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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


UMA QUESTÃO DE TÁXIS…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa:


Estou desde domingo em Lisboa, vim passar a semana com o Alberto e a tua irmã. Cheguei cansado da viagem, não parei naqueles quinze dias de Japão, e a paragem em Paris não chegou para me desvanecer o "jet-lag". Imagina que esta noite tive um sonho estranho. Estava em Tokyo, apanhei um táxi na Aoyama-dori, ia jantar com os Sakai, ali para as bandas de Jiyugaoka. Conheço o percurso, pois a rua, como tantas em Tokyo, não tem nome, mas sei desembrulhar algum japonês para explicar ao taxista por onde seguir: "masugu", "hidari ni magaté kudasai", "ano... aré migi desu!". Mas, repentinamente, ao chegarmos a Omoté-Sandô, já não estávamos na Aoyama-dori: íamos pela avenida de Roma fora, já perto da praça de Londres, em Lisboa! O bom do motorista entra em pânico, vendo todos os carros a circular pela direita e só ele pela esquerda. E eu mergulho em angústia quando, por detrás da igreja de S. João de Deus, o táxi pára num beco que termina numa capoeira. O sonho acaba comigo, interdito, imóvel, a ver o motorista pegar num saco de grãos de milho e ir lançá-los às galinhas, cacarejando como elas. Ocorreu-me Pascal: "Je ne sais qui m’a mis au monde, ni ce que c’est que le monde, ni que moi-même; je suis dans une ignorance terrible de toutes choses; je ne sais ce que c´est que mon corps, que mes sens, que mon âme et que cette partie même de moi qui pense ce que je dis, qui fait réflexion sur tout et sur elle-même, et ne se connaît non plus que tout le reste"...  Jean Guitton cita este texto para afirmar, numa nota biográfica introdutória a uma edição das "Pensées" de Pascal: "Toda a vida dele é uma tentativa desesperada, até à morte, para tentar compreender". O facto de sofrer de um mal congénito - que recorrentemente lhe trazia tremuras e perturbações intestinais e, quando criança, fobias histéricas (à água ou à aproximação dos pais um do outro) tê-lo-á empurrado para esse desespero de querer tudo entender... É curioso observar como Pascal, desde pequeno, se interessou pela geometria e pela aritmética, pela física e pela matemática. Deixou-nos ensaios sobre os corpos cónicos, o triângulo aritmético, o vácuo, o equilíbrio dos licores ou a gravidade da massa do ar. Foi considerado, por Leibniz, "um dos melhores espíritos do século". A investigação científica, que nunca abandonou, não o desviou, todavia, do recurso ao que estimava serem, pelo percurso da sua conversão religiosa, outros meios de acesso ao conhecimento. 


