇÃO NO MUNDO…

Minha Princesa de mim:


Manhã linda, de claro sol e azul celeste! Quedei-me à janela, esquecido de mim, na ronda das andorinhas... Trouxeram-me à lembrança o nosso Alberto, em domingo de graça e paz, cantando, no terraço aberto sobre o jardim, um fado de Coimbra:


     Porque os meus olhos se apartam
     dos teus, não lhes queiras mal:
     as andorinhas que partem
     voltam ao mesmo beiral!
     E hei-de voltar um dia,
     eu sou como as andorinhas,
     se as tuas saudades forem
     bater à porta das minhas!


Este lirismo tão português tem, para um nórdico como eu, algo essencialmente religioso, como uma conversão, movimento perpétuo. A saudade, como a vida, é um regresso, rota astral da fidelidade.  O coração dos homens pode ser infinito, talvez por isso Deus o escolha para habitação. Estive a reler, durante a noite, passos de Das Wesen des Christentums de Ludwig von Feuerbach. E ao pensarsentir, nesta manhã serena, forte e clara, o íntimo movimento do mundo (e repetindo, como canta Alfredo à Traviata: vissi d´ignoto amor, di quell´amor ch´è palpito dell´universo intero...), ocorreu-me esse trecho tão profundo de A Essência do Cristianismo: «A essência secreta da religião é a identidade da essência divina e da essência humana - mas a forma da religião, ou a sua essência manifesta e consciente é a diferença. Deus é a essência humana, mas é sabido como uma essência diferente. O amor é o que revela o fundamento, a essência oculta da religião, mas a fé o que constitui a sua forma consciente. O amor identifica o homem com Deus, Deus com o homem e, por isso, o homem com o homem; a fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem; Deus não é senão o místico conceito genérico da Humanidade, por isso a separação entre Deus e o homem é a separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com a eticidade, com a razão, com o sentido simples e humano da verdade; mas, pelo amor, ela volta a opor-se a esta contradição. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente, o amor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor pelo homem...   ...O amor tem Deus em si, a fé fora de si...». Assim encontro, num pensador germânico que também disse que o mesmo amor é ateu por negar um Deus que seja propriedade particular e oposto ao homem, um eco poderoso de S. Paulo, quando este afirma que, das três virtudes teologais só o amor é eterno. (Aliás, essas virtudes, para Feuerbach são só duas: a fé e o amor, posto que a esperança é a fé que se refere ao futuro. A fé e o amor opõem-se, segundo ele, até nos seus sinais exteriores: os sacramentos do batismo, que vincula a um Deus particular, e o da eucaristia, ceia ou comunhão, que é a partilha do pão, do amor). Fosse Ludwig Ritter von Feuerbach ateu (e Engels o apregoou e dele assim se serviu), encontro nele, repito, uma poderosa e profunda intuição da nossa religião a Deus. Apenas direi que a minha fé habita essa contemplação do amor presente no infinito mistério do mundo. Dou-te uma mão cheia de estrelas que as andorinhas trouxeram. De onde?

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

N.B. Desta vez, não traduzi do alemão passos da carta do marquês de Sarolea. As citações de Feuerbach estão traduzidas pela Prof. Doutora Adriana Veríssimo Serrão em A Essência do Cristianismo, na edição da Fundação Gulbenkian.

 

Obs: Reposição de texto publicado em 20.06.2014 neste blogue.  

FIM DO CRISTIANISMO NA EUROPA? .3

 

1. Ninguém pode negar que o cristianismo histórico é responsável por crimes, tragédias, barbaridades. Não duvido de que houve muitos para quem teria sido preferível não ter ouvido falar de Deus nem de Cristo, tantos foram os horrores cometidos em seu nome. Mas, no cômputo geral, estou convencido de que o positivo supera o negativo. Ainda hoje a Igreja presta serviços incalculáveis aos mais pobres e fracos em toda a parte... E é a multinacional do sentido, Sentido último.


Cito Antonio Piñero, grande especialista em cristianismo primitivo e agnóstico. Depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade de todos enquanto filhos de Deus, escreve que, a partir deste fermento, “se esperava que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está, à maneira de fermento, por trás de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na História, embora agora não o vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã.” O mesmo dizem muitos outros filósofos, incluindo agnósticos e ateus.


