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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

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MELANCOLIA DE UM ALEGRETTO…
por Camilo Martins de Oliveira


Diz Eduardo Lourenço: "o que eu sou como ser mortal (o que todos somos) está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia". Diz-se que Pio XII, na agonia da sua morte, pediu para ouvir como companheiro de viagem esse segundo andamento da sinfonia de Beethoven. Escuto-o agora, em cálida tarde de sábado, enquanto me passeio por leituras... E surge-me a interrogação de Paul Gauguin, pintada em ilha perdida do Pacífico, quase nos antípodas de nós: "quem somos, donde vimos, para onde vamos?"


No percurso da leitura, deparo com dois títulos no El País: "Era como estar en una pelicula" e, páginas adiante,"Espacios libres de niños/ los hoteles y restaurantes solo para adultos experimentan um polémico auge/ la crisis acelera esta opción minoritária/ que el sector abraza para captar clientes". O primeiro título refere-se ao tiroteio mortífero num cinema de Denver; o segundo nem precisa de esclarecimento. Ambos, afinal, traduzem fatores culturais da crise em que mergulhámos. Assim, apesar de doutorando em neurociências, o jovem Holmes "assumiu-se", na estreia de mais um filme de Batman, como mais um herói da violência indiscriminada que, todos os dias, apetitosamente nos é servida pela "comunicação social"... Porque a exploração da fraqueza, do mimetismo, da debilidade mental dá lucro aos que vendem!


Também as crianças, como as coisas bonitas do passado e tantas do presente, todas essas que queremos livres, construtivas e fraternas, já são, ao que parece, obstáculo ao lucro... Talvez não fosse mau lembrar que esquecer os outros, a pessoa humana -- que é real -- por essa ideia matemática e abstrata que é o dinheiro, é, muito simplesmente, uma estupidez.

 

TERRA DOS HOMENS…


Nos anos 30 do século passado, meditando sobre o avião que pilotava, o desenvolvimento das máquinas e o advento de uma nova era técnica, Antoine de Saint-Éxupéry escrevia (cf. «Terre des Homme», III – L’Avion): "Só agora começamos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo à nossa volta mudou tão depressa: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas mais íntimas fundações. As noções de separação, de ausência, de distância, de regresso, embora mantenham os mesmos nomes, já não contêm as mesmas realidades. Para apanhar o mundo de hoje, usamos uma linguagem estabelecida para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela simples razão de que corresponde melhor à nossa linguagem"...


Em 1990, Jacques Le Rider publicava nas PUF o seu "Modernité viennoise et crise d´identité (1890-1938)", onde defendia que a modernidade vienense se tornou " numa das nossas referências estéticas e intelectuais mais importantes", por ter pensado a modernidade "como premonição do fim de um mundo". Situando-o no tempo, vemos como o movimento modernista vienense baliza uma crise que despoletou a queda das grandes monarquias da Europa central, os processos de industrialização e colonização aceleradas, as revoluções socialistas e anarco-sindicalistas, e os conflitos e vexames inerentes a tudo isso e que conduziram à hecatombe da 2ª Grande Guerra.


Para Jacques Le Rider, Schoenberg, Schiele, Musil, Freud, Wittgenstein, todos "os criadores vienenses refletiram de modo crítico a sua condição de homem moderno,feita simultaneamente de euforia e mal-estar..." Mas essa criatividade deveu-se "à imigração e à diversidade étnica, não à homogeneidade nacional..." Assim, Le Rider atribui à incapacidade política de pensar essa coexistência o fim do "modelo muito elaborado da pluralidade nacional, linguística, étnica e cultural no centro da Europa". Quero hoje começar a refletir sobre a crise presente e sobre a nossa interrogação da Europa. Não numa perspetiva economicista, nem à luz dominante da prioridade dada à política financeira. Mas antes partindo da consideração do povo, dos povos europeus de hoje, e dos desafios a que terá de responder para começar "a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir".


Aliás, a casa dos homens está sempre em construção, pois das pessoas que nascem, vivem e morrem, ela é feita. Da Jerusalém Celeste à Torre de Babel, do monaquismo às comunidades hippies, por constituições de estados e convenções internacionais, vamos tentando... Temos de olhar para a Europa de hoje, tal como se situa num mundo em globalização, em que as tecnologias de comunicação e transporte tornam o longínquo imediato e próximo e vão confrontando o sentimento de si com entidades várias e a tentação mimética de misturar tudo. A miscigenação étnica e cultural é hoje um fenómeno crescentemente generalizado e frequente. Mas também gera receios, desconfianças, racismo, fanatismos. Por isso mesmo, se torna tão importante que cada um se compreenda melhor a si, cada pessoa, cada povo, cada cultura. A consciência informada e limpa da própria identidade é condição prévia do convívio e do diálogo, e estes são participação e partilha, não são eliminação.


Fala-se do inglês como língua universal e há quem pretenda que as línguas nacionais ou os dialetos regionais não têm razão de existir num mundo global. Mas o inglês que funciona como língua franca é também um inglês que se destila, filtra e empobrece e, por vezes, já pouco tem de inglês clássico, ou pouco a ver com a cultura anglo-saxónica (que não é só a dos negócios) Quantos dos nossos "CEO", que fazem "statements" com três palavras de inglês para duas de português, conseguirão ler Shakespeare no original? Deverão por isso os anglófonos castiços abandonar o vate ou todos nós esquecê-lo? Ou não deveremos nós, portugueses, conhecer melhor, como diria Eça, "o nosso Camões"?


Na Europa de hoje vivem - e são europeus, tal como os afro-americanos são americanos e não já africanos, e isto não só por imposição legal ou reconhecimento de um direito, mas culturalmente - gentes de variadas origens étnicas, geográficas e culturais. Basta ver na televisão jogos entre seleções nacionais europeias de futebol ou atletismo para disso nos apercebermos, ou, mais simplesmente, sair à rua. Cada um deles deverá ter uma dupla função: a de aprender bem a língua do país que os acolheu (ou já a seus pais e avós) e, com a língua, ir apreendendo uma cultura enquanto visão e modo de estar no mundo e na vida; mas também, porque o modo vive e evolui no tempo, enriquecer essa cultura e essa língua com a contribuição do seu pensamento, sentimento e discurso. Afinal, como qualquer de nós. E não têm a língua e cultura lusíadas sido enriquecidas pelas literaturas brasileira e afro-lusófonas?


Em próxima oportunidade, poderemos falar na importância das chamadas humanidades na construção da casa que todos teremos de habitar. Teremos de perceber como a preservação da memória histórica e a transmissão da língua viva são fatores de entendimento, de diálogo e de convívio.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 27.07.2012 neste blogue.  

A VIDA DOS LIVROS

  
De 22 a 28 de maio de 2023


Assinalamos esta semana, o Centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), homenageando o amigo de longa data do Centro Nacional de Cultura e nosso sócio honorário.

 

 

LIBERDADE, HISTÓRIA E CIÊNCIA
Leitor atento, Eduardo Lourenço conhecia bem a conferência de Karl Jaspers, nos primeiros Encontros Internacionais de Genebra, em 13 de outubro de 1946, quando em resposta à pergunta – o que é a Europa, invocou três palavras: liberdade, como vitória sobre o arbitrário e compreensão da intranquilidade e da inquietação; história, enquanto encontro e diálogo e procura da liberdade política; e ciência, como apelo à verdade, uma vez que “a liberdade exige a ciência, não só a ciência como passatempo dos nossos ócios, não só como técnica subordinada a fins práticos, não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta universal de conhecer o conhecível”. Todo o percurso do autor de Heterodoxia foi feito de um apego claro relativamente à tripla invocação feita em Genebra. De facto, a heterodoxia que cultivou assentava nas ideias de autonomia e emancipação, pelo que quem firmemente acreditasse que possuía a liberdade, já a teria perdido de modo irreversível. O culto do paradoxo pelo ensaísta significou, assim, a compreensão da incompletude humana e de uma inelutável imperfeição. Daí o apego ao método do ensaio, com demarcação permanente relativamente a um “pensamento fechado e completo”. Assim, o que lhe surgia como problema ou questão de “identidade”, para a pessoa, o grupo ou a nacionalidade, não diria respeito à identidade propriamente dita, mas á sua manifestação ou à sua expressão, enquanto “perturbação”. E deste modo a liberdade individual tornava-se um fator de visão crítica. Como disse em Nós e a Europa ou as duas razões, numa conferência proferida nos Estados Unidos (em Durhan), em 1984, podia “concluir-se que, em sentido rigoroso, não há nunca questão alguma de identidade. Seria uma conclusão apressada. Mais exato é afirmar que para o indivíduo, o grupo, a nação, a questão da identidade é permanente e se confunde com a da mera existência, a qual não é nunca um puro dado adquirido de uma vez por todas, mas o ato de querer e poder permanecer conforme ao ser ou ao projeto de ser aquilo que se é”.


