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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de novembro a 4 de dezembro de 2016.

 

«Um Olhar sobre a Pobreza – Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal Contemporâneo» (Gradiva, 2008), coordenado por Alfredo Bruto da Costa constitua uma obra fundamental para a compreensão da Pobreza como fenómeno político e social a exigir atenções especiais.

 

POBREZA, FENÓMENO COMPLEXO
Tantas vezes Alfredo Bruto da Costa telefonava ou pedia um encontro para debater uma dúvida, uma iniciativa ou uma ideia. Era extraordinária a sua atenção aos acontecimentos e à necessidade de os refletir serena e profundamente. Relativamente a um dos últimos livros de Amartya Sen («The Idea of Justice», 2009) anotou criteriosamente as suas dúvidas e sentiu-se algo desiludido, uma vez que esperava pistas mais inovadoras, para além do muito que o pensador já tinha dado, e que ele tanto admirava. Como este exemplo poderia dar muitos mais. E falámos longamente da experiência emancipadora de seu pai em Goa no grupo de Margão… Foram muitas horas de gostosa conversa e muitas ideias e iniciativas, algumas das quais ficaram por realizar – apenas adiadas. O que o preocupava era passar das ideias para os atos. Ele era a demonstração de que Emmanuel Mounier tinha razão quando dizia que «o acontecimento é o nosso mestre interior». Se no campo das ideias era extremamente estimulante, o certo é que esteve sempre preocupado com o modo de influenciar a realidade. Daí que muitas das suas preocupações nesses fantásticos diálogos, sempre como se todo o tempo estivesse ao nosso dispor, tivessem a ver com o difícil passo no sentido de melhorar a vida das pessoas concretas, de carne e osso, ignoradas e esquecidas. O seu combate foi sempre contra a indiferença, compreendendo que era mais fácil passar ao largo dos problemas, como se eles não nos dissessem respeito, em vez de os encarar frontalmente. As parábolas do bom samaritano e dos talentos estavam sempre presentes no seu pensamento. Conheci-o melhor na fugaz experiência governativa de Maria de Lourdes Pintasilgo, e depois não deixámos de estar em contacto regular. Não esqueço o seu contributo nos Estados Gerais lançados por António Guterres e saliento a consciência aguda que tinha dos problemas da educação e da formação, em ligação estreita com a criação de condições de justiça para todos – o rendimento mínimo garantido e a educação pré-escolar foram temas em que se empenhou e que refletiu intensamente. E quer no Conselho Económico e Social quer na Comissão de Justiça e Paz fui testemunha de uma ação determinada e muito inteligente no sentido de construir na opinião pública um ambiente de conhecimento e disponibilidade para os difíceis problemas da pobreza. Beneficiei também muito da sua ajuda no tocante ao tema da prevenção da corrupção – que se encontra paredes meias com a justiça social, já que esse flagelo, além de corroer os fundamentos da sociedade, retira meios indispensáveis para a justiça distributiva, para o emprego, para a correção das desigualdades e para o combate à exclusão.

 

DISTINGUIR DA EXCLUSÃO SOCIAL
Sei que a melhor homenagem que lhe posso fazer nesta crónica é relembrar o seu pensamento. Não me perdoaria se não o fizesse. Tantas vezes o ouvi repetir que é preciso clarificar ideias e não confundi-las para que os problemas possam ser solucionados devidamente. O fenómeno da pobreza deve distinguir-se da privação e da exclusão social. Não podemos misturar tudo, uma vez que fazendo-o afastamo-nos do cerne das ações necessárias. Bruto da Costa sempre nos disse, assim, que a pobreza é um grave problema político, a que importa dar atenção. A pobreza é uma situação de privação por falta de recursos, enquanto a privação em geral corresponde a não ter as necessidades básicas garantidas, por falta de recursos ou outra razão – desde a dependência de um vício ou de uma doença até à falta de capacidade para administrar os seus bens. Para cada um dos casos as soluções são muito diferentes. Na pobreza é preciso ajudar as pessoas a ter os meios necessários, na privação é indispensável apoiá-las a fim de que a gestão dos recursos seja melhor assegurada. A pobreza apenas se resolve com autonomia. A cana de pesca é importante, mas pode valer pouco, se não prepararmos as pessoas, de não as formarmos, se não as acompanharmos. A pobreza é uma das formas de exclusão social, mas não a única, há outras – como o isolamento dos idosos, que podem ter recursos materiais e a discriminação social de imigrantes ou deficientes etc..

 

POBREZA E DESEMPREGO
Também o desemprego é um fenómeno diferente do da pobreza, sem dúvida muito grave, mas diverso. Cerca de 40% dos membros das famílias pobres têm emprego e outros 30% recebem pensões de reforma. Ora, quando temos 40% de pobres ativos verifica-se que o problema não é apenas de distribuição, mas de repartição primária de rendimentos. A pobreza é um flagelo que exige políticas económicas – que corrijam as desigualdades. Muitas vezes pergunta-se se devemos ter primeiro crescimento económico para distribuir depois ou se das várias maneiras de crescer e criar riqueza devemos escolher a que assegura à partida uma melhor distribuição. Para Alfredo Bruto da Costa, tem-se demonstrado que a primeira hipótese não acontece – há décadas que se espera pelo dia e a hora em que já crescemos o suficiente para distribuir. Como diz a Constituição Pastoral «Gaudium et Spes» do Concílio Vaticano II: «Para satisfazer as exigências da justiça e da equidade devem fazer-se grandes esforços para que, dentro do respeito dos direitos da pessoa e da índole própria de cada povo, desapareçam, o mais depressa possível, as enormes desigualdades económicas unidas à discriminação individual e social, que ainda hoje existem e frequentemente se agravam» (nº 66). Importa, no fundo, jogar em vários tabuleiros: pôr a tónica no desenvolvimento humano, o que exige agir sobre as instituições, apostar na inovação, apoiar o capital social e humano, cuidar do emprego justo, criar riqueza sustentável e favorecer à partida a melhor distribuição possível. Michael Walzer fala, por isso, na ideia de justiça complexa. Os governos têm responsabilidades especiais, mas importa compreender que há resistências na economia e da sociedade que têm de ser superadas. Não basta, assim, a vontade ou a boa intenção que levam a uma lógica meramente assistencialista. A maior parte das medidas adotadas visa atacar a privação, o que já é bom, porque é um problema urgente, mas é insuficiente. Impõe-se que as políticas de desenvolvimento, de que falam o Padre Lebret e a encíclica «Populorum Progressio», se traduzam não apenas em medidas visando reduzir a privação – o que é positivo – mas em compreender que é a pobreza, ela mesma, com as suas especificidades que tem de ser combatida. O mal não está no que se faz, mas no que fica por fazer… E a grande lição, que continua na ordem do dia, é a de que o planeamento estratégico deve ligar criação de riqueza e de valor, sustentabilidade, disciplina, combate ao desperdício, defesa do meio ambiente e da qualidade de vida, distribuição, repartição e justiça. É o que fica por fazer que nos deve preocupar. Essa a herança e o testemunho de Alfredo Bruto da Costa que não poderemos esquecer!

 


Guilherme d’Oliveira Martins

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