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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Dizer Eu. Alguém livre

Matthieu Ricard.jpg

 
 
    Uma antiga aluna, agora avó, enviava-me há dias um vídeo com o seu neto. É uma alegria comovedora ver aquele bebé a gesticular e a sorrir, agitando-se... Uma outra avó: “É uma emoção muito grande”. E eu alegro-me também e reflicto: Estes bebés vão crescer, aos poucos vão tentar articular palavras, e muito lentamente, depois de se referirem a si como o menino, a menina ou pronunciando o seu nome, dizer “eu”. Ao princípio sem consciência do que isso significa na sua grandeza, mas, depois, mais uma vez lentamente, com tom acentuado e afirmativo de autonomia... Evidentemente, sempre em contraposição com o outro, um tu: afinal, há eu porque há tu, e a primeira tomada de consciência é mesmo a do tu, mas sempre numa interação e inter-relação permanentes. E num processo nunca verdadeiramente acabado...
 
    E perguntamos: o que diz alguém, quando diz "eu", fazendo-o de forma autenticamente consciente? Afirma-se a si mesmo, a si mesma, como sujeito, autor/a das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, a si mesma, na abertura e em contraposição a tudo.
 
     Mas, reflectindo, deparamos com observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
 
    Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nessa direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me uma vez, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O Eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
 
   Por mim, afirmo que há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. De facto, vivemo-nos numa identidade em processo. Em relação ao eu, o que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível. Nunca nos captamos totalmente, porque nos experienciamos como uma subjectividade reflexiva: somos objecto de conhecimento para nós próprios, mas, uma vez que a possibilidade de nos objectivarmos é uma subjectividade que se retrai sempre, nunca nos conhecemos adequada e plenamente, de tal modo que seremos sempre enigma para nós mesmos.
 
     E é e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência, consciência da consciência, consciência de que somos conscientes... É claro que o Eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo — o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado também pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro — processos neuronais da ordem da terceira pessoa — para a experiência subjectiva do eu na primeira pessoa?
 
    Apesar de não se afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados."
 
    E sou livre ou não? É claro que, como escreveu o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade: "as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis."
 
    Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
 
    Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais. Como já aqui tentei explicar, a liberdade é-nos dada numa experiência — faço a experiência de ser dado a mim mesmo e, consequentemente, a experiência de ser dono de mim próprio e, portanto, dono dos meus actos. Por isso, sou responsável por mim e por eles, isto é, respondo por eles e por mim.  Dada a neotenia — nascemos por fazer —, a nossa missão e tarefa é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós próprios. E todos morremos inacabados. Para os crentes, morremos para Deus, o Outro absoluto que finalmente nos dirá quem somos para Ele e Ele para nós. A plenitude.
 
 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 22 de abril de 2023

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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       Minha Princesa de mim:

 

Miguel Real (já leste tu, Princesa de mim, o seu Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa - Planeta, Lisboa, 2017 ?) será, a meu ver, pelo método e seriedade, o ensaísta de serviço à arrumação dos vários esforços e exercícios que outros fizeram e vêm fazendo, com convergências e divergências, para refletir sobre identidade e cultura portuguesa - e cito-o - desde a obra dos pensadores da Geração de 70, mas também - e sobretudo - de Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, António Sérgio, padre Manuel Antunes, Jorge de Sena, António José Saraiva, Boaventura de Sousa Santos, José Mattoso e Eduardo Lourenço. E, no balanço, traça o perfil de um discurso de Guilherme d´Oliveira Martins, por ele espremido da leitura do livro deste (Portugal. Identidade e Diferença, Gradiva, Lisboa, 2007) que parece matizar a afirmação do mesmo de que "os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo":

 

Segundo Guilherme d´Oliveira Martins, Portugal, reafirmando a sua complexada identidade cultural passada, mas recusando simultaneamente «o triunfalismo e o miserabilismo», tem hoje, nos princípios do século XXI, integrado na Europa, a grande oportunidade de superação dos seus traumas históricos, normalizando-se, racionalizando as suas estruturas sociais e estatais, unindo «pensamento e ação», integrando ambos num projeto complexo e multidimensional sumamente caracterizado pela abertura ao «outro». Neste sentido, propõe o repensamento e a revitalização da nossa identidade histórica por via de uma abertura relacional a outras entidades (Europa, África, Brasil...), um autêntico mergulho no «outro» que provocatoriamente abale os nossos complexos («saudosismo, sebastianismo, lirismo sonhador, fatalismo oriental, brandura de costumes»), forçando a sociedade civil a não depender em absoluto do Estado, «matando» definitivamente Dom Sebastião dentro de cada português.