PENSAMENTO E AÇÃO
Tal como encontrara na conferência de Jaspers e nas suas considerações proféticas, o pensador ocupou-se da reflexão sobre a identidade num mundo global – onde coexistem fatores contraditórios, inerentes à própria complexidade. Nenhum facto, nenhuma consequência tem apenas uma razão ou explicação. E a situação atual do mundo demonstra, a cada passo, essa exigência de entendimento da importância do “ato de querer e poder”, que deve permanecer “conforme ao ser”, enquanto situação e projeto. Desde a queda do muro de Berlim, quando se esperava uma convergência de sistemas e de paz, assistimos à fragmentação política; e quando prevíamos a emergência de um regionalismo supranacional, deparámo-nos com um perigoso tribalismo, que agrava os riscos do nacionalismo.  E sobre os escombros da guerra fria ocorreram perigosas polaridades difusas – desde o terror de 11 de setembro aos novos imperialismos larvares que redundam na emergência de guerras incontroláveis. Daí a coexistência de esperança e de desencantamento, que são, no fundo, faces da mesma moeda. E o ensaísta, na linha essencial de Montaigne, partiu da experiência pessoal para a realidade que nos cerca. Daí que a compreensão do Portugal moderno devesse fazer-se em ligação estrita com a noção de “Europa como Cultura”, como encontramos no texto com este título escrito em “Finisterra” no ano emblemático de 1989, e que hoje renasce com uma imprevista atualidade.


A EUROPA EM CONSTRUÇÃO
Que Europa se vai construindo? Há sinais preocupantes. “É provável que, dentro em pouco, a Europa constitua um supermercado florescente, um espaço dourado por excelência de uma sociedade hiper-consumista, ao mesmo tempo que num lugar de diversão sem rival no planeta. Esta perspetiva não só é plausível, como, de certo modo, fatal”. Contudo não é uma cultura europeia que se constrói, mas um “invólucro vazio, uma realidade sem alma nem memória. Uma Europa cortada da relação com os valores culturais que criou, indiferente à sua herança E à sua riqueza cultural, será apenas uma Disneylândia para a nossa pseudo-infância de europeus”. Se todas as culturas, todas as civilizações fizeram de si mesmas e do mundo à sua volta uma história global, numa relação privilegiada com a Verdade, através de ídolos, deuses e do próprio Deus, em nome da sabedoria e da certeza, a consciência europeia criou uma cultura de inquietação, de angústia e de desafio aos deuses. E assim, nós europeus, tornámo-nos os únicos humanos que não temos identidade. “A essência da cultura ocidental cifra-se na vontade de nos dar um nome”. E como “continente metafísico” a Europa confronta-se com a divergência, o conflito e com a inquietude. “Em boa verdade, o passado europeu com os seus intermináveis conflitos, os recentes horrores do nosso século não abonam muito a esta tentativa – ou tentação – de amalgamar a história europeia à da luta pela liberdade, como de formas diversas o puderem fazer Michelet, Hegel ou ainda Croce”. Afinal, a Democracia europeia resulta de um longo conflito, insiste Eduardo Lourenço, o que “não é um dado, um dom caído do Céu, mas uma conquista, sempre inacabada, sempre ameaçada e a reformular em temos cada vez mais complexos e, em última análise, imprevisíveis. O seu cimento foi a audácia, o sacrifício, o sangue, mas acima de tudo, uma exigência de justeza nas ideias e de justiça nos atos”.


A Europa foi construída pelas ameaças dos persas, turcos, mongóis, árabes, que forjaram a nossa identidade. “No fim de contas, o único inimigo que os portugueses sempre tiveram foram eles mesmos. O que era já visível para Erasmo não deixou de o ser em vésperas da sua conversão em ‘Comunidade Europeia’…” A guerra civil perpétua europeia foi atenuada pela razão, mas há um esquecimento cíclico que nos assalta e que nos leva a contentar-nos erradamente com os resultados comerciais ou económicos de curto prazo. Para Eduardo Lourenço, somos, porém, demasiado indiferentes aos conceitos e ideais que preocupavam Jaspers em 1946, quando este pensava numa regeneração: Verdade, Valor, Liberdade, elementos que durante séculos constituíram a referência imperiosa do pensamento, da ética, da arte e da ação europeias. “Se não houver Europa como cultura, e enquanto a não houver, todos os outros sucessos europeus repousarão sobre a areia”. Mitificação do cultural? Apenas a simples lembrança de que “Europa foi sempre, não apenas uma cultura entre outras, mas uma exigência do sentido que engloba a crítica da própria cultura”. Contudo, o pensador não falava de um museu mais ativo do que uma mera referência turística, nem de um mero espaço de deslumbramento alargado, de comunicação de tesouros ou uma rede de gabinetes de curiosidades, mas da tomada de consciência das raízes comuns. “A Europa como cultura é outra coisa que essa fluidez nas trocas culturais relativas ao passado e ao presente, qualquer coisa que tem pouco que ver com o espetáculo televisual dos jogos inter-fronteiras”. Importaria demarcar-nos de uma ideia pobre de mínimo cultural, emerso no puro universo do espetáculo e da distração, da internet e dos robôs, em lugar de encarar a cultura e arte como valores … Como quis Coudenhove-Kalergie, podemos acrescentar, ser necessário entender Ulisses como o protótipo do europeu, enquanto o herói do primeiro romance de aventuras do Ocidente, cujo caráter tem várias dimensões. Não foi apenas bravo e magnânimo, mas dispôs de ardil e astúcia, com uma paixão temperada pela medida, não procurando a aventura, mas dominando-a, sem procurar a luta, mas ganhando-a.


Para Eduardo Lourenço, Camões, Antero de Quental ou Fernando Pessoa – ao lado da grande plêiade de europeus como Ésquilo, Dante, Erasmo, Goethe ou Rilke, Tolstoi ou Dostoievski – definiram, através das suas obras, um espaço exigente, enigmático, inventivo e grandioso da cultura concebida como cultura das diferenças, vivendo da busca do que T.S. Elliot considerava ser o muito da sabedoria que se perdia na informação e no conhecimento. Em suma, dependemos “da invenção de um caminho e de uma saída que ninguém nos deu nem pode descobrir em vez de nós”. E a nossa relação com o ensaísta tem a ver com essa inalienável necessidade de termos presente esse poderoso desafio que nos liga à humanidade e à cultura como vida.  

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de março de 2023


Eduardo Lourenço dirigiu a revista “Finisterra” entre o Inverno de 1989 e o ano em que nos deixou em 2020, recordamos essa experiência.


UM LUGAR DE ENCONTRO
«Finisterra: um sítio onde a História nos colocou como europeus do Sul, prometidos a um futuro nem de nós mesmos suspeitado, lugar de margem, de isolamento, de sonho e de vertigem. Apesar das aparências, num mundo, onde tudo é já centro e circunferência, este lugar que é ainda o nosso, que nos fala antes que nós o falemos como portugueses, é um lugar propício à consideração nua da nossa situação histórica, nacional, europeia, nos finais de um século que conheceu mais metamorfoses que aqueles que nos precederam: Em todo o ‘fim’ está inscrito o aspeto de um ‘começo’. Ou de um eterno recomeço». Assim se exprimiu Eduardo Lourenço, em novembro de 1988, nas vésperas de um ano de mil acontecimentos e de mudanças radicais, no início da revista “Finisterra”, que iria dirigir até à morte, com uma designação própria, apesar da coexistência de uma outra revista de âmbito científico e geográfico, animada por Orlando Ribeiro e seus discípulos. O ensaísta insistiu, porém, especialmente nesse título, uma vez que quis desde o início deixar claro que havia uma simbologia a preservar, que ultrapassava em muito uma lógica meramente topográfica. “Finisterra” significaria, assim, atitude e desafio, compromisso e programa. Tinha a ver com uma atitude, uma vez que chegados onde a terra acaba e o mar começa, haveria que considerar a construção do futuro como obra de vontade e de compreensão da sociedade. Do mesmo modo, significaria considerar um desafio, como exigência de organização social e política, centrada numa obra de cidadania. Relativamente à ideia de compromisso, pressuporia a ligação entre o pensamento e a ação, de maneira que o debate e a reflexão pudessem constituir-se em pedra angular de uma cidadania ativa. E, no tocante ao programa, a referência a “Finisterra”, revelar-se-ia necessária e profética, em nome do pensamento democrático na sociedade portuguesa, fundamento de uma instituição atenta e ativa.