2. A pergunta é: Ainda será possível hoje ser cristão na Europa?


Tudo tem de começar por uma experiência, como sucedeu com os primeiros discípulos e comunidades. A experiência de abertura ao Mistério e à Transcendência e a oferta de esperança, alegria, futuro e sentido pleno para a existência. Essa experiência de vida humanamente realizada, na justiça, na solidariedade, no perdão, no combate por um mundo melhor, dá-se num encontro de fé em Jesus, que revela que Deus é Pai/Mãe, Amor incondicional e que dá a salvação, Sentido último. Mesmo os que já são baptizados, a começar por cardeais, bispo e padres, têm de perguntar a si mesmos se fizeram ou não esta experiência e se, através dela, podem responder: “Isto é bom para mim. Para mim”. Haverá conversão e começará então a verdadeira reforma da Igreja, que só pode ser uma Igreja de voluntários e que dá testemunho do melhor, do Evangelho, notícia boa e felicitante.


3. O cristianismo não é um sistema religioso nem pode ser uma obrigação, implica sim um caminho para uma vida com dignidade e sentido. Também não é, em primeiro lugar, um discurso, mas um percurso de vida. Como dizia Simone Weil, a filósofa mística, “onde falta o desejo de encontrar-se com Deus, não há crentes, mas pobres caricaturas de pessoas que se dirigem a Deus por medo ou por interesse.”


Mas o ser humano também é racional e, por isso, o cristão precisa de dar razões da fé e da  esperança. A fé não pode agredir a razão. Por exemplo, o modo como se tem apresentado o pecado original é incompatível com a evolução. Não se pode continuar a baptizar para “apagar a mancha do pecado original”. A morte de Jesus na cruz não foi querida por Deus, ofendido pelo pecado e exigindo uma reparação infinita. Isso contradiz o Evangelho: Deus é Amor. O que é pecado? O que prejudica as pessoas, o que lhes faz mal. Na celebração da Eucaristia, não se pode continuar a pregar de tal modo que subreptícia e inconscientemente se instala a ideia de uma presença física de Cristo: impõe-se entender a distinção entre presença física e presença real, pois é bem sabido que podemos estar fisicamente presentes e realmente ausentes, quando, por exemplo, não há amor. Só exemplos.


4. Jesus não fundou a Igreja-instituição que temos. Ele anunciou, por palavras e obras, o Reino de Deus, força de transformação do mundo a favor de todos, começando pelos mais frágeis e abandonados. É claro que não se pode ser ingénuo: alguma organização é precisa. O problema está em que, contra a vivência das primeiras comunidades, organizadas carismaticamente, se foi instalando uma organização de poder e já não de serviço. Na Igreja, sempre houve carismas, funções, serviços, ministérios. A ruptura deu-se, quando, contra o Novo Testamento, que até evitou a palavra hiereus (sacerdote que oferece sacrifícios), apareceram ministérios com uma ordenação sacra, que faz com que o padre e o bispo se transformem, dir-se-ia, ontologicamente, implicando uma distinção essencial, não só de grau, entre o “sacerdócio dos fiéis” e o “sacerdócio ordenado”. A Igreja ficou então dividida em duas classes: o clero, que manda, e os leigos, que obedecem.


Esta é a raiz da “peste” do clericalismo, pois só o sacerdote ordenado pode presidir à Eucaristia, só ele, “senhor de Deus”, perdoa os pecados..., e a autoridade na Igreja pressupõe a ordenação sacra. Esta sacralização levou à lei do celibato e à exclusão das mulheres...


É urgente a renovação da Igreja como instituição, mas ela estará bloqueada enquanto se não superar o equívoco da ordenação sacra. Devem existir ministérios ordenados — na Igreja é preciso um ordenamento —, mas sem ordens sacras.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 MAR 2021

FIM DO CRISTIANISMO NA EUROPA? .2

 

1. Pergunta-se: o que se passou para que o jesuíta Victor Codina tenha podido escrever, num estudo sobre Ser Cristiano en Europa?, que estamos a assistir a um colapso do cristianismo na Europa?


Realmente, os dados são preocupantes. Exemplos: na Espanha, o número de agnósticos e ateus supera o dos católicos praticantes. Na França, a maior parte da população já não é católica. Na República Checa, mais de 60% declaram-se ateus. Nos Países Baixos, na Noruega, na Suécia..., o número dos que se declaram sem religião ronda os 50% da população. E tudo indica que o número de católicos e dos que se confessam cristãos vá diminuindo na Europa em geral e é, de facto, notória a exculturação do cristianismo... Quanto à juventude, os números são alarmantes: “uma grande parte vive à margem da Igreja, que, para ela, se converteu numa pequena e estranha seita”. A situação reflecte-se na queda vertiginosa das vocações, com seminários vazios, muitas paróquias — o seu número aumentará sempre — não têm padre. E não é só “um inverno eclesial europeu”, assistimos também a um exílio de Deus...