Daí a sua crítica de Descartes: "Não posso perdoar a Descartes: ele bem quisera, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus; mas não conseguiu impedir-se de O levar a dar um piparote para pôr o mundo em movimento; desde então, já não sabe o que fazer de Deus...  A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição; mas a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores". Pessoalmente, penso que Pascal esteve mais perto dos jansenistas, afetivamente - até porque a sua irmã Jacqueline, que lhe era tão querida, professara em Port-Royal - do que, teologicamente, do jansenismo. Mas é inegável que "pensassente", na tradição de Sto. Agostinho, de modo próximo do flamengo Jansenius, bispo de Ypres, no seu "Augustinus". A conversão do homem, escravizado pelo prazer, corrompido pela concupiscência, só é possível pela graça agente de Deus que, sem destruir o livre arbítrio humano, não o submete necessariamente. Conhecida por "tese da graça eficaz", opõe-se à "tese da graça suficiente", defendida, na esteira de Molina, pelos jesuítas coevos de Pascal, que afirma a ineficácia da graça sem participação do livre arbítrio. Deixemos a teólogos escolásticos as argumentações de diferenças e oposições. Creio que, em Pascal, a religião é sobretudo um exercício de abertura mística à operação da Graça. Pois que, "se não nos devemos admirar por ver pessoas simples acreditarem sem raciocinarem", também é verdade que "a maior das verdades cristãs é o amor da verdade". São aparentemente muitos os paradoxos em Pascal. Mas são os nossos, os da nossa condição. Os "Pensamentos" são uma obra incompleta, até desligada: Pascal ia-os anotando em folhas de papel, riscava depois uns, corrigia outros...ou, ainda, cortava as folhas em tiras, para separar ideias, e perfurava-as depois, de modo a poder arquivá-las diferentemente ligadas por um cordel. Numa dessas seleções, reunida sob o título "divertimento", escreve: "A nossa natureza está no movimento; o inteiro repouso é a morte... Condição do homem: inconstância, aborrecimento, inquietação... Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto fosse menos divertido, como os santos e Deus... A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e todavia é a maior das nossas misérias. Porque é o que nos impede principalmente de pensar em nós, e o que insensivelmente nos perde. Sem isso estaríamos no aborrecimento, e esse aborrecimento empurrar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento agrada-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.” Este homem, filho da nobreza de toga - não histórica, mas de ciência e cargos remunerados - fez amigos em meios muito diversos, desde a alta nobreza aos intelectuais, dos boémios aos religiosos confessos. Morreu aos trinta e nove anos, deixando obra: para além dos ensaios científicos e dos "Pensamentos", muito disto só postumamente publicado, escreveu em colaboração, ou redigiu a maior parte dos textos que compõem os "Écrits des Curés de Paris" e a "Lettre d’un avocat au Parlement à un de ses amis", que, aliás, dão continuidade às suas "Provinciales", nas polémicas com os jesuítas. As cartas ao provincial dos jesuítas,"Les Provinciales", são assinadas por Louis de Montalgue que, alhures, o próprio Pascal trata como outra pessoa, tal como fará com Amos Detonville que, relativamente aos seus trabalhos matemáticos para o "concours de la roulette, que ele abre, assinará a " Lettre à M. de Carcavy"; o mesmo fará com Salomon de Tultie, autor da "Apologie de la réligion chrétienne". Nenhum deles é simplesmente um pseudónimo: Pascal imagina-os e cria-os como personalidades distintas dele mesmo. São heterónimos, são outras pessoas. Recentemente, na sequência daquela antologia que o Adolfo Casais Monteiro publicou no Brasil - e de que te oferecerei um exemplar, que me fora cedido pelo Alberto - fala-se muito, aqui em Portugal, do poeta Fernando Pessoa e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis Talvez venha a ser uma das maiores revelações literárias do nosso século...Tenho-me interessado por ele, fascina-me esse tal desespero de uma procura de si. Como em Pascal. Por mim, vou-me hoje contentando com a luz acolhedora de Lisboa, que aqui no jardim ilumina as minhas leituras e a procura de ti, que esta carta é. Afinal, sempre procurei, em mim e na minha relação a ti, um caminho para que te sentisses bem... E o amor talvez seja esse querer bem, um caminho com curvas e alguns enganos, mas que segue procurando. Será isso a fidelidade. Esta, tão funda, que até ti me trouxe, num táxi que apanhei em Tokyo, se perdeu em Lisboa, e acabou por embarcar Pascal e Fernando Pessoa".


Desde que li e traduzi esta carta de Camilo Maria, só ando de táxi! 


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 06.09.13 neste blogue.

PORTUGUESES NO JAPÃO

  