UMA OPÇÃO DE LIBERDADE
Desde 1989 até ao presente, a ideia de um novo “fim da história” deu lugar no mundo à verificação da fragilidade do Estado de direito e a uma preocupante erosão dos direitos fundamentais. Nestes termos, para Eduardo Lourenço, “Finisterra propunha-se ser uma “tribuna de livre discussão de todos os discursos culturais em circulação”. Contudo, a realidade evoluiu de modo surpreendente, na qual a “apoteose do projeto liberal do Ocidente” cedeu lugar a uma estranha ambiguidade em que o elemento liberal se tornou consumista e mercantil, perdendo a prevalência da autonomia individual, dos direitos subjetivos e da coesão social. Quando Carlo Rosselli ou Norberto Bobbio falaram da importância do elemento liberal fizeram-no com a expressão “socialismo liberal”, que associava à justiça distributiva e a igualdade, às tradições da liberdade individual das revoluções inglesa, americana e francesa. Para um pensador como Eduardo Lourenço, contudo, a tradição liberal de Garrett e Herculano, ligava-se naturalmente à dimensão social e crítica da Geração de 1870. E assim a revista “Finisterra” tornou-se um ponto de encontro e um apelo de partida, capaz de pôr o socialismo democrático na ordem do dia. Estávamos longe de suspeitar que o conceito de “democracia iliberal” invadisse o espaço público, num supremo paradoxo, que põe em causa a capacidade emancipadora do primado da lei e da legitimidade democrática. “Finisterra: mais do que sítio particular onde enquanto portugueses devemos enfrentar os desafios de uma História sem sujeito, representa para os homens deste fim de século o espaço propício de uma reflexão de um estilo novo, como foi outrora o do Renascimento. A nossa época não é unicamente, nem essencialmente, a da robótica e da informática, mas a do fim da Terra”. Senão vejamos a chamada quarta revolução industrial – na qual encontramos desde a microinformática e das novas tecnologias de informação e comunicação até aos desafios do aquecimento global, da destruição do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e da procura de energias limpas, passando pela inteligência artificial e pelos avanços no domínio da medicina e da saúde. Mas deparamo-nos ainda com a evolução demográfica, com o envelhecimento da população, com a destruição da biodiversidade – com as desigualdades, com o protecionismo, com a fragmentação, com o desperdício…


«O FIM DA TERRA»
No fundo, “o fim da terra” abrange duas metáforas – a da História, ao chegarmos a uma fronteira do tempo, e a da Cultura, ao abrirmos horizontes de emancipação, de desenvolvimento e de solidariedade. E o ensaísta demonstra a força e a originalidade da designação nestes dois domínios. “Tornou-se um lugar-comum descrever o comportamento das novas gerações como ofuscado pela fosforescência mais ou menos tumultuosa do presente concebido como único tempo de aderência a realidade, jovem humanidade sem memória nem pulsão futurante”. A indiferença e o imediatismo geraram, porém, a prevalência do curto prazo e a desatenção à complexidade. “Um longo rosário de deceções e massacres das utopias mais nobres, de sobra” justificaria a recusa da herança e da memória cultural e histórica. Daí importarem “menos as tradições, mesmo as mais veneráveis, que os atos que lhe dão vida e conteúdo”. Eis, como “Finisterra” correspondia à figuração de objetivos históricos pertinentes. Sem poder considerar as profundas alterações que ocorreriam no ano de 1989, com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, o início de um tempo de polaridades difusas e de regresso da fragmentação tribal, Eduardo Lourenço considerava profeticamente um tempo de contradições. E falava em sermos herdeiros de um outro tempo, precisando de interlocutores dispostos “a discutir, a renovar e transfigurar aquilo que por mais digno de ser continuado já não tem os olhos imersos no novo mundo dos homens que abandonaram a Terra para uma viagem sem fim assinalável”. Como o pensador disse em 2000: “uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade” (A Europa Desencantada, 2001, p. 240). Esta questão é crucial. E, se bem virmos, o ensaísta põe a tónica na projeção de Portugal para fora de si mesmo, segundo uma identidade aberta. E recordamos como as Heterodoxias constituíram a demarcação da autonomia da liberdade individual, a exigência de solidariedade e da justiça e a abertura cosmopolita (“Europa ou o diálogo que nos falta”) – como “convicção de que o real não é apenas a cabeça (de Migdar) mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo”. Mas a heterodoxia não seria o contrário da ortodoxia nem do niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos…     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

De 6 a 12 de dezembro de 2021.


Um ano depois de nos ter deixado Eduardo Lourenço é recordado em diálogo com o poeta António Osório, na desconstrução dos mitos e na consideração dos mesmos como fatores críticos.


UMA FORMA ESPECIAL DE COERÊNCIA
Se há quem insista em salientar o carácter da sua obra, algo fragmentária, a verdade é que só quem verdadeiramente a não conhecer pode fazer essa simplificação. Por outro lado, o facto de ter analisado a cultura portuguesa no seu conjunto, complexo e heterogéneo, suscitou a ideia de um falso saudosismo. Já o disse diversas vezes, não haver, porém, sombra dessa tentação na obra de Eduardo Lourenço, que vai, isso sim, ao encontro do melting pot que nos formou como Finisterra. O carácter marítimo da nossa situação obriga-nos a ver aí uma originalidade incontornável. O Atlântico encontra o Mediterrâneo e, por força dessa ligação, Oriente e Ocidente buscam-se, aproximam-se e desencontram-se. O achamento de novas terras corresponderá à curiosidade e à aventura. Os fundos árabe e céltico articulam-se misteriosamente e assim a língua e a cultura de onde a terra acaba e o mar começa constroem-se complementarmente. De norte para sul e de sul para norte, a língua e a cultura recebem influências diversas e Eduardo Lourenço, ao longo da sua obra foi procurando construir um complicado “puzzle”, não se eximindo a perscrutar os mais misteriosos enigmas. Daí a sua investigação permanente dos mitos, não para os seguir ou para os assumir, mas para partir deles a fim de os desconstruir, compreendendo criticamente uma pátria que se construiu entre a lírica e a tragédia, passando pelo picaresco. Contudo, essa ciclotimia apenas pode ser compreendida se formos capazes de ligar elementos contraditórios. Assim se entende a insistência na Europa como encruzilhada de destinos, e não como realidade fechada ou fortaleza. Com Camões, Garrett e Herculano, com a geração de 1870, mas também com Cesário, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa do que se trata é de abrir horizontes e não de nos fecharmos sobre nós mesmos nem de cair na tentação da autossuficiência. Como quiseram a emigração liberal ou os jovens do Bom Senso e do Bom Gosto e das Conferências do Casino, haveria que pôr a nossa cultura ao ritmo da Europa. E até Antero encontrar-se-á anonimamente com Michelet… 