Procurando causas. Quanto à Igreja-instituição, temos o impacto brutal dos escândalos clamorosos da pedofilia, bem como dos escândalos económico-financeiros e da corrupção no Vaticano. E, quando olhamos para as estruturas eclesiásticas, é inevitável a pergunta: onde está a simplicidade e a fraternidade exigidas pelo estilo do Evangelho? Acrescente-se o patriarcalismo, a exclusão das mulheres, o clericalismo, que é uma verdadeira “peste da Igreja”, como repete o Papa Francisco, implicando uma “estrutura perversa”, segundo G. Schickendanz. Há “um desfasamento teológico e cultural da doutrina e dos dogmas”, cujas formulações se devem à cultura helénica, longe da mentalidade moderna e pós-moderna. Acrescente-se “uma moral legalista e casuística, proveniente de uma antropologia dualista, pré-moderna, pouco personalista, muito centrada no sexo, que utiliza a pastoral do pecado e do medo do castigo para manter o povo cativo da Igreja.” Uma liturgia hierática, ritualista, ininteligível para a maioria dos fiéis, pouco ou nada participada. Para muitos, o cristianismo e a Igreja constituem “um déjà vu”, algo ultrapassado e em desuso; pior: para alguns, a Igreja é a personificação do pior da nossa cultura: “repressão, ânsia de poder, inquisição, censura, machismo, moralismo, ódio à vida, sentido de culpa e de pecado”.


Mais preocupante é que Deus se tornou longínquo, um estranho, “um Deus no exílio”, na expressão de L. Duch. No mundo da tecnociência, do consumo, do conforto, do hedonismo, do ter, do parecer e do aparecer, à volta de um “eu” desvinculado de toda a norma, entrou-se num imanentismo fechado, mais a-religioso do que anti-religioso, mas sem horizontes de transcendência: não interessa “o que vai para lá da vida quotidiana, do trabalho, do dinheiro, da comida, da saúde, do consumo, do sexo, do bem-estar e da segurança de uma velhice tranquila”. A vida é para gozar no sentido mais imediato do termo, na busca de uma juventude perene...


A pergunta é: E quando toda esta lógica é barrada, posta em causa? Isso constata-se agora, no meio desta catástrofe trágica da pandemia. De repente, um vírus invisível que invadiu o mundo todo, apoderando-se da Humanidade, veio travar e pôr em causa estes ideais. O mal-estar é deprimente, e a esperança está em que, depois de um interregno, a que uma vacina ponha termo, se volte à “normalidade”, isto é, ao ponto onde fomos apanhados, para podermos avançar outra vez na lógica na qual se vivia. Ainda se não pensou profundamente sobre a impossibilidade deste raciocínio e seus pressupostos. De facto, já não se pode ignorar que o modelo anterior está posto radicalmente em causa. Porque é preciso entender que não é possível continuar o modelo tecnocrático de desenvolvimento ilimitado, que somos globalmente interdependentes, que o progresso tem de ter em conta as alterações climáticas, a biodiversidade, e avançar, portanto, segundo um modelo coerente com a urgência de “uma ecologia integral”, para utilizar a expressão feliz do Papa Francisco: o grito da Terra e o grito dos pobres, clamando por uma humanidade justa.


2. Mas também pode acontecer que as pessoas, confrontadas com o abismo da existência, com a morte, parem e reflictam, indo ao encontro do essencial, das perguntas últimas, do Mistério vivo e acolhedor. Vêm-me à memória palavras luminosas do grande Václav Havel, que constatou: “Estamos a viver na primeira civilização global”. Acrescentou: “Mas também vivemos na primeira civilizaçãoa ateia, isto é, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade.” As consequências disso: uma civilização obstinada em perseguir objectivos a curto prazo”, “o que é importante é que um investimento seja rentável em 10 ou 15 anos” e não os efeitos dentro de 100 anos. Depois, “o orgulho”, a hybris dos gregos. Por isso, suspeitava que “a nossa civilização caminha para a catástrofe”, a não ser que cure “a sua miopia e a sua estúpida convicção de omnisciência, o seu desmesurado orgulho”. Achava que “o desenvolvimento desenfreado de uma civilização deliberadamente ateia deve alarmar-nos”. Considerava-se apenas meio crente, mas com “a certeza de que no mundo não é tudo apenas efeito do acaso” e convencido de que “há um ser, uma força velada por um manto de mistério. E é o mistério que me fascina”. “A transcendência é a única alternativa à extinção.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 FEV 2021