Luís Filipe Thomaz apresentou no Museu de Arte Antiga o seu livro Nanban-Jin – Os Portugueses no Japão. A curiosidade está no olhar de muitos. Simbolicamente junto da mesa onde se vai falar do livro, estão reproduzidos dois biombos Nanban do Museu onde se encontram imagens cheias de humor e realismo, nas quais os portugueses, acabados de chegar ao país do sol nascente, são representados de um modo caricatural, com os narizes longos, ora em exercícios rocambolescos, ora em equilíbrios impossíveis, algumas pessoas de cor negra, indumentárias largas e circunspectas, óculos para o sol, um burro, um elefante… Os recém-chegados causam espanto nas atitudes, nos costumes e nas artes de que são capazes. E Luís Filipe Thomaz diz-nos: “os Portugueses de Quinhentos nem eram, como por vezes se tem dito, candidamente admirativos de tudo quanto achavam, por esse mundão de Cristo, como se fossem desprovidos de qualquer escala de valores; nem, como em contrapartida se tem insinuado, etnocêntricos, fechados às demais civilizações e fanaticamente alérgicos, fechados a quanto não fosse cristão. Do Brasil, ainda neolítico, à China de civilização requintada e milenar, passando pela África bárbara e pela Índia mística, foram, aliás, tantos e tão diversos os povos com que lidaram que dificilmente poderiam deles colher uma impressão uniforme. De uma maneira geral, admiraram nas outras gentes os traços que mais os surpreenderam e as qualidades que mais em sintonia lhes pareceram com os seus próprios ideais e valores: no Brasil e na África a simplicidade ingénua dos nativos, na Pérsia a formosura das mulheres na Ásia do Sul e Sueste a piedade dos ascetas búdicos, na China a perfeição da máquina administrativa. Foram sem dúvida os japões o povo que globalmente considerado, lhes mereceu maior admiração”. E, em contrapartida, temos de lembrar, como o faz o prefaciador da obra João Paulo Oliveira e Costa, “no Japão, os portugueses são famosos e queridos porque os seus antepassados foram responsáveis pela descoberta do mundo pelos nipónicos”. E num mundo de pequenas singularidades luso-nipónicas – a introdução da espingarda pelos portugueses resolveu uma longa guerra civil e possibilitou a centralização política, enquanto foram os portugueses que introduziram a religião cristã no país, sob o impulso de S. Francisco Xavier, merecendo destaque a experiência dos cristãos escondidos, exemplo raro de permanência na fé.


O livro inclui duas partes, uma primeira, de Sagres a Tanegaxima, e uma segunda sobre os portugueses no Japão. Na primeira, temos a lenta aproximação de dois extremos, começando pela pré-história da expansão lusitana, juntando os ingredientes da Reconquista e da Cruzada, incluindo os primeiros passos da aventura expansionista, a política ultramarina de pendor mercantilista de D. João II, a dobragem do Cabo, o imperialismo messiânico manuelino, a criação do Estado Português da Índia, a queda de Albuquerque, o governo frouxo de Soares de Albergaria abriram campo  à mercancia, o golpe de 1518 e a nomeação de Diogo Lopes Sequeira ainda deram esperanças ao imperialismo, mas a consideração da China determinou o canto do cisne do imperialismo manuelino, antecipando as mudanças do reinado de D. João III. Estamos, assim, perante um processo complexo e longuíssimo da história da Humanidade, que na expressão do autor não deve ser confundida com a história do colonialismo. De facto, desde o século XVI, o império evoluiu de acordo com os estímulos locais e regionais mais do que por via de um planeamento central. Luís Filipe Tomaz assume um modelo interpretativo moderno de cariz globalizante, assente na complexidade, livre das amarras de quem não se dá conta de que o mundo não se explica apenas por uma visão eurocêntrica baseada na lógica colonialista dos descobrimentos. Um apaixonante modo de compreender a História sem preconceito.   


GOM

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

WENCESLAU DE MORAES.jpg

 

W.   WENCESLAU DE MORAES

 

E encontrámos Wenceslau com Camilo Martins de Oliveira e José Tolentino Mendonça… Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. No bairro de Gion, conhecemos as narrativas e descrições romanescas, e aí podemos ver o desenho de uma antiga cidade nipónica. Há restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. No Outono, há alegria e jovialidade no ar, mesmo depois de cair a noite. Não há humidade e a temperatura ronda os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, invocamos o Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. Quando no dia seguinte passamos por Gion, de manhã cedo, a quietude impera, num ambiente doce. O rio Kamo é referido com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espetacular. Tudo se passa, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial é o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza.