CONSIDERAR OS MITOS E A SUA CRÍTICA
Quando Eduardo Lourenço pegou em Fernando Pessoa deparou-se-lhe um enigma por resolver. Qual o lugar da “Mensagem” no pensamento do poeta, sabendo-se que a ideia messiânica que parecia estar subjacente à obra, não poderia ser encarada como um absoluto, conhecendo-se as reflexões críticas sobre a cultura e a literatura – sobretudo, quando se descobriam os fragmentos que constituiriam o “Livro do Desassossego” e quando o mistério dos heterónimos estava ainda longe de ser entendido. Pode dizer-se que aquilo que Eduardo Lourenço alcança no que irá considerar como o seu romance – “Pessoa Revisitado” – é a coerência de um poeta em busca de um novo tempo e de uma nova relação com o futuro. Assim, a palavra “Finisterra” tinha para Eduardo Lourenço uma ressonância muito especial, por contraponto a qualquer periferia: “mais do que sítio particular onde enquanto portugueses devemos enfrentar os desafios que uma História sem sujeito representa (…), é o espaço propício de uma reflexão de um estilo novo, como foi outrora a do Renascimento. A nossa época não é unicamente, nem essencialmente, a da robótica e da informática, mas a do fim da Terra.” (Nota ao número 1 da revista “Finisterra”, Inverno de 1989). Os sinais contraditórios que hoje vislumbramos, bem evidentes nas perplexidades da Cimeira do Ambiente em Glasgow, mas também nas incertezas e nos medos ditados pela pandemia Covid-19, obrigam-nos a corresponder a uma necessidade de pensamento crítico sobre os mitos, não como sucedâneos de um novo positivismo, mas sim como fatores indispensáveis à consideração da complexidade e da prevenção respeitante às incertezas, como tem sido referido por Edgar Morin. Vemos, assim, Eduardo Lourenço como um incansável interrogador da diversidade, do pluralismo e da complexidade. Daí a riqueza da sua obra, que nos permite acompanhar a literatura e a criação cultural como uma realidade em progresso, uma verdadeira peregrinação. E chegamos ao exemplo de Ulisses, nosso símbolo, como ser humano, imperfeito e falível. Com uma artimanha permitiu a vitória grega sobre os troianos, conseguindo depois provar o prazer do canto das sereias sem se deixar aprisionar por elas… Eis o mito em estado puro. Aliás, a propósito de António Osório, que há pouco nos deixou, Eduardo Lourenço diz que “como a de Ulisses a sua astúcia foi a de aceitar-se como simples mortal sempre lembrado em sua travessia do corpo aceso de Penélope. Eugénio Lisboa referiu-se ao ‘fascinante realismo mítico’ desta peregrinação poética. Nada mais exato. Há nela entre mito e realidade uma orgânica circularidade, mas é a realidade na sua nudez solar que é o mito supremo. Ao mais rés da prosa da vida de que os seus poemas são originalíssimo diário, livro da ‘ragione’ florentino e livro de mortos que mais do que o resto avassalam a memória e a transfiguram…” E se falamos da poesia de António Osório e do que dela afirmou o ensaísta é para dizer que há um paralelismo evidente entre o poeta e o percurso do crítico. O percurso do autor de “Raiz Afetuosa” foi o de quem “gostaria de ser visto como alguém que encontrou as suas raízes primordiais na Grécia, emigrou para a Sicília quando da Magna Grécia, sente por Roma uma funda admiração, e pertence a uma geração de uma tradição cultural mediterrânica e atlântica, universalista, que abarca o italiano, o francês, o espanhol e o português”. Também Eduardo Lourenço poderia apresentar este percurso, facto que o conduziu ao ensaísmo na linhagem de Montaigne. Assim, para o caso do nosso ensaísta, temos de esclarecer que, uma vez compreendida a sua obra completa assim poderemos chegar ao entendimento da sua vocação enciclopédica. Mais rica do que qualquer estudo sistemático, ou conjunto de considerações teoréticas, o que podemos perceber na obra do autor de “Portugal como Destino” é uma panorâmica bastante exaustiva da cultura portuguesa contemporânea em movimento, nas suas diferentes componentes, sem a perigosa tentação de apenas procurar descobrir sínteses ou explicações prevalecentes. Daí a referência ao poeta António Osório, em cuja obra Eduardo Lourenço descobre pontos comuns com as suas preocupações e um sentido marcadamente poético, a que o ensaísta nunca renunciou. Contudo, se António Osório praticou sistematicamente a clareza, Lourenço aventurou-se sobretudo no mistério, o mesmo mistério que o poeta perseguiu partindo da realidade palpável das coisas que nos rodeiam. No fundo, o “realismo mítico” é um extraordinário ponto de encontro.    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 9 a 15 de agosto de 2021


Eduardo Lourenço em “Nós e a Europa ou as duas razões” (INCM, 1994), tendo na capa a figura de Erasmo, assume claramente a linhagem da Geração de Setenta, e fala de “ressentimento” e de “fascínio” como referências polarizadoras que coexistiam na atitude dos intelectuais de Setenta, sendo a consciência da distância e da marginalidade uma marca permanente.


FASCINADOS E RESSENTIDOS
Portugal precisaria de ser outro, mais consonante com o continente civilizado, menos condenado à periferia e à distância. Fascinados ou ressentidos, a verdade é que precisaríamos da Europa – “com a mesma ironia calma com que Caeiro se vangloriava de oferecer o universo ao universo, nós, primeiros exilados da Europa e seus medianeiros da universalidade com a sua marca indelével, bem podemos trazer a nossa Europa à Europa. E dessa maneira reconciliarmo-nos, enfim, connosco próprios”. A receção do Realismo e do Naturalismo constituiu um momento fundamental em que uma geração intelectual procurou romper com o fatalismo do atraso e da mediocridade. Para tanto, haveria que seguir as tendências da modernidade, mesmo que isso representasse o assumir do escândalo da rutura. Mas se essa diferenciação era mister de gente culta, importava comparar, até para tentar perceber o que deveria fazer-se para romper com a inércia da repetição conformista ou dos nossos males que tanto irritavam os viajantes estrangeiros. Em maio de 1885, Oliveira Martins, no primeiro número de “A Província”, órgão do movimento da “Vida Nova”, afirma: “Esta é a vida nova que surge dentro do nosso partido, não como um renegar do passado, mas sim como uma afirmação positiva das suas tradições mais nobres e invariavelmente defendidas”. E nesse texto, invoca a referência europeia: “Toda a Europa se acha numa época de reação vitoriosa contra a anarquia económica; em toda ela predomina o pensamento da nacionalização do trabalho e da proteção dos trabalhadores”. Trata-se, assim, da invocação de um projeto claramente socializante, centrado na criação económica e na valorização do trabalho e dos trabalhadores. A Europa e a comparação com a Europa nunca são indiferentes à Geração de 70. Mas não se trata da Europa do livre-cambismo e das injustiças, mas do continente das ideias novas, da liberdade e da igualdade. Por outro lado, há sempre uma preocupação com o tentar perceber por que razão seremos menos europeus.


SEMPRE A EUROPA…
Continue a ler-se Eça de Queiroz, e veja-se como o tema europeu é quase obsessivo – o Primo Basílio vem de Bordéus, Maria Eduarda e Dâmaso Salcede também viajam num paquete vindo de Bordéus, “Os Maias” não se podem compreender sem a referência europeia, Alencar no célebre jantar do Hotel Central fala da “democracia humanitária de 1848” e diz querer “uma república governada por génios, a fraternização dos povos, os Estados Unidos da Europa” e em “A Cidade e as Serras” o que temos é um diálogo sui generis entre Portugal e a Europa. De qualquer modo, há sempre um confronto entre a Europa aceite como um horizonte referencial e a Europa considerada como desafio contra o fatalismo. O Alencar que fala dos Estados Unidos da Europa é o romântico, influenciado pelos engenheiros de Saint-Simon de que Fontes Pereira de Melo é o principal dos émulos. E o sentido crítico que Eça introduz a propósito de Tomás de Alencar aponta o dedo à inconsequência do utopismo romântico, contra o qual se ergue o naturalismo de Ega. A mesma crítica está, aliás, simbolizada no conde de Gouvarinho, representante do fatalismo e da mediocridade aceite. Quando lhe é posta a possibilidade de sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros: “- essa nunca! – prosseguiu ele muito compenetrado. – Para se poder falar alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por trás um exército de duzentos mil homens e uma esquadra de torpedos. Nós infelizmente, somos fracos… E eu, para papéis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me ‘há de ser assim’, não estou!...”. Como é sabido, Gouvarinho não foi para os Estrangeiros, mas para a Marinha e Ultramar, e então tomou a medida fundamental de criar um teatro normal em Luanda. Ainda em “Os Maias”, Carlos, no final do romance, cético e distante dos entusiasmos reformadores de dez anos antes, vindo da Europa, descreve o viver bem: “Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clube com os jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros às lebres no Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bricabraque e uma pouca de blague. (…) Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável”. Eis o retrato de uma decadência perigosamente atrativa. E Carlos da Maia vê Portugal como uma realidade dividida: entre o dever ser civilizado e europeu e o peso do atraso e da sociedade antiga. De um lado, a “gente feísssima, encardida, molenga…”; de outro os sinais de imitação do que vem de fora – a Avenida, o obelisco dos Restauradores, a moda das botas aguçadas na ponta… A Europa aparece, assim, com um sentido nitidamente ambivalente – ora como referência externa que se imita sem consequência séria, ora como desafio transformador que não esqueça as nossas características próprias.