FIM DO CRISTIANISMO NA EUROPA? .1


Quem nasceu num contexto de cristianismo tradicional talvez nunca se tenha dado verdadeiramente conta do que o cristianismo significou na História.

 

1. Na sua base, está Jesus de Nazaré, que nasceu uns 4 ou 6 anos antes da nossa era — isto deve-se a um engano do monge Dionísio, o Exíguo, encarregado de estabelecer no século VI o novo calendário. Filho de Maria e de José, teve uma juventude despercebida, trabalhou duramente em vários lugares como artesão. Foi discípulo de João Baptista, por quem foi baptizado, mas fez uma experiência avassaladora de Deus como Abbá (querido Papá), que o chamava a anunciar e a testemunhar o seu Reino, o Reino de Deus, Reino da verdade, da justiça, do amor, da alegria para todos. Uma notícia boa e feliz. A vida pública foi curta.


Em Jesus, o Reino de Deus estava actuante. Preocupou-se com a saúde das pessoas, com que não passassem fome. Curou doentes, física e psiquicamente doentes. Comia com prostitutas e pecadores públicos. A causa de Deus é a causa dos seres humanos e, por isso, proclamava com os profetas estas palavras postas na boca de Deus: “Ide aprender: eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia”. Ousava declarar: “O Sábado é para o Homem e não o Homem para o Sábado”: a saúde, a justiça, a misericórdia estão acima do culto. Por isso, entrou em conflito com  o Templo, os sacerdotes, os escribas, os doutores da Lei... Assim, Jerusalém e Roma uniram-se, numa coligação de interesses religiosos e imperiais, para o crucificar. Ele podia ter negociado, mas não: foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor.


Os horrores da crucifixão não têm descrição. Os romanos consideravam-na tão humilhante que só a aplicavam aos escravos e estrangeiros. “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, rezou Jesus, sempre confiante: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”. 


2. Aparentemente, foi o fim. O enigma da história do cristianismo é como é que os discípulos, que tinham voltado, desiludidos, às suas vidas, pouco tempo depois estavam outra vez reunidos e foram anunciar que aquele Jesus crucificado é o Cristo, o Messias salvador. O que é que se passou naquele intervalo?


Como escreveu J. Duquesne, a História não pode dizer se Jesus está vivo ou se morreu para sempre, “o que pode dizer é que se passou alguma coisa naqueles dias, um acontecimento que, abalando aqueles homens e mulheres, abalou o mundo.” A ressurreição, mistério central do cristianismo, não é um facto verificável historicamente, ela é um “obscuríssimo mistério”, como diz o filósofo e teólogo Andrés Torres Queiruga. Na sua obra célebre A verdadeira história de Jesus, E. P. Sanders, da Universidade de Oxford, conclui que é muito o que sabemos do Jesus histórico. “Nada é mais misterioso do que a história da sua ressurreição”, mas “sabemos que, depois da sua morte, os seus seguidores fizeram a experiência de algo que descreveram como a ‘ressurreição’: a ‘aparição’ de uma pessoa, que tinha realmente morrido, agora viva, mas transformada. Eles acreditaram nisso, viveram-no e morreram por isso.” Neste processo, criaram um movimento que cresceu e se estendeu pelo mundo. “Sabemos quem Jesus era, o que fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas que lhe foram tão fiéis que mudaram a História.”


Essa experiência pessoal do Jesus vivo foi igualmente tão avassaladora para São Paulo que ele, de perseguidor dos cristãos, se tornou apóstolo, fez milhares e milhares de quilómetros, incansavelmente, a pé, a cavalo, de barco, para levar a Boa Nova de Jesus, o Crucificado-Vivente, desde a costa sul da actual Turquia, a bacia do mar Egeu (Filipos, Tessalónica, Atenas, Corinto), até Roma e projectando ir à Hespanha...