 

O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Seguimos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa.

 

As obras de Wenceslau de Moraes são de extrema importância no plano nível cultural com reflexo do pensamento português no mundo e sobre o mundo. Encontra-se em cada palavra sua o cruzamento de ideias e de História, de imaginário e realidade. Torna-se difícil compreender o que Moraes encontrou numa civilização tão diferente da sua, que fez mudar os seus padrões culturais, sempre com os sentimentos do exílio e da saudade presentes na sua alma e no seu coração, sentimentos tão particulares do seu povo.  Um português que procurou manter um contacto diplomático quer com os seus conterrâneos, quer com os japoneses, mas terminou os seus dias sozinho em Tokushima. Wenceslau de Moraes foi autor de um legado sobre assuntos ligados ao Oriente, em especial ao Japão destacando-se as obras: Traços do Extremo Oriente; Cartas do Japão; O Culto do Chá; A Vida Japonesa; Relance da História do Japão; Serões no Japão e Relance da Alma Japonesa.

 

Em Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. O culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Aqui os nossos queridos fantasmas estão bem vivos. Convivem connosco. Explicam tudo!

 

 

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UM MUNDO FLUTUANTE

  


A relação dos portugueses com o Japão é singular e corresponde, apesar das vicissitudes, a um percurso que o tempo fortaleceu. Os primeiros portugueses chegaram ao país do Sol Nascente entre 1542 e 1543. Segundo a tradição, teria sido um junco chinês com três portugueses, apanhado por uma tempestade, que teria sido desviado para a ilha de Tanegashima. E a partir de então iniciou-se uma relação com repercussões culturais únicas. Não foi, no entanto, fácil o intercâmbio histórico e religioso, muitas vezes com repercussões trágicas. A evolução permitiu, porém, o aprofundamento dos fatores de entendimento.


A exposição «Mundo Flutuante: estampas japonesas “ukiyo-e”», que se encontra no Museu Gulbenkian, é uma agradável surpresa. Centra-se no conceito de ukiyo, que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. Sobre esse tema fascinante, Calouste Gulbenkian reuniu um notável conjunto de arte produzida entre os séculos XVII e XIX, maioritariamente estampas do período Edo (1603-1868) e um conjunto de objetos de laca., além de livros, incluindo as preciosas “surimono” que permitem usufruirmos das mais valiosas virtualidades da cultura nipónica. É uma faceta menos conhecida da personalidade de Gulbenkian que permite compreender o carácter multifacetado do extraordinário colecionador. Em paralelo, e num domínio diferente, o Centro de Arte Moderna celebra os seus quarenta anos de vida com uma evocação da contemporaneidade japonesa, permitindo-nos complementar a lembrança histórica e a vitalidade atual. Aproveitando a obra de renovação do CAM pelo arquiteto japonês Kengo Kuma esta aproximação cultural revela-se preciosa. Na tradição antiga e na modernidade, a natureza é, para os japoneses uma força vital. E sempre me tocou o grande interesse dos japoneses por Portugal, sabendo eles muito mais sobre nós do que nós sabemos sobre o Japão, apesar do contacto e da partilha de experiências.


Agora, temos o privilégio de dispor de diferentes visões da natureza e da paisagem, a projeção da perspetiva linear ocidental do Renascimento para o Oriente, a beleza e a sofisticação das cortesãs (“bijin”), a importância das narrativas literárias tradicionais, mas ainda os efeitos das inundações de 1967 sobre as estampas da coleção e a mestria dos restauros realizados. 


Perante as belas estampas japonesas da coleção de Calouste Gulbenkian, recordo a visita que fiz a Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen. João Bénard da Costa no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) fala-nos da inesquecível experiência que teve nesse jardim de delícias. No filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes (2007), João desenvolve num diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira a ideia de que “só se vê com o coração” … Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto do mesmo podem ser vistas todas elas. Há sempre uma que desaparece encoberta por outras. E depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. O monge de Ryoan-ji perguntou ao João, no fim da estada, se já compreendia o que vira. «Começo a compreender!» - disse o interlocutor de um modo cauteloso. Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E mercê do alerta do monge, percebe-se que só com o coração se pode ver, compreendendo o mundo, a memória e o tempo. “No Oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. A cultura traz-nos mil surpresas. E dizia João que «esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».