O CASO DA CIDADE E AS SERRAS
O caso de “A Cidade e as Serras” é bem ilustrativo. Jacinto está cansado da civilização e vem para as serras, não para a capital. Mas sabemos que, de certo modo, a insatisfação permanece. É verdade que Jacinto assume a clássica “aurea mediocritas”, que Gonçalo Mendes Ramires sonha com o Portugal em África, que Fradique Mendes entroniza a Quinta de Refaldes e outras deambulações no país genuíno – mas isso não significa a recusa queiroziana da referência europeia, antes representa o assumir de um mal-estar moderno europeu, simbolista. É, de algum modo, por influência da Europa que a crítica do excesso de civilização se faz. E, se bem virmos o que está em causa, não estamos perante um apelo isolacionista, mas um cosmopolitismo, que se centra no horizonte europeu. Em suma, o que está em causa é a recusa da condenação ao atraso, o apelo à vontade, às diferenças e à abertura de espírito e de fronteiras. Entre o fascínio e o ressentimento, sobretudo num tempo em que a história europeia prepara um século de incerteza máxima, e em que Portugal sofre uma crise muito profunda de credibilidade e de vontade, a Geração de Setenta sentiu no íntimo de si o peso de todas as contradições. A referência europeia é, no entanto, permanente e marcante, mas não pode ser superficial e mimética. A Europa de Alencar é aquela de que foge Jacinto. Ao invés do tédio que enfastia Jacinto, a Geração de Setenta tem no horizonte uma “sociedade outra” (na linha de Henriques Nogueira e de Lopes de Mendonça, influenciados pela “Primavera dos Povos” de 1848). Daí que o ceticismo de Carlos da Maia e o sentido crítico de João da Ega recusem a claustrofobia do país isolado e só. O “europeísmo” que a Geração assume é sempre o da abertura e da emancipação, não o da burguesia instalada e do bem-estar que entedia Carlos da Maia. “Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada” – continua bem presente – na perspetiva de “adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

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  De 31 de maio a 6 de junho de 2021

 

«Ver é Ser Visto – Fragmentos Essenciais» é uma Antologia de Eduardo Lorenço (1923-2020), na qual se reunem alguns dos textos mais significativos do grande ensaísta.

 

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DE FORA PARA DENTRO…

Eduardo Lourenço sempre sentiu a necessidade de analisar a realidade cultural de fora e por dentro. A sua ideia de heterodoxia deparou-se, desde que surgiu, com múltiplas incompreensões – já que várias ortodoxias se sentiram atingidas. Procurando salvaguardar sempre a independência de espírito, causou em muitos dos seus leitores e investigadores sentimentos diversos e contrastados. Manteve-se, porém, fiel às inquietações fundamentais. Longe das certezas, sempre preocupado em pôr-se na pele do outro, considerou como necessário evitar conclusões simplistas, partindo da imperfeição humana e da responsabilidade de caminhar no exigente sentido de uma singularidade e de uma sociedade melhores. A escolha do ensaísmo, no caminho indicado por Montaigne, significa, aliás, a preocupação fundamental de procurar, a partir da reflexão pessoal, não uma ordenação do mundo, mas o entendimento da complexidade humana e das suas metamorfoses. E percebemos, assim, a influência de Sílvio Lima, mestre que encontrou na Alma Mater de Coimbra, e a aplicação de uma persistente análise que fez do método ao longo da vida, com engenho e inesgotável capacidade inovadora. Os textos que constituem a antologia procuram abranger momentos importantes do percurso do seu autor, começando pela definição da atitude independente e heterodoxa e pela referência fundadora da relação com a Europa e com o diálogo que então nos faltava (1949), colocando essa reflexão na continuidade de quantos portugueses recusaram fechar-se dentro das fronteiras, desde os renascentistas aos românticos, como Garrett e Herculano, até à complexa atitude de Antero de Quental e da sua geração, de quem se sentiu tão próximo sempre. E nesta linha repensa Portugal (num contexto existencial), glosa a conferência de Antero sobre as “Causas da Decadência”, interroga Oliveira Martins, analisa criticamente o papel dos mitos, desconstrói a saudade e o sebastianismo, encontra-se com o Camões histórico enquanto referência cultural perene e diversa, e mergulha numa reflexão sobre Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera, aprofundando, à medida que mais se ia conhecendo a obra do poeta, a significação do seu lugar no tempo, para além da sua consideração portuguesa. A existência mítica e os caminhos vários que abre foram uma preocupação permanente do ensaísta, em busca da diversidade, da porta aberta, do melting pot português, do significado da nossa Nau de Ícaro (de um quadro de Breughel, o velho), das aventuras e desventuras migrantes, do País entre a realidade e o sonho, da língua projetada universalmente. Mas o sentido crítico, sempre muito agudo, levaria à reflexão sobre a Europa desencantada, labirinto de uma realidade necessária e frágil. E, por fim, nesta recolha, encontramos a relação pessoalíssima com a poesia – porque o ensaísmo de Lourenço procura insistentemente as intuições poéticas para deslindar o significado das ideias no mundo. Hölderlin diria “o que permanece / os poetas o fundam”. A amizade com Carlos de Oliveira obriga a explicações sobre “o sentido e a forma da poesia neorrealista”, a crítica e a metacrítica aprofundam a atitude criadora do autor, Camões é símbolo da nossa cultura e Antero revela a tensão essencial (bem presente neste ensaísmo) entre o pensamento e a utopia.

 

NOSTALGIA DA UNIDADE…

Eduardo Prado Coelho falou de uma nostalgia da unidade e do absoluto em Eduardo Lourenço. Num texto inédito de 1954, publicado pela revista “Relâmpago” (nº 22, 4-2008) (“Ísis ou a Inteligência”), o ensaísta diz: “a mitologia é a verdade dispersa, túnica rasgada de um deus morto a quem só podemos ressuscitar juntando com paciência piedosa todos os pedaços. Essa tarefa é superior às nossas forças”. É essa interrogação permanente sobre os mitos que nos revela uma das facetas mais originais do autor. Se bem virmos, é a desconstrução de mitos, como a saudade e o sebastianismo, ou como os excessos contraditórios sobre a nossa identidade, que permite avançar no sentido de uma ideia de emancipação individual ou coletiva. A melancolia ou o sonho não mobilizam vontades. Precisamos ir além da ilusão. É necessário “rever, renovar, suspeitar sem tréguas as imagens e os mitos que nelas se incarnam”. E o ensaísta é o primeiro a reconhecer uma certa ambiguidade no seu pensamento – expresso em fórmulas como “Poesia e Metafísica” e “Existência e Literatura” (no subtítulo de O Canto do Signo). Mas é a necessidade de entender a diversidade que o leva nesse sentido. “Perceber uma coisa é ver outra no lugar daquela que estamos vendo. Entender uma ideia ver outra no lugar dela. Sempre a ausência é o pano de fudo da presença, mas essa ausência é a grande presença”… “Ver é ser visto”. Esta consideração, sempre presente em Eduardo Lourenço, permite entender o seu sentido crítico, feito de contrapontos entre presença e ausência, entre eu e o outro. Daí a permanente perspetiva crítica e a nostalgia da unidade e do absoluto. São as grandes intuições de ordem global que considera primordiais, e é delas que parte análise dos fenómenos. E é assim que a poesia de Camões, Antero e Pessoa se projetam entre o sonho e a realidade, com a preocupação e evitar a tentação pura do abstrato.

 

CLARIFICAR O ENTENDIMENTO

Em entrevista concedida a António Guerreiro e publicada no citado número da revista “Relâmpago”, Eduardo Lourenço sente necessidade de clarificar a sua relação, falsamente empolada, com o tema Portugal: “Como os meus livros não têm uma sequência clara, muitos deles são muito marcados pela contingência, e são diversificados nos seus objetivos, acabo por não saber muito bem como é que eles são percebidos. Fundamentalmente, sou identificado com O Labirinto da Saudade. Este rótulo que me foi colado deve-se certamente ao facto de esse livrinho ser o único dos livros que suscita interesse por parte de gente dos mais diversos credos (…). E assim apareço eu investido de uma famosa preocupação por Portugal que é o contrário daquilo que penso ter escrito”. De facto, o ensaísta procurou libertar-se dessa simplificação. Mas esse rótulo também se alimentou “desta minha ideia diabólica e masoquista de querer sempre estar também do outro lado, inclusive do lado que me põe em causa”. E é certo que, contra a lógica de um só discurso, existente nas várias famílias ideológicas, o pensador “quis sempre dar uma chance a um discurso antagónico, contra o qual prossigo o meu combate mas que de algum modo integro no meu próprio discurso”.Os textos e as ideias encadeiam-se – numa procura permanente de posição e de sentido. A ordem é difícil de estabelecer – porque o ensaio é uma ginástica do espírito. O labirinto que o ensaísta percorre traz-nos a saudade não como melancolia ou como lembrança e desejo, mas como interrogação e dúvida, paradoxo e demanda de síntese. A paixão por Camões, Antero e Pessoa significa a procura de compreender a cultura como um diálogo permanente entre o sublime e a vida comum, a unidade e a diversidade... Eis o fascínio da leitura.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

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   De 8 a 14 de março de 2021

 

Eduardo Lourenço dirigiu a revista “Finisterra” durante mais de trinta anos e considerou esse título como uma metáfora, valendo a pena relembrar esse testemunho, no contexto de uma vida plena de reflexões sobre a importância política da ligação entre pensamento e ação.