Mas São Paulo, na história do cristianismo, não é só fundamental pela universalidade que lhe deu. O seu papel decisivo consiste também na reflexão crítica sobre a identidade da fé cristã e as consequências sócio-políticas da sua verdade: Deus, ressuscitando Jesus, revela que está com Ele, com a sua mensagem do Evangelho, que é ele que tem razão. O teólogo François Vouga viu bem, quando escreveu que a ressurreição de Jesus, o crucificado, “implica uma revolução do olhar sobre a pessoa humana”. “Se realmente Deus se revelou como o Pai de um crucificado que perdeu tudo quanto um ser humano pode perder para lá da adopção de Filho, é claro que as linhas de separação religiosas, culturais e sociais pertencem agora a um mundo ultrapassado. A universalidade deve ser pensada como o reconhecimento individual de cada sujeito humano, sejam quais forem a sua nacionalidade, as suas pertenças, o seu sexo: “Já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher” (Carta aos Gálatas 3, 28). Por isso, “ninguém, nem em Israel, nem na Grécia, nem em Roma, poderia, por exemplo, imaginar que mulheres ensinem, presidam à Ceia do Senhor ou sejam enviadas de uma cidade a outra como apóstolas”.


3. Foi pelo cristianismo que veio ao mundo a ideia de pessoa e da sua dignidade inviolável.


Lentamente, o cristianismo estendeu-se por toda a Europa, e a Europa foi cristã até aos séculos XVII-XVIII. O que se passou para que, num trabalho recente, o jesuíta Victor Codina, possa escrever: “Assistimos agora na Europa a um verdadeiro colapso da fé cristã..., o cristianismo é culturalmente irrelevante e foi exculturado. É um inverno eclesial europeu.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 FEV 2021

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

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   Minha Princesa de mim:

 

   O último capítulo, o XXVIII, do Pilote de Guerre não tem mais de duas páginas, em que Saint-Exupéry exprime o seu próprio  cansaço e o dos seus poucos camaradas da esquadrilha de reconhecimento aéreo G2/33, num estilo quase telegráfico, como qualquer fatalidade. Estamos em 1940, a França foi derrotada pelo III Reich. Mas o grupo, na véspera da retirada, mantém-se unido e, sem ter dormido durante três noites seguidas, vê cada um recolher a sua lassidão ao rendido cansaço dos outros :

   Não diremos nada. Asseguraremos a mudança. Só o Lacordaire esperará pela alba para descolar, a fim de cumprir a sua missão. E, caso sobreviva, regressará directamente à nova base.

   Tampouco amanhã diremos algo. Amanhã, para as testemunhas, seremos uns vencidos. E os vencidos devem calar-se. Como as sementes.

   Como as sementes! Haverá maneira mais bonita, mais cristã, de ressuscitar da derrota? A comunhão humana no silêncio de qualquer perda faz com que esta deixe de ser desamparo e solidão, para se tornar solidariedade e esperança !

   O mistério da morte, no cristianismo, leva-nos ao paroxismo do paradoxo humano, do que "está aí" (ou p´raí) e aspira a Ser. E a sua contemplação ensina-nos a via do silêncio, esse calar, cá bem no fundo de nós, o labor restaurador da semente que apodrece para nascer de novo, como o Reino dos Céus.

 

   Oleg Voskoboynikov, medievalista russo formado na Universidade de Lomonossov, onde é professor de paleografia latina, foi também discípulo de Jacques Le Goff e é autor, entre outros livros e inúmeros artigos científicos, do notável Pour les Siècles de Siècles  -  La Civilisation Chrétienne de l´Occident Medieval, obra que a Vendémiaire (Paris) publicou em 2017. Gosto muito, Princesa de mim, de, às vezes, me deixar envolver pela atmosfera espiritual duma Idade Média, europeia e latina, que, neste caso, é percorrida do início do século IV ao início do XIV, do imperador Constantino ao Dante Alighieri. E é aqui apresentada, essa Alta Idade Média, pela ilustração de que, na verdade, longe de ser repúdio ou destruição da cultura clássica, não só greco-romana, como síria e copta, antes foi cadinho da sua assimilação pelo cristianismo. A semente de vida que acima refiro evocou-me, enquanto te escrevia, aquela expressão cristã que fala da humanidade de Deus em Jesus Cristo, que se humilhou até à morte, e morte na cruz  -  a qual, mais ainda do que suplício, é infâmia. Mas da morte infamante, ignominiosa, ficou, para nós também, então vindouros, a imagem daquele crucificado que, em miríades de representações advenientes, se tornou sinal de vitória :  hoc signum vincit. A suprema humilhação surge-nos assim como humildade ressuscitada, isto é, feita nova, força e sustento de vida sobre a morte.