GOM

ANTOLOGIA

  


LITERATURA E MÚSICA
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro.  Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.


Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, /  vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.


Adeus Princesa!"


A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue

 

ANTOLOGIA

  


COMO JAPÃO E EUROPA SE ENTREVÊEM…
por Camilo Martins de Oliveira 


Minha saudosa Princesa de mim:


Recebi esta tarde, de um grupo de senhoras japonesas cujo clube cultural me convidara a falar sobre "Olhares trocados: como Japão e Europa se entrevêem na arte", um "kakemono" com a caligrafia de "ichi go ichi é", máxima que exprime o espírito da cerimónia do chá e posso analiticamente traduzir por: "um encontro é um tesouro que não se repete"... Sensibilizou-me a intenção e o gesto; comove-me o pensamento. Das vezes que, namorados, nos encontrámos e demos a mão, e os olhos de cada um foram a luz dos olhos do outro, não saberei distinguir uma só, nem posso dizer que foram todas iguais, ou alguma diferente. Pela simples razão de que todas foram e são únicas. A contemplação do amor é descobrir sempre o mesmo como pela primeira vez, com a mesma novidade da emoção. Assim também é o olhar do japonês para a natureza ou o objeto ou obra de arte, mesmo artesanal. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que "se traz ao de cima", que se manifesta. E esta atitude vala tanto para o naturalista que reproduz, como para o impressionista, o cubista ou o abstracionista: em todas essas escolas ou correntes se afirma uma visão própria, ou se pretende transmitir realidades tal como nos apoderámos delas. Para o japonês, o que se procura, o que conta e determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. O olhar, ou o escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante - torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar da alma que traz o objeto de arte - que é visível mas cheio de invisível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos - e a sua acumulação de objetos exibicionistas de abundância material - com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nas salas japonesas, a prova de bom gosto não amontoa. Afasta e singulariza cada objeto de estimação - um "kakemono" pendurado (seja uma caligrafia, um "sumi é"), uma pintura, ou um arranjo de flores, ou uma peça de cerâmica ou de metal - de modo a poder ser contemplado e convidar ao diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples, está patente na arquitetura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, tenham estes a grandeza de Katsura ou sejam mais pequenos, como o Gingakuji e o Kinkakuji. E apraz-me pensar que tal contenção material terá moderado a arrogância e os excessos decorativos de construções afirmativas do poder político e militar e suas linhagens, como nesses magníficos monumentos do "barroco" Tokugawa que são o Nijo jo, aqui em Kyoto,e os túmulos dos "shogun" dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Lembrei-me de ti, por interposta referência, durante a minha charla desta tarde. Sabes bem que não preciso de cábulas para que me sorrias à janela do coração.. Mas ocorreu-me, vinda de fora dos tópicos que tinha alinhado, a memória de Mondrian (o Piet Mondrian, nosso conterrâneo, compatriota de teus pais pelo passaporte, já que somos família de muitas fronteiras). Recordas-te da exposição que, juntos, visitámos em Paris, e de eu te ter dito que aqueles Mondrian me evocavam a geometria das plantas da arquitetura japonesa, ou ainda o desenho de portas e janelas - e dos quebra-luz das lanternas portáteis - as madeiras que dividem o espaço e seguram a translucidez do papel de arroz? Na altura em que falava, "vi" primeiro a divisão do interior da minha caixa de "ô bentô", donde fui petiscando o almoço de ontem, no "shinkansen" que me trouxe de Tokyo, onde tinha aterrado. Os compartimentos dessa "merendeira" são lineares e desiguais, contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes, pela substância e pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida, vamos comendo, daqui e dali, conforme "conversamos" com eles. Na sua apresentação, há todavia a proposta de oferta, em quantidades que são, para nós, amostras, de produtos conformes à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo nos dá. Em toda a sua "sofisticação" (diríamos nós), o "bentô" é comida popular, quase sempre almoço do funcionário, do empregado, do trabalhador comum. Mas tem, para lá da saúde dietética e da economia, uma dimensão espiritual, na medida do seu usufruto estético e da sua referência à mãe-natureza (nós diríamos Criação...). Mondrian, que tanto se preocupou com a relação da arte à vida, perceberia o que quero dizer. O mesmíssimo princípio estético se aplica ao "kaiseki ryiori" com que fui gratificado ao jantar num "ryotei", restaurante fino e caríssimo. Aqui, não só a variedade dos catorze serviços obedece também à sazonabilidade dos produtos, mas, nas mesinhas baixas dispostas à nossa frente, as louças e lacas em que se nos oferecem as iguarias apresentam formas e desenhos alusivos à estação do ano... É já mais copiosa a refeição, mas "quem pode" não é obrigado a comer tudo... Vai-se bebendo "saké", acompanhando os pratos de "sashimi", "tempura" e os outros, cozidos, avinagrados ou mais adocicados, grelhados, etc... Mas, no fim da refeição, com a "miso shiru" (sopa de soja fermentada) e os "pickles", vem a malga de arroz. Esta, em princípio é para ser totalmente ingerida. Todos a comem, como quem cumpre. Tal como na nossa tradição cristã, não se deita fora o pão dos pobres." Quando, décadas mais tarde, na senda de Camilo Maria, me calhou andar pelo Japão, encontrei muito do mesmo. E também a coexistência de tudo isso com um Japão eletrónico e "pop". E pensei muito nessa coexistência, que não se anuncia só nas caixas do "bentô". Está no cerne de uma visão do mundo, com a aceitação de si e do seu contraditório, ou simplesmente da diferença, como se explica até pela convivência do shintoísmo com o budismo desde o século VII. Talvez também se possa dizer que, para o japonês, um momento de distração desse princípio de bondade universal, ou seja, a afirmação "erga omnes" da diferença pretendida, pode conduzir à barbárie. Sentimos, penso eu, de quando em vez, ou dessa vez quando estamos às avessas com a circunstância, um desejo fúnebre de embirrar com o mundo. Daí, mal nenhum ao mundo virá, pois tão pouco podemos que nem para aguentar a birra - ou o burro amarrado -  temos força... A menos que a gente se dê conta de que a birra, afinal, nossa não é, mas cegueira, sim, da circunstância. Como quando, esta noite, me assusto ao imaginar, depois de tanto comentário mais televisivo do que silenciosamente sábio, que estamos todos a ser arrastados para um barranco de cegos...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 31.05.13 neste blogue