 

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UM ETERNO RECOMEÇO

Quando apresentou a revista “Finisterra”, no Inverno emblemático de 1989, Eduardo Lourenço afirmou: “Finisterra: um sítio onde a História nos colocou como Europeus do Sul, prometidos a um futuro nem de nós mesmos suspeitado, lugar de margem, de isolamento, de sonho e de vertigem. Apesar das aparências, num mundo onde tudo é já centro e circunferência, este lugar que é ainda nosso, que nos fala antes que nós mesmos falemos como portugueses, é um lugar propício à consideração nua da nossa situação histórica, nacional, europeia, nos finais do século que conheceu mais metamorfoses que aquelas que nos precederam. Em todo o “fim” está inscrito o aspeto de um “começo”. Ou de um eterno recomeço». Eduardo Lourenço tem procurado compreender Portugal, em especial nos anos que precederam e se sucederam à revolução democrática, num momento decisivo em que a liberdade chegou com o fim do império. Contudo, escreveu não para recuperar o país, que não perdeu, mas para o «pensar» com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que pensava quando «teve a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma». E pode dizer-se que suscitou de forma pioneira as questões fundamentais de uma identidade que se interrogava, no regresso ao cais de partida, quando havia que pensar a longa viagem, que passou a suscitar a exigência de “um eterno recomeço”. No final dos anos setenta, em «O Labirinto da Saudade», publicado para a revista «Raiz e Utopia», depois de concluir que a imagem ideal de nós mesmos era desadequada da realidade, disse ser chegada «a hora de fugir para dentro de casa, de nos barricarmos dentro dela, de construir com constância o país habitável de todos, sem esperar de um eterno lá-fora ou lá-longe a solução que, como no apólogo célebre, está enterrada no nosso exíguo quintal».

 

CONVERSÃO CULTURAL, OLHAR CRÍTICO

De facto, «não estamos sós no mundo, nunca o estivemos». A conversão cultural necessária teria de passar por um olhar crítico sobre o que somos e o que fazemos. É esse olhar crítico que nos conduz naturalmente aos fatores democráticos e ao humanismo universalista de que falava Jaime Cortesão. E assim podemos ler a uma luz nova “A Viagem a Portugal” de José Saramago, numa continuidade ibérica, tão bem entendida na memória de Miguel de Unamuno em Salamanca. Daí a importância do magistério de Eduardo Lourenço como um cultor natural dos Estudos Ibéricos, ou não fosse ele natural da raia beirã, onde se pode compreender bem a simbiose entre o ficar e o partir e a fronteira como lugar de encontro e diferença. Deste modo, percebemos bem como nos tornámos Todo o Mundo e Ninguém, do mesmo modo, aliás, como todo o Ocidente. E com o tempo, num movimento uniformemente acelerado, Portugal, a Europa e o mundo obrigaram-nos a repensar o destino como vontade, seguindo a lição da Conferência de Antero no Casino Lisbonense sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. E se falo da célebre geração de 70 é porque Eduardo Lourenço tem no seu código genético de pensador a marca fundamental de uma síntese fantástica que liga o grito dos jovens de Coimbra às Conferências Democráticas do Casino Lisbonense e ainda ao impulso futurista do Orpheu. E assim o cultor por excelência do ensaio na segunda metade do século passado procurou ligar a razão e o mito, o idealismo e o sentimento trágico da vida. E, hoje, acordados à força pelas crises (financeira e pandémica) percebemos que os impulsos que clamam «Indignai-vos!» foram profundamente sentidos pelo pensador. Eduardo Lourenço empunhou, assim, o estandarte europeu, com especial empenho, mas sem demasiadas ilusões: «A cada um sua utopia. Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações».

 

COMPROMISSO E AÇÃO

Não é uma pseudo-América de segunda ordem que visamos ou que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. Daí a necessidade de pensar Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, capaz de pôr em diálogo os mitos e a razão, procurando afastar a maldição do atraso. É esse o “eterno recomeço” que Eduardo Lourenço viu na metáfora de Finisterra. O enigma português não pode ser respondido ou encontrado através de qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. Por isso, só a heterodoxia lourenciano permitiria fazer entender o nosso cadinho identitário, indo ao encontro da miscigenação, ligando as ideias e a emoção, e percebendo que a alternância cíclica do otimismo e do pessimismo, entre sermos os melhores ou os piores, nos obriga a assumir o mundo da vida, não como bipolaridade mas como desafio realista. Por isso, na Expo-98, falou de «maravilhosa imperfeição», ligando-a à complexidade e à diversidade. A obra do ensaísta procurou, por isso, pôr-se no outro lado das coisas, assumindo individualmente a missão, que aprendeu em Montaigne, de partir do eu, do incómodo eu, para o diverso outro. Foi, assim, heterodoxo lúcido em busca de mais luz (como Goethe), para poder perceber as diferenças, as particularidades e a universalidade do ser.

Não por acaso, Eduardo Lourenço é um cultor de paradoxos, ciente de que a cultura se enriquece pela capacidade de ver o mundo do avesso ou de fora e de olhar para além das aparências. «É a vida mesma que nos biografa – por isso é a nossa vida – e, escrevendo-se em nós, nos autobiografa sem que a ninguém, salvo essa vertiginosa musa, possamos imputar tão extraordinária façanha». Com o dom de usar as palavras para melhor as adequar ao mundo da vida, o ensaísta não esconde que a essência do género que cultiva, tem a ver com a confissão na primeira pessoa do singular. «Nisso quem está a menos, somos nós, e a vida tão excessivamente a mais que só a conhecemos por nossa nos intervalos em que a temos como se de outro fosse. Só os outros nos tiram retratos e só a coleção aleatória destas vistas ocasionais dos outros sobre nós ocasionalmente arquivadas, se isso valesse a pena, para termos mais tarde e acabada a vida que não nos tem, seria então um “autorretrato”». Em tempos, não por acaso, um grafólogo identificou na escrita do ensaísta «uma excessiva necessidade de outros», e o próprio, paradoxalmente, comparou-se a Judas, que precisava desesperadamente de Jesus Cristo… Voltando ao primeiro editorial de Eduardo Lourenço na revista “Finisterra”: “O futuro, (…) o próximo da cultura, sob todas as suas formas, é o de integrar essa nova condição de finisterreanos, e através dele o de relativizar, em função dessa nova exigência que já começou, todas as urgências, mesmo as mais imperativas, do que continuamos a pensar e a ler como aventura histórica inscrita e circunscrita no espaço natural, física e simbolicamente instável do planeta sublime que já comtemplamos do exterior.(…). Talvez pelo hábito de viver a nossa situação solitária de habitantes de Finisterra e a sua estranheza e mistério como naturais, nós estejamos mais aptos do que outros para vestir, compreender e nos reajustar a esta vertiginosa revolução do imaginário terrestre que tem lugar a nossos olhos”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

de 21 a 27 de dezembro de 2020

A Obra Completa de Eduardo Lourenço está em curso de publicação pela Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido publicado o volume IX “Pessoa Revisitado – Crítica Pessoana I (1949-1982)”, coordenado por Pedro Sepúlveda.