   A dado passo deparo com um trecho da carta XXX de São Paulino de Nola (edição de G. de Hartel, Viena, F. Tempsky, 1894) que o professor Voskoboynikov apresenta assim : A autoridade moral e cultural de Paulino, construtor de igrejas, poeta, escritor, pregador, ultrapassava em muito a sua diocese italiana. É sintomático que ele abdique do direito de aparecer no espaço litúrgico, que os bispos partilhavam com os imperadores. [Estamos ainda em meados do século IV, no início do império romano cristão...] Não se trata de falsa modéstia, mas de uma nova concepção da dignidade humana : ele sabe que foi criado à imagem e semelhança de Deus, mas também se recorda de que, na vida real, «tantum in imagine ambulat homo, tantum frustra turbatur». Eis citado um versículo do salmo 39, que traduzirei assim : «Quanto mais um homem se passear em retrato, tanto mais se alienará em vão». 
   Quando, numa cristandade então já liberta de perseguições e livre de se exprimir, os fiéis entre si debatiam a razão, o alcance e configuração, e o próprio culto das imagens religiosas, tal questão punha-se também para o retrato-exemplo dos pastores eleitos pelas suas igrejas ou comunidades ; erguiam-se vozes, não tanto contra a aproximação do divino pela representação memorizável, como pela reserva, ou prudência, relativamente aos riscos de alienação que o imaginário necessariamente implica. Preocupação que, hoje, tem a maior actualidade e nós, espantados, esquecemos. A tal ponto que nem nos apercebemos de que vamos deslizando do que já alguém chamara "civilização da imagem" para uma circunstância de carrossel caleidoscópico próxima da barbárie. Diariamente sobre nós chovem imagens e coscuvilhices que, em vez de nos ajudarem a reflectir sobre a realidade do nosso mundo e da nossa vida, nos atiram para um baile de máscaras ilusórias e alienadoras... E até talvez possamos dizer que, se a iconoclastia foi, muitas vezes, uma fobia idolátrica (mais do que receio pelo divino), a "imagofilia" hodierna, em seu omnipresente exagero, é sinal certo de propensão a nova idolatria...

   Volto então ao "nosso" S. Paulino de Nola, nobre romano nascido em Bordéus, que chegou a ser cônsul e prefeito de Roma, se converteu ao cristianismo com sua mulher, após o que distribuíram os seus bens pelos mais necessitados e se ocuparam do próximo, desse tal que adquirira, em cada pessoa, o rosto de Cristo Jesus.  Foi Paulino eleito bispo de Nola, em Itália. Conta-nos o livro do professor russo : Cerca do ano 400, um autêntico Romano e bispo culto, Sulpício Severo, pediu ao seu amigo Paulino, bispo de Nola, na Campânia, ele também Romano autêntico e futuro santo, que lhe enviasse para a Gália, o seu retrato. Queria pô-lo, a título de amizade e de respeito pelas suas virtudes, ao lado de uma imagem de São Martinho, no novo baptistério de Primiliacum (provavelmente a Primilhac de hoje). Comovido, Paulino respondeu-lhe assim:

   Suplico-te, por tudo o que de melhor há na nossa amizade, porque havemos de pedir provas da nossa amizade em formas vãs? De mim, de que homem queres tu a imagem? Celeste ou terrestre? Sei que queres essa imagem real, em ti amada pelo Rei Celeste. Não deves precisar de outra imagem nossa, além dessa pela qual foste tu mesmo criado.  ... Mas eu sou pobre e fraco, humilhado pela minha imagem rude e terrestre, pelos meus sentimentos carnais e as minhas obras na Terra. Pareço-me mais com o primeiro Adão do que com o segundo. Como posso então ter a ousadia de me fazer pintar, esmagando a meus pés a imagem celeste com os meus delitos terrestres? Terei sempre vergonha : fazer-me representar tal qual é vergonhoso, fazer-me representar tal como na realidade não sou é uma insolência.

   Concordemos ou não com elas, reconheçamos que se diziam lindamente, em latim, e há quase dois mil anos atrás, coisas que, hoje ainda, nos podem ajudar a pensarsentir-nos mais e melhor do que todas essas celebrantes imagens da vaidade nossa contemporânea...