 

Mas agora, pergunto eu, não estaremos nós a reentrar, pela porta do quadro de uma "atualização" conveniente, na mesma obsessão? Na fezada num eu nacional histórico, chamado a dar "autênticos mergulhos" noutros, tudo isto (quanto é?) proposto num discurso grandiloquente e alheio a qualquer análise empírica e crítica da realidade da sociedade portuguesa atual, e da sua presente circunstância?

 

Na verdade, aquele tal Portugal só pode ser um conceito abstrato, um sentimento desencarnado, o "outro" ou "outros" em que deverá "mergulhar" mais não sendo do que destinos de uma viagem de regresso a mitos com que se relacionaram passadas grandezas ou onde se procuram novas alienações... As a matter of fact, como diriam os nossos pérfidos albiões, a portugalidade contemporânea - falo de gente, não de um conceito - surge ainda, infeliz e largamente, como a piolheira de que falava o Senhor Dom Carlos I, e também, doa a quem doer, feliz e crescentemente, como um movimento de novos "estrangeirados" (dói-me, a mim, que assim sejam tratados) que se distinguem no panorama internacional, desde a interpretação da música clássica e barroca até à qualidade dos trabalhos de investigação em áreas de humanidades clássicas, ou em disciplinas na vanguarda da investigação científica. E não esqueço os emigrantes operários que, em terras estranhas, se converteram à contemporaneidade e se reorganizaram, em si mesmos e socialmente, para saber responder a desafios que o imobilismo da sociedade portuguesa vezes demais nem sequer permitiu que se lhes pusessem... 

 

Não vou maçar-te com discursos tratadistas, deixa-me só citar-te passos de autores vários que poderão ajudar-nos na interrogação desses que, quiçá, serão alguns dos nossos atuais mitos alienantes, como a lusofonia, o Atlântico, o Brasil, a África, etc., etc.. Se bem me lembro, já João Gaspar Simões emitia reservas sobre o português do premiado Luandino Vieira, torcendo o nariz ao uso de vocabulário de raiz regional ou dialectal angolana e outros idiomatismos... E talvez me não engane muito ao dizer-te que o famigerado acordo ortográfico também é uma tentativa de controlo da língua portuguesa pelos seus primeiros "proprietários"... Simplesmente, a meu ver, vira-se mesmo assim o feitiço contra o feiticeiro: gerou-se mais confusão no que já era um medíocre tratamento do português por uma geração de nativos europeus, em que deparamos com alunos e, até, docentes universitários a falar e escrever a língua pátria bem pior do que gente do tempo dos nossos avós que apenas recebera instrução primária; e, pior, vai-se fazendo com que se percam oportunidades de cada um poder descobrir caminhos para chegar à origem das palavras e melhor entender o seu significado e a relação entre elas. Mas vou a um trecho do professor Onésimo Almeida, no seu A Obsessão da Portugalidade (Quetzal, Lisboa, 2017):

 

A transformação da língua portuguesa em África é um fenómeno mais recente e mais escrutinizado pelo antigo poder dominante. Agora libertos, os escritores africanos têm vindo a fazer um maravilhoso trabalho linguístico, tornando verdadeiro para eles próprios o dito de Pessoa/Bernardo Soares «A minha pátria é a língua portuguesa». Basta vermos as posições de Jofre Rocha, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane («Uma coisa que eu deixo muito clara: português-padrão, nunca! Não estou interessada.»), Henrique Teixeira de Sousa, Raul David ou Boaventura Cardoso. Este angolano, em particular, é sucinto e claro:

 

   [...] essa língua vai-se enriquecendo de uma forma acelerada, vai-se afastando cada vez mais da norma do português falado em Portugal. Não será uma língua diferente, não será outra língua, mas haverá certamente muitas contribuições novas que resultarão da coexistência entre a língua portuguesa e as mais diversas línguas nacionais. Porque a língua portuguesa coexiste com as línguas nacionais. E, naturalmente, dessa coexistência resultarão uma série de empréstimos - quer para a língua portuguesa, quer para as próprias línguas nacionais. Eu acho que a língua portuguesa em Angola vai sofrer profundas alterações - aliás está sofrendo neste momento - e nalguns casos haverá um afastamento considerável em relação à norma do português falado em Portugal.

