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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA


 

ANDAMOS ESQUECIDOS DO NOSSO ESQUECIMENTO

 

Tenho para mim que será sempre mais simples sabermos onde estamos do que sabermos quem somos. Por vezes até descortinamos com mais facilidade uma atmosfera sobrenatural em objectos simples e familiares da perceção, e, descuidamos que a razão é o lado mais singelo do homem que mais perto o aproxima de si. E entre o misterioso e o vigilante há um tempo enigma no estar vivo que nos faz esquecer o sentido fundamental do nosso esquecimento. No entanto a intranquilidade permanece nesse estado atorreado sob uma hipotética linha de horizonte.

 

Anteontem um moderno artista da pintura com quem aprecio dialogar, dizia-me que os eruditos, sempre discutiram a hipótese de a arte abolir a moralidade já que esta se trata de mera convenção. Acrescentava mesmo, ser desígnio da arte abolir as convenções. Concluía que o nosso esquecimento atingira o hora a hora que impedia a reflexão de realidades como esta, e que isso muito o intrigava, era mesmo como se as gentes se movessem por entre sonos acordados ou vidas sonolentas, e tudo isto se abatia mesmo sobre os ditos pensadores.

 

Escutei, anui e disse-lhe

Não há que esquecer no que dizes, que as artes modernas, a que nos estamos a referir, têm tantas vezes abolido moralidades sem abolir a convenção. E refiro me mesmo a convenções inofensivas, tímidas que persistem com imensa autoridade. Nos romances modernos, existem vários géneros de mulheres, mas se a primeira coisa que se repara numa mulher descrita no romance for algo do seu aspeto físico, leva, normalmente a uma conclusão diferente do tipo de ser do qual se quer falar, esquecido o escritor do tal esquecimento esquecido, já que, se sempre assim referir uma personagem mulher, leva o leitor a demitir-se de outro caminho de entendimento, mesmo que esse não fosse o objetivo do escritor.

 

A questão fulcral é que um pormenor demasiado grande como o de andarmos esquecidos do nosso esquecimento acaba por proteger as vivas convenções que se mantêm fortes ainda que muitas vezes dissimuladas. E isto acontece na escrita moderna que se considera afastada das convenções, enquanto faz questão de que uma falta de pudor a não incomoda.

 

Uma escritora bem conceituada na nossa praça, um dia concordou que, seria mais fácil que as heroínas tivessem olhos azuis e não negros, pois esta era uma velha convenção que se sedimentou e incorporou o esquecimento de assim não poder ser.

 

Helena de Troia assoma às muralhas depois de se fazer um súbito e majestoso silêncio. Poderia ela usar um chapéu de palha e tentar gritar no meio dos estrondosos resmungos dos troianos?

 

No andar esquecidos do nosso esquecimento, mora um périplo por fazer. Quem perde o entendimento da vida, a ela não regressa mais, se não souber viajar para longe. Melhor dormir de janela aberta para que escutemos a ave-flauta. Partamos então que a saga passada não explica nunca o embarque.

 

Andamos esquecidos do nosso esquecimento também aqui neste tema de reflexão. Mas em tudo há que evitar que a navegação cesse; há que definir a estratégia de navegações futuras por onde a vida não perigue.

 

E continuámos a falar, sem nos resignarmos à renúncia

 

Teresa Bracinha Vieira