INCERTEZA E MISTÉRIO

Muito se disse já sobre Eduardo Lourenço, mas fica sempre quase tudo envolto numa aura de incerteza e de mistério. Em longuíssimas conversas sempre o senti proteger-se, cético perante as interpretações subjetivas sobre as quais não se detinha propositadamente. Mas sentia-se nele uma preocupação de distanciamento. Um pensador que se qualificou desde muito cedo como heterodoxo, dificilmente poderia deixar-se catalogar, percebendo que haveria tentativas de diversos lados para encerrar o seu percurso num caminho preconcebido. Ao cultivar o ensaísmo, tendo presente a inspiração de Montaigne (“aquela voz que não foi escutada na aventura espiritual portuguesa”) e o exemplo de Coimbra de Sílvio Lima, o escritor assumiu com clareza um subjetivismo dificilmente capturável em qualquer preconceito – até porque, mais do que género literário, Lima considerou, e bem, o ensaio mais como “atitude de ginástica do intelecto”. “Que sais-je?” - a expressão gravada na torre do cultor emblemático do ensaio sempre esteve presente, como interrogação autêntica na caminhada deste verdadeiro buscador de enigmas. Na expressão de Filomena Molder: “Há um trabalho prévio a fazer: pensar por si próprio o homem, o que o obriga a destacar-se do que recebeu e a abrir um caminho que não está traçado: a renúncia a qualquer recado, a qualquer mandato” (Expresso, 4.12.20). “Um ensaísta é alguém disponível para pensar o que merece ser pensado e mesmo o que não merece ser pensado”. Com este entendimento, compreende-se como Eduardo Lourenço partiu da filosofia em direção da literatura, sem nunca esquecer a importância da reflexão crítica e a necessidade de descobrir a identidade cultural através da ficção e da poesia. É certo que não foi um polemista como António Sérgio, mas encontramos preocupações comuns que os ocuparam a ambos, apesar das diferenças evidentes de personalidades e de atitudes. A verdade é que tiveram mestres comuns – entre os quais Antero de Quental e a geração de 1870 e os fundadores da modernidade nacional, Garrett e Herculano, do mesmo modo que ambos seguiram a interpretação do Portugal Contemporâneo sobre as duas políticas nacionais, da fixação e do transporte e sobre a demarcação relativamente ao sebastianismo.

UMA SÍNTESE NECESSÁRIA
É comum dizer-se que pensou Portugal como identidade e enquanto visão cíclica entre o passado glorioso e o pessimismo fatalista, mas a “psicanálise mítica do destino português” é mais do que isso, é uma síntese, que deve ser vista como uma releitura crítica dos mitos nacionais. Os excessos identitários exigiriam, sim, a consideração de que, regressados da grande viagem global, somos chamados a um novo tempo de exigência europeia e de consideração dos nossos limites e vantagens, como país de média dimensão, capaz de valorizar a educação, a cultura e a ciência. Contudo, apesar de uma longa existência vivida no estrangeiro, como exilado voluntário, nunca se considerou um “estrangeirado”, uma vez que não deixou de seguir intensamente a vida portuguesa, com a vantagem de não estar preso ao imediatismo e ao confronto das capelinhas. Considerou-se sempre como um português de alma e coração, sem a desvantagem da excessiva proximidade. E assim pôde tentar libertar-se das influências e dos rótulos. Apesar de descrer absolutamente das interpretações astrológicas, lembrava o seu nascimento no fim de maio e a pertença ao signo de Gémeos – e daí a diversidade de tabuleiros em que poderia agir. Sentia-se, afinal, de algum modo, pensador de várias perspetivas, o que seria muito útil no abrir de novas pistas que ajudariam a revelar, por exemplo, o caso de um outro Fernando Pessoa, percebendo que Alberto Caeiro era diferente de Álvaro de Campos ou de Ricardo Reis, e ainda mais de Bernardo Soares.


O ENIGMA PESSOA
O fascínio pelo enigma de Fernando Pessoa tornou-se fundamental – sendo Eduardo Lourenço quem revelou a figura icónica, como referência europeia e mundial, para além das leituras paroquiais que prevaleciam antes da revelação das suas intuições luminosas. É verdade que José Régio e a presença começaram a abrir a porta para a compreensão da grande riqueza cultural de Orpheu e de Pessoa como de Mário de Sá-Carneiro, mas pode dizer-se que é o autor de Pessoa Revisitado o grande revelador da extraordinária riqueza que tornaria o poeta de Mensagem um mito cultural de dimensão superlativa. A estratégia criadora de Fernando, rei da nossa Baviera, segundo o pensador, foi a de inventar vários sujeitos virtuais que tinham uma identidade virtual. Caeiro e Reis são produtos da ficção. E Pessoa foi assim libertado do universo que criou, assumindo, ele próprio, a sua identidade como mito. O criador e a sua criação tornaram-se sujeitos de um enigma comum, que o “ensaísta” pôde revelar. E a leitura crítica dos mitos torna-se o método original de Eduardo Lourenço. E, não por acaso, afirmará que Pessoa Revisitado tem “tudo o que penso e sou, é o meu romance”. E quem conhece a obra e a influência que exerceu na compreensão e na projeção urbi et orbi do poeta, sabe que só um interrogador de enigmas absolutamente genial poderia (como um grande poeta ou romancista) contribuir para uma melhor compreensão do mundo e do tempo, através de uma relação biunívoca da ficção com a realidade e da realidade com a ficção. Fabrizio Del Dongo, Emma Bovary, Anna Karenina, Natacha ou os Irmãos Karamazov ganharam alma pelo talento dos seus autores, e puderam existir mesmo… Se a crítica literária se tornou escrita poética em Eduardo Lourenço foi porque se libertou de uma dimensão puramente técnica, para se tornar literatura viva. E é essa a originalidade do crítico. A poesia “não tem outra tradução que ela mesma” – como na imagem de Borges segundo a qual o “mapa verdadeiro da Terra seria o mapa que tivesse o tamanho da Terra” (como o escritor recordou no diálogo com Ana Nascimento Piedade – Gradiva, 2015). E assim a crítica “vai sendo atravessada por referências ao objeto estético que é construído realmente pelo poeta” ou pelo romancista, num discurso equivalente à criação poética ou romanesca… Calderón de la Barca disse que “a vida é sonho” e chegamos à importância do mito. Fernando Pessoa torna-se para Eduardo Lourenço um caso de fixação e de osmose, em que o mito nasce da não-identidade e projeta-se para além da ilusão. O que são Campos, Reis e Caeiro no romance de Eduardo Lourenço? São textos. Caeiro, como irmão gémeo de Whitman, mas diferente de Whitman, Campos como uma referência propriamente mimética de Whitman. E eis-nos perante as duas culturas que originam a riqueza literária de Pessoa – a cultura anglo-saxónica (dos tempos da África do Sul) e a mitologia portuguesa - numa confluência de que resulta a ideia de que a verdadeira aristocracia é a da inteligência, e que constitui eixo de gravidade da obra pessoana. Se Pessoa Revisitado é o grande romance de Eduardo Lourenço, Antero de Quental, como poeta e como pensador e referência fundamental da cultura portuguesa, é o indiscutível mestre, ponte entre as raízes e a modernidade – moderno pela atenção que presta às ideias emancipadoras que revolucionam a Europa, e designadamente a paisagem cultural de França, sob o influxo do século das luzes e da revolução de 1789, mas igualmente ciente da importância da História, da tradição e do tempo longo, dos corsi ricorsi de Vico, que para o autor de O Labirinto da Saudade tinham uma importância fundamental. A “incompletude trágica”, de que fala Viriato Soromenho Marques (Expresso, cit.) que o pensador sentiu compreende-se na referência anteriana: “Antero quis beber o vinho novo da Revolução na antiga taça de uma Fé que todo o seu século – e ele mesmo - ajudara a quebrar. Ou inversamente, acreditou que a antiga aspiração encontrava o seu cumprimento nos combates novos sob a bandeira da justiça social” (Antero ou o Socialismo como Utopia, 1983). E assim podemos encontrar o nosso incansável pensador, embrenhado no enigma camoniano da procura do “português que tem tudo em nada”. O leitor insaciável continua a caminhar à nossa frente.   

   

 Guilherme d’Oliveira Martins
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NA MINHA ALDEIA NINGUÉM MORRIA SOZINHO

 

Afirmava Eduardo Lourenço, e acrescento: talvez porque lá os unia o passado e o presente das sementes. Talvez porque lá era a casa das memórias universais, daquelas memórias que só os poetas conhecem: memórias com alma e com destino que se encontram sempre no seio da música que, sem nada dizer, tudo diz, nessa experiência religiosa e bastante só de a escutar. E sim, lá onde e aonde se não morre sozinho, é mundo sem mácula, é punhado de inocência, é enfim, vida com as coisas essenciais reconhecidas.


Quando penso que já não há escolha no entender do morrer e que só os outros dizem do nosso morrer, penso que nem metade do que eu penso, saberei pensar, já que a morte me acompanha e sou eu que lhe faço vista grossa.