   Ao escrever-te isto, Princesa de mim, revejo  -  para meu equilíbrio interior, pois é neste hoje que vivo agora  -  tantas imagens de seres humanos que vamos ignorando, abandonando, matando, e ainda assim nos fazem esse nosso imerecido dom de si próprios, que é, afinal, esse, também nosso, rosto de dor. A presente imagem da humanidade que padece e sofre vem lembrar-nos de que precisamos dum silêncio que seja semente. Comovido, sinto a presença misteriosa do meu irmão Gaëtan, que, em tantos muitos retratos que desenhou, sempre se concentrou numa qualquer, mas mais uma, interpelação da condição humana.

 

                      Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

ENTRE A SEXTA-FEIRA SANTA E A PÁSCOA: SÁBADO

 

Crentes ou não crentes — quem o disse foi George Steiner — é em Sábado que vivemos. Que é que isto quer dizer? Todos, de um modo ou outro, em nós mesmos e no mundo, constatamos e vivemos a Sexta-Feira Santa do sofrimento, do horror, da violência, do silêncio e da noite, e todos, de um modo ou outro, de forma mais explícita ou menos explícita, mais consciente ou menos, é pelo Domingo, o Domingo da Páscoa, que suspiramos e esperamos, a Páscoa da salvação.

 

O que nestes dias os cristãos celebram é este Sábado, que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte e o sentido último da existência. Uma meditação sobre o Sábado, no qual vivemos.

 

1. Na história gigantesca do universo, com 13.700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na História do mundo, uma novidade essencial e radical.

 

Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que e o Homem?, o que é ser Homem?

 

Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, actualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.

 

As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.

 

A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.

 

Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humanamente e em autenticidade. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.

 

2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, “o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?”

 

Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em “eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo”; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de “gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?”  

 

Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?

 

Há aquela pergunta in-finita, que atravessa a História: quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra” convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.

 

A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.

 

O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos“ e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 20 ABR 2019

ISLAMOFOBIA E CRISTIANOFOBIA

 

1. Não há dúvida de que a visita do Papa Francisco aos Emiratos Árabes Unidos de 3 a 5 deste mês constituiu uma visita para a História, como aqui procurei mostrar na semana passada. O próprio Francisco caracterizou a sua viagem como “uma nova página no diálogo entre Cristianismo e Islão”. É preciso ler e estudar o “Documento sobre a Fraternidade Humana”, então assinado por ele e pelo Grande Imã de Al-Azhar. Também foi a primeira vez que um Papa celebrou Missa para 150.000 cristãos na Península Arábica, berço do islão, num espaço público.

 

Já de regresso ao Vaticano, na habitual conferência de imprensa no avião, um jornalista perguntou-lhe que “consequências terá também entre os católicos o Documento, considerando que há uma parte dos católicos que o acusam de deixar-se instrumentalizar pelos muçulmanos...” E Francisco: “E não só pelos muçulmanos... (riu-se). Acusam-me de me deixar instrumentalizar por todos, incluindo os jornalistas. É parte do trabalho, mas gostaria de dizer uma coisa. Do ponto de vista católico, o Documento não se separou nem um milímetro do Vaticano II, que até é citado várias vezes. Se alguém se sentir mal, eu compreendo-o, pois não é algo de todos os dias..., mas não é um passo atrás, é um passo para diante... É um processo e os processos amadurecem.”

 