 

Luandino Vieira, o esplêndido criador literário que tão bem soube aprender com Guimarães Rosa a transformar a linguagem da gente e a fazer com ela obras de arte - cadeia que desembocou depois no mágico Mia Couto -, captou o problema nestes termos:

 

   Não tenho dúvida nenhuma [...] as nossas crianças não vão falar, evidentemente, o português de Portugal [...]. [Ele] mantém-se, mas o resultado vai ser outro. Ainda não se percebe muito bem como é que vai ser.

 

Nem se poderá facilmente adivinhar. Recordo-me, Princesa de mim, dos meus 25 meses de Guiné, em que diariamente tinha de lidar com onze diferentes línguas nativas que, evidentemente, eu não entendia. Mas falava longamente com os intérpretes, procurava sobretudo entender como se formavam as expressões de diversos modos de pensar. Qualquer língua, ou linguagem, é basicamente uma forma de expressão, sendo ainda verdade, por outro lado, que quando se ensina ou transmite uma língua também se está traduzindo um certo modo de pensar. O crioulo (cabo-verdiano e guineense) era igualmente um cadinho de misturar línguas várias, entre as quais se reconhecia a portuguesa, curiosamente mais pelo vocabulário que emprestava, do que pela sintaxe que a sustentava. Dei comigo a compor, só para mim, uma espécie de gramática do crioulo. Já lá vão 50 anos... Talvez a descubra um dia, numa das caixas de manuscritos que nesta casa dormem e ainda não acordei. Numa antiga entrevista ao Jornal de Letras, intitulada Um Escritor Abensonhado, o moçambicano Mia Couto diz bem o que, alhures e por diferente experiência, eu aprendera na Guiné:

 

   Os moçambicanos não são apenas consumidores, mas também produtores ou coprodutores da língua e, nesse aspeto, fazem-no com muita liberdade e de modo que a cultura que lhes é própria faça estalar o edifício do português-padrão e dessa fratura haja a emergência de termos novos, de construções novas. E essas fraturas deixam ver outra sensibilidade, outra cultura, outra maneira de olhar o mundo.

 

Pessoalmente, sou grande leitor de escritores africanos lusófonos, designadamente Agualusa, Mia Couto e Ondjaki. E recorro também frequentemente aos seis gordos volumes do dicionário Houassis, um vade mecum da minha lusofilia. E sinto-me muito mais feliz no ambiente de um universo linguístico e literário em expansão, do que no colete dos purismos castiços ou, pior ainda, na pretensiosa disciplina de um pretenso acordo ortográfico. Sem que tal impeça, ou sequer condicione o meu estilo de escrita, na expressão que aprendi, acarinhei e amo. E serei sempre mais contente pelo encontro de Houassis alargados do que pela mesquinhez de acordos ortográficos.

 

     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 25 a 31 de julho de 2016.

Eduardo Lourenço, entrevistado pela Rádio Renascença sobre a vitória de Portugal no Campeonato Europeu, refletiu sobre um tema que bem conhece – o das fronteiras da identidade…


ÂNIMO PARA PORTUGUESES
«Os portugueses nem precisam desse contributo. Os portugueses são tão portuguesinhos, somos tão patriotas desde nascença até hoje que não precisamos deste tipo de suprimento de alma de uma vitória de futebol Mas, enfim, consola, sobretudo num contexto europeu como é o de hoje. A Europa está numa grande carência de sentido para ela própria. Discute a sua própria identidade. Algo incrível. Nós, sim, podemos fazê-lo». Eduardo Lourenço comentava a vitória portuguesa no Europeu de futebol, considerando-a como cura de um certo complexo de inferioridade. Esta vitória poderia, assim, contribuir para nos reconciliar com alguns fantasmas do passado coletivo, mas o ensaísta põe dúvidas sobre se faz sentido ainda alimentar essas sombras funestas. Afinal, os portugueses já não são atores secundários. E esta vitória foi um facto interessante, muito pouco mais. E se há um elemento curioso a salientar é que Fernando Santos demonstrou por a mais b que o improviso não é, não pode ser, característica dos sucessos portugueses. Somos invariavelmente melhores quando temos desafios muito exigentes e por isso alcançamos resultados positivos, o que decorre de muito trabalho, planeamento, organização e de muita vontade. Foi assim que agora aconteceu, Nada foi obra do acaso ou circunstância fortuita. Tudo resultou de uma preparação muito cuidada e cautelosa. Afinal, a equipa não se apresentava (com as exceções conhecidas) recheada de figuras excecionais. E, no entanto, pôde superar-se e contrariar todos os maus prognósticos e vaticínios. Não era «bluff» dizer que tínhamos limitações. Mas que é a inteligência senão a capacidade de resolver problemas, mesmo contra todos os contratempos e vicissitudes? O certo é que a equipa tinha respostas e argumentos fortes para se defender… E pô-los em prática e a render.