Na aldeia que conheci em Vilarinho das Furnas também nunca se soube que alguém tivesse morrido sozinho. A comunidade era total. Até se sabia partilhar a Lua no seu primeiro quarto, bem como a mantilha de neblina que lhe flutuava à volta antes de descer à povoação e tranquilamente passar o corpo pela terra enquanto planava. Assim também se adocicava fosse o que fosse acontecer enquanto se aprendia a morrer sem angústia.


Conversei com muitas gentes de aldeias vizinhas de Vilarinho e registei que poucos se preocupavam numa análise de aprendizagem dos enredos da morte. Parecia que intuíam que o custo de a compreender era inferior ao benefício de acudir ao medo que ela poderia provocar se atentasse contra o poder da comunidade. E de facto, consultar a morte era criar demora nos bois à pastagem, o que era inadmissível: para a súbita aflição, a presença de padre ou de vizinho, bastava para que a facilidade da passagem chegasse pronta na ponta de um olhar ou dos dedos de uma mão. E esta realidade acontecia sempre. Naquela aldeia ninguém morria sozinho, o que tornava a vida de uma leveza única.


Um dia sentada junto à água da barragem que cobriu esta aldeia, fazia eu ricochetear pedrinhas que ressoavam antes do mergulho final, e eis que um professor de uma escola dali de perto se aproximou e me perguntou:


- Porque afogas as pedrinhas? Não lhes escutas o mugido da morte sem companhia? Fingem que não sabem que o saltitar as não livra dela, tão só porque a não entendem, mas o mugido está acima do que se entende.


- Não sei se compreendi o que me disse. Venho de um local onde o poeta Graça Moura escreveu:


Quando eu morrer (…) fica junto de mim (…) segura na minha mão, põe os olhos nos meus se puder ser (…) que ao deixar de bater-me o coração fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura na minha mão.


Ou seja, neste local que bem conheço, a sociedade tem de apelar doridamente, e, melhor acredita no apelo, se ele for feito em nome do amor, para que o desaparecer da vida se faça na possibilidade de uma relação última e íntima com alguém.


O crucial nestes momentos, é a constatação do quanto, há muito, perdemos a simplicidade dos factos e dos processos que por tentativa e erro nos levariam à cor dos inícios dos entendimentos. Concede-se por mais não ser que ninguém leva consigo o pecúlio da vida, entre outras realidades, concede-se também que por excedentes ensimesmados, se morre só.


O mugido que menciona, não creio que se ouça, mas já ouvi falar dele e sei que existe e que de tão tremendo, enterraram-no debaixo das montanhas, lá longe, lá longe, lá muito longe.

 

Teresa Bracinha Vieira
Obs: Solicitou-se a reposição do presente texto já publicado neste Blogue em 13.06.19

EDUARDO LOURENÇO E DEUS

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1. Sobre o filósofo, o ensaísta, o pensador - um dos mais lúcidos do nosso tempo -, o crítico da arte, das múltiplas artes, nomeadamente da literatura e da música..., outros já falaram e escreveram.

Encontrei-o várias vezes e gostaria de deixar aqui breves reflexões sobre o tema em epígrafe, a partir de alguns desses encontros, sempre iluminantes para mim.

2.1. Participámos no Encontro de Lisboa, organizado pelo GOL - era então Grão-Mestre António Reis -, subordinado ao tema “Religiões, Violência e Razão”. E diz-me Eduardo Lourenço mais ou menos assim: Ainda bem que também cá está, porque se o meu avô me visse aqui...

A abrir o Encontro, falou da estranha crise contemporânea. Enquanto o Ocidente se desertifica de Deus, noutras culturas não só não há morte de Deus como, em vez da laicização, continuam na sua Idade Média, acreditando que o seu Deus é o verdadeiro e o Ocidente está em vias de perdição. De facto, o Ocidente teve um dinamismo incomparável, e a razão disso é que o seu debate foi sempre à volta de Deus. Noutras culturas, Deus é um dado e está no centro de tudo; no Ocidente, Deus tem sido uma interpelação infinita. Deus não é uma evidência, porque não é um objecto. Deus é o nome, precisamente enquanto anti-nome, da nossa incapacidade de captar o Absoluto, o modo de designarmos a nossa incapacidade de ocuparmos o seu lugar. O Ocidente é a procura e o debate à volta desta questão. É-se contra a objectivação de Deus, porque Deus-pessoa não é objectivável. Deste modo, o Ocidente afirma-se como procura da liberdade. Quando, noutras culturas, se dá a pretensão de apoderar-se de Deus, temos fanatismo.

E continuou, dizendo que, quando se dogmatiza, é para dominar. A perspectiva cristã caminha sobre outro chão. Aqui, Deus aparece como não violência, como puro amor, como espaço de liberdade absoluta. Sem Ele, as nossas liberdades não têm lugar. Ao revelar-se como amor, Deus mostra que, se a violência é o estado natural, a não violência é que é o mistério, e o que liberta é o não poder.

2.2. De outra vez, vínhamos de um debate, já tarde na noite, do Casino da Figueira para o hotel. E eu disse-lhe que o tinha citado num artigo, pois dissera ao EXPRESSO que lhe “pode acontecer rezar”. E ele: “Admira-se? Todas as pessoas rezam”.

2.3. Em 2016, estivemos de novo no Casino da Figueira, para um debate sobre “Utopia e distopias”. Nele, reflectiu sobre a herança europeia, atravessando a Grécia, a cristianização, o humanismo..., e desembocando nos nossos dias, com esta afirmação: a Europa “nunca esteve tão confrontada com um desafio tão novo”, e “o centro da crise está em França, que está a discutir se tem ou não identidade, e isso é de ficar aterrado”. Daí passou para o medo que a Europa enfrenta em relação ao mundo islâmico, considerando que “o maior aliado do islão é a Arábia Saudita, país que alimenta o cruzadismo que vem desse lado. Mas o mundo tornou-se tão pequeno que nada se pode pôr à margem”.

E ficou-me este aviso: A força e o poder de Vladimir Putin vêm-lhe de ele considerar “a Santa Rússia” como a última barreira contra a islamização da Europa.

2.4. Devo uma palavra de especial gratidão a Eduardo Lourenço pelo prefácio luminoso, logo no título: “Suicidário Ocidente”, seguido do dito célebre de Fernando Pessoa “Não haver Deus é um Deus também”, com que honrou o meu livro “Deus Ainda Tem Futuro?” (2014). Ficam aí alguns parágrafos.

“Enquanto Ocidente, o nosso mundo conhece uma desertificação religiosa sem precedentes e, na aparência, irremediável. Tal é o diagnóstico de Marcel Gauchet, um dos seus paradoxais exegetas inconformado com essa nova versão da tão glosada “morte de Deus”, vivência radical da ausência de sentido para a Vida em si mesma e nós nela. Distingue-se esta nova situação do canónico “ateísmo” que sob a figura da negação de Deus era ao mesmo tempo uma figura da certeza, a mais radical de todas.

... o conteúdo único daquilo que ainda chamamos “história humana” não explicita uma luta análoga a uma fábula à Saramago, um desafio mítico entre o Homem e Deus, mas uma luta sem fim do Homem consigo mesmo como o Outro, com a inconsciente esperança de que o vencedor dela seja enfim o Deus criador e todo-poderoso que nos forneceu o modelo da vontade de poderio que é a essência demoníaca da Humanidade.

Questão atrevida e que na verdade soa a blasfémia (ou soaria, se a formulássemos em terras do islão) esta, que sabemos grave e urgente como nenhuma outra para ocidentais em vésperas de descerem a novas catacumbas: Deus ainda tem futuro? Quando aquela, menos vertiginosa mas não menos apocalíptica, seria: O Homem, a Humanidade, ainda tem futuro?

... Não tardará muito que entremos no tempo da hipercomunicação com o mundo à volta convertido numa espécie de deserto ignorado dos antigos. Foi desta autodesertificação que a dúvida apenas formulável acerca de Deus pôde nascer. Não esperemos que o Deus imaginado por nós como sem futuro venha, como o Cristo de um célebre conto de Eça de Queirós, confirmar-nos que ainda está entre nós. Do silêncio de Deus que nós mesmos criámos não virá nenhum socorro. É diante dele como Ausência suposta e Presença agostinianamente mais interior a nós do que nós que somos convocados para fazer prova de vida. E de vida eterna. A única que nos ajuda a suportar todas as ausências dos que nesta vida nos foram, à maneira de Dante, reflexos de uma Luz mais clara do que a do sol e das estrelas.”

3. O Deus de Eduardo Lourenço era o Deus de Jesus e dos místicos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 05 DEZ 2020