Outro jornalista observou: “O Imã de Al-Azhar, Ahmed al-Tayeb, denunciou a islamofobia. Porque é que não se disse nada sobre a cristianofobia, sobre a perseguição aos cristãos?” E o Papa Francisco: “Falei sobre a perseguição aos cristãos. Também falo sobre ela frequentemente. Inclusive nesta viagem falei sobre isso. Também o Documento condena a violência, e alguns grupos que se dizem islâmicos (os Sábios dizem que não é o islão) perseguem os cristãos.” E, aqui, Francisco relembrou uma história absolutamente comovente, que já contara com mais pormenores em 2017. Em 22 de Abril de 2017, na Basílica de São Bartolomeu na Ilha Tiberina em Roma, o Papa Francisco, com a Comunidade de Santo Egídio, presidiu a uma Liturgia da Palavra em memória dos novos mártires dos séculos XX e XXI. E ficaram estas palavras de profundidade incomensurável, apontando, com comoção que nos abala, para a religião na sua verdade humana e divina: “Eu quero, hoje, acrescentar mais um ícone a esta igreja. Uma mulher. Não sei o seu nome. Mas ela olha para nós lá do Céu. Eu estava em Lesbos, saudava os refugiados e encontrei um homem de 30 anos, com três crianças. Olhou para mim e disse-me: ‘Padre, eu sou muçulmano. A minha mulher era cristã. Os terroristas chegaram ao nosso país, olharam para nós e perguntaram-nos qual era a nossa religião e viram-na a ela com um crucifixo. Disseram-lhe que o atirasse ao chão. Ela recusou, não o fez. E degolaram-na diante de mim. Amávamo-nos muito, gostávamos muito um do outro.” “Este é, continuou Francisco, o ícone que trago aqui como presente. Não sei se esse homem ainda está em Lesbos ou se conseguiu ir para outro lado. Não sei se conseguiu sair desse campo de concentração, porque os campos de refugiados — muitos — são de concentração, devido à quantidade de gente que ali é deixada (...). E este homem não tinha rancor: ele, muçulmano, tinha esta cruz da dor que levava sem rancor. Refugiava­-se no amor da mulher, salva pelo martírio.”

 

2. Precisamente no contexto do magno acontecimento histórico que foi esta visita, quero relembrar que, entre os pressupostos para um diálogo inter-religioso autêntico, há dois que são imprescindíveis. Refiro-me concretamente a uma leitura histórico-crítica dos textos sagrados e à laicidade do Estado.

 

Estes pressupostos são universais, mas têm particular importância para o cristianismo e o islão (deve-se distinguir entre islão e islamismo, este já com o sentido de islão extremista), pois o número dos cristãos e dos muçulmanos é superior a mais de metade da Humanidade, o que significa que o entendimento entre eles é essencial para o futuro.

 

A Igreja Católica nomeadamente teve dificuldade em aplicar estes pressupostos, que aceitou plenamente apenas no Concílio Vaticano II. De qualquer forma, já havia indicações no Novo Testamento e no fundador. Assim, nunca os teólogos católicos referiram a Bíblia como ditada por Deus, mas como Palavra de Deus em palavras humanas, o que implica a exigência de interpretação. Jesus disse: “Dai a César o que de César e a Deus o que é de Deus”. E, chegado a Jerusalém, foi morto, manifestando-se contra toda a violência, dizendo a Pedro: “Mete a espada na bainha, pois quem com ferros mata com ferros morre”. Isto significa que, quando os cristãos olham para os horrores cometidos por eles ao longo da História, têm de reconhecê-los e pedir perdão, pois atraiçoaram Jesus, o fundador.

 

O que para a Igreja católica foi difícil vai sê-lo ainda mais para o islão. De facto, muitos defendem que o Corão foi ditado por Deus ou que é cópia do Corão eterno, e, por isso, lêem-no à letra, com todos os riscos de barbárie. E o fundador, Maomé, foi ao mesmo tempo um profeta, um chefe de Estado e um combatente em várias batalhas. Com razão, escreveu o filósofo Slavoj Zizek, citando M. Safouan: “A marca distintiva do islão é ser uma religião que não se institucionaliza a si mesma e que, ao contrário do cristianismo, não se equipa com uma Igreja. Na verdade, a Igreja Islâmica é o Estado Islâmico: foi o Estado que inventou a chamada ‘mais alta autoridade religiosa’ e é o chefe de Estado quem nomeia o homem que deve ocupar esse cargo; é o Estado que manda construir as grandes mesquitas, que supervisiona a educação religiosa; é ainda o Estado que cria as universidades, que exerce a censura em todos os domínios da cultura e que se considera ser o guardião da moralidade”.

 

Evidentemente, a laicidade não é laicismo, que seria a religião da não religião, no sentido de remeter a religião para o espaço privado ou íntimo, sem lugar no espaço público. Sendo a religião uma dimensão constitutiva do ser humano e estruturante da cultura, é evidente que tem de ter lugar também no espaço público, e as religiões têm o direito de debater as grandes questões das sociedades, concretamente as referentes à bioética, e tentar fazer triunfar as suas posições. Qual é a diferença, quando há laicidade, separação da(s) Igreja(s) e do Estado, da religião e da política? Neste caso, a lei não é a lei religiosa, mas a lei votada democraticamente, em democracia pluralista, no Parlamento.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 17 FEV 2019