 

NADA DE EXTRAORDINÁRIO
O hábito de jogar bonito e de ter vitórias morais, deu lugar ao compromisso cumprido de chegar aos objetivos propostos, mesmo que tal exigisse sangue, suor e lágrimas. Eduardo Lourenço tem-nos habituado a encarar o tema da identidade como definição do que afirma e do que distingue, recusando a tentação do fechamento e da singularidade absoluta com todos os seus complexos de superioridade e inferioridade. Sobre este caso, de um confronto entre portugueses e franceses, Eduardo sente-se especialmente à vontade: «Enfim, os meus filhos são franceses, a minha mulher era francesa, de maneira que poderia estar um pouco dividido, mas não estou». Afinal, a identidade de uma cultura que é um cadinho de múltiplas influências, que se abriu para «dar novos mundos ao mundo», que é múltipla, complexa e aberta e que está repartida por toda a parte, permite compreender que o universal está representado no particular. Nesse sentido, pode compreender-se a proximidade, o pequeno orgulho dos grandes momentos, mas há que entender o que nos une e separa, quem somos e o que o que não podemos esquecer nos outros. Conscientes de quem somos e sem ter de provar o que quer que seja a alguém, sabemos que há tempos para nos regozijarmos e tempos para aceitarmos o facto de não termos conseguido. Não somos nem melhores nem piores, somos nós mesmos – com qualidades e defeitos, mais ou menos ciosos de nós… Ao visitarmos a exposição sobre a obra de José Escada na Fundação Calouste Gulbenkian, percebemos diversas coisas importantes sobre o amor que o pintor tinha a Portugal. Mais do que enaltecer o sublime, o que o artista deseja é manifestar a sua ligação a algo que único e irrepetível – o povo, as cores, as coisas, a «joie de vivre», os pequenos elementos de um autêntico exercício de artesanato e de paciência. Muitas vezes quase sentimos que temos glosas sobre um mote de Amadeo de Souza Cardoso com as inconfundíveis cores do seu Entre Douro e Minho. 

 

…SOLUÇA O MAR
E, como diria, a sua alma gémea de poesia e arte, Sophia de Mello Breyner: «Me dói a lua me soluça o mar / E o exílio se inscreve em pleno tempo» (Livro Sexto, 1962). Como Unamuno bem pressentiu e Eduardo Lourenço interpretou, com rigor e perfeição, somos feitos de lirismo e de história trágico-marítima. Acaba, aliás, de sair na Fundação Gulbenkian o terceiro volume da Obra Completa de Eduardo Lourenço - «Tempo e Poesia», coordenado por Carlos Mendes de Sousa, onde podemos tomar contacto um percurso coerente e multifacetado que é muito mais do que um tratado, mas sim um repositório interpretativo único. Podemos invocar Cesário, Nobre, Pascoaes, Sá-Carneiro, Almada, Régio, Torga, Casais Monteiro, Nemésio, Mário Dionísio, Sena, Sophia, Eugénio até Manuel Alegre, Herberto, Ruy Belo, António Osório, Fiama, Vasco Graça Moura… Mais tarde ou mais cedo, encontraremos desde a poesia trovadoresca à rica poesia contemporânea, passando por Camões, Sá de Miranda, Bocage, Garrett, Herculano, Antero de Quental, João de Deus, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e todos mais… Se bem virmos as coisas, Portugal como palavra é uma eterna convergência da lembrança e do desejo, do amor e da provação, e a língua portuguesa, espalhada pelo mundo, plena de diferenças e desencontros, foi-se construindo nessa pluralidade magnífica e nessa complementaridade inesgotável… A língua portuguesa, temperada com mais açúcar ou mais especiarias, é o traço de união e de diferenciação. E se dúvidas houvesse João Guimarães Rosa leva-nos em busca da terceira margem, Baltazar Lopes da Silva introduz-nos nas diferenças e nos segredos dos crioulos, Mia Couto reinventa-nos em permanência, Pepetela e Agualusa põem-nos em contacto com as grandes superfícies de terra e mar, Raduan Nassar interroga e confronta as raízes em «Lavoura Arcaica»… Mas o ensaísta de «Labirinto da Saudade» é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. Portugal é uma série de milagres. Herculano chamou-lhe vontade. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural, sempre. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até a indiferença e a acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. Contudo, a Europa fechada definha. Importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um pequeno e eficaz núcleo de interesses e valores comuns.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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