ANTOLOGIA

  


PROCURA DE HARMONIA…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Onde li eu, sobre a música de Haydn, que nela nascia a harmonia, não de receita, mas como procura? Ou fui eu que o disse ou alguém o terá dito por mim... Ocorre-me agora essa reflexão, quando silenciosamente contemplo este jardim japonês. Voltei a Kyoto, a Primavera vai-se alongando, as pétalas de "sakura" vão-se espreguiçando pelo ar, como se dissessem "é tarde!", efémeras traviatas dançando ao sopro musical de brisas que as afagam e logo apagam, varrendo o chão em que adormecem. Este ano, a Primavera das cores teima e atrasa a vinda das chuvas que anunciam o Verão verde e húmido, respirando a terra... Hei de ir a Horiyuji, ao templo da cor escura do tempo, feito de madeiras milenárias, firmado no cinzento negro das lajes, levantado entre o verde poderoso da natureza que transpira para o céu a humildade dos homens... Pois é de humildade feita a harmonia das artes nipónicas. Da tigela de barro do artesão ao gesto caligráfico do erudito, procura-se, humildemente, essa respiração por dentro da natureza, em que o tempo de cada gesto seja, na alma, o tempo eterno do mundo. Circular, incessantemente retornando, ao ritmo das estações que obedecem aos astros, e levam a vida na morte e trazem a morte na vida. O que, para nós, é um destino escatologicamente realizável é, para eles, a repetição tentativa da harmonia inicial das coisas. A harmonia que se procura não é ordem, é a da coexistência necessária (diríamos nós: de tudo em todos) das forças díspares, e até antagónicas, que sustentam e constroem, de um caos que desconhecemos, um universo que ainda não vemos em plenitude. Reconheço que, ao dizer-te isso, me afasto da minha meditação japonesa e tenho a alma cheia da visão de uma missa sobre o mundo, da escatologia cosmo-genética de Teilhard de Chardin. Mas volto os olhos para este "meu" jardim japonês: é do estilo "Tsukiyama", uma espécie de microcosmo cultivado e arranjado, à volta e sobre um manto de água, como se fosse um mar semeado de ilhas, correntes e bosques. Poderia ser um "Karensansui", calvo e seco, em que a água se representa por pedrinhas ou areias penteadas em ondas, como nos jardins "Zen"... Assim também, na elaborada cerimónia do chá, a razão da natureza ensina a humildade. Não só pela porta de entrada na "chashitsu" (a sala da cerimónia do chá), chamada "nijiriguchi", com apenas 67 cm de altura e 60 de largura, de forma a impedir o ingresso de armas, armaduras e vestidos de espavento... nem porque se deixa o calçado lá fora. Mas porque ali se procura o ideal estético do "wabé", como despojamento "zen", simples e calmo. Ora este também se traduzirá na beleza, limpa de adornos, dos utensílios que servem uma cerimónia litúrgica que aliás, dizem, o grande mestre Sen no Rikyu, foi buscar aos ritos dos jesuítas portugueses no século XVI. A "chawan" (tijela ou chávena,sem asas nem pegas) é objeto de apreço, antes de muitas se term tornado objecto de preço. Ao rodá-la e mirá-la nas nossas mãos, antes e depois de a levar à boca, contemplamos a natureza que ela encerra nos quatro elementos que a conjugaram (ar, fogo, terra e água) e aqui nos serve o chá em sinal de igualdade e partilha entre os homens. Na "chashitsu", durante o "sadô" ou "cha no yu" (a cerimónia do chá) somos todos iguais e estamos em harmonia com a natureza. Há ainda, nessa comunhão natural (quiçá telúrica até, em país de vulcões, terramotos e outras erosões)  - que é um esteio tão vivo na tradição da cultura japonesa, mesmo em tempos modernos de motores e eletrónica  -  outros aspetos do pensamento e sensibilidade das gentes que se revelam pela visão estética: a economia de desenho e materiais na construção de utensílios, móveis e edifícios, por exemplo: o "design" japonês já no tempo medievo preconizava, com elegância fina e forte intuição abstrativa, o que, entre nós, seria, já no século XX "art-déco" e abstracionismo. Tal como, na viragem do século XIX para o nosso, os desenhos florais japoneses, nas artes decorativas, influenciaram as nossas "artes novas", e as gravuras japonesas os nossos cartazes. Mas o que, para o europeu, seria, quase sempre, um artifício, era, para o japonês, a estética enquanto sensação, sentido, percebimento, comunhão da natureza. Estética não é só, acho eu, a conceção da harmonia de um objeto ou superfície material, ou de um seguimento de sons... de acordo com leis que concebemos com a intenção de organizar ou reformar a natureza que se reproduz ou copia. A emoção estética - e afinal será isso que a arte procura - é, antes de tudo mais, o ato de contemplação, do artista, do artesão que, pela obra que a materializa, se comunica. Esteta, no seu grego de origem, é o que sente, o que percebe. Será, pois, o que está do lado inicial - que ele não começou - ou do lado final - que não se esgota aí  -  duma comunicação. Que é partilha. O artista que se exprime, no fundo se si, quer partilhar. Um percurso pela história da arte europeia, ajudar-nos-ia a entender o processo genético daquilo a que atualmente chamamos a liberdade de expressão artística. Receio que estejamos a enveredar por um processo autista, como se os "círculos de artistas" entrassem num remoinho. "Mutatis mutandis", lembra-me a decadência escolástica da nossa filosofia medieval ou o especiosismo maneirista no tratamento de tantos temas pela oficialidade católica... A "fuga para a frente" é, muitas vezes, o enrodilhar-se sobre si. Essas "descobertas", em sucessivas efemérides, de compositores e artistas plásticos contemporâneos, já não têm os pés no chão da natureza e dos homens, tal como certos pietismos e pretensões doutrinais da Igreja já não têm assento nas almas. Se eu chegasse ao fim deste século XX, talvez ainda visse o esplendor do barroco e da renascença nas salas de concertos, como sacramento da natureza num mundo de ruído automóvel e industrial, de poluição eletrónica, sonora e visual. Pois é sempre paradoxal a condição humana: como poderia eu discernir por aí o triunfo da vulgaridade na cultura das massas, se por aí também não encontrasse os contempladores de deuses?" Há, entre muitas outras cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... (isto lembra-me o título de um filme de que o João Bénard da Costa gostava muito: "Madame de..." não era?) uma, sobretudo, por onde deambula, através do Japão, um prazer estético incontido...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 24.05.13 neste blogue

ANTOLOGIA

  


NO IMPERIAL EM TOKYO…
por Camilo Martins de Oliveira


"Estou em Tokyo, apenas de passagem para o aeroporto onde embarcarei a caminho de Londres. Por Anchorage, no Alaska, pela rota polar que rodeia o interdito espaço aéreo soviético. De Londres até Paris e ao Périgord, logo verei. Por enquanto, interrompo com pena esta estadia no Japão, pelas razões de família que já conhecerás. E esta carta já levará selo francês: ir-te-ei escrevendo... Alojo-me aqui no Imperial, não tanto pela proximidade do comércio e animação de Ginza, nem do palácio imperial e daquela parada exterior em que Hirohito passava tropas em revista. Mas sensível à memória do antigo Imperial Hotel que o Frank Lloyd Wright desenhou e aqui se construiu... Ainda lhe visitei os vestígios - que respiram ares do seu génio - na Meijimura, lá para as bandas de Nagoya. Outro tempo, outro ambiente, uma lembrança... e aqueles tijolos compactos, como os da estação central de Tokyo, que tanto me dizem da nossa antiga Flandres, a que hoje chamam Bélgica (como nos tempos dos nossos Duques de Borgonha) e Países Baixos... O Imperial do "Franck" (à americana) tinha a solidez do barro e a sobriedade clara dos espaços da nossa memória. Sentirias, minha Princesa de mim, o que (abstratamente?) penso. Fui jantar "Chez Pierre", ali mesmo defronte do cemitério de Aoyama. Gosto do lugar, da comida e do "chef": Pierre Prigent, bretão e padeiro de formação. Veio para o Japão em 1970, para o pavilhão francês na Exposição Universal de Osaka, e por cá ficou. Creio que se aperfeiçoou em pastelaria com o "grande" André Lecomte e assim se famliarizou com os segredos culinários da gastronomia francesa. Tal como o seu mestre - e um colega, o André Pachon, este vindo de Carcassonne - casou-se com uma japonesa e lançou-se por conta própria no negócio de restauração francesa no Império do Sol Nascente. Diferenciando, todavia a sua proposta: procurou oferecer gastronomia de qualidade, mas caracteristicamente familiar, amiga. Nas minhas estadias em Tokyo, só ali me sinto bem, acompanhado, quando almoço ou janto sozinho. O Pierre "pertence" a uma família da Bretanha (o apelido é raro e torna-os pertinentes) com olimpíadas próprias: de quatro em quatro anos, reúnem-se, algures em França, muitos dos cinco mil portadores do apelido comum, para uma missa (em catedral histórica) e um arraial. É bonito e explica muita coisa. Inclusive esta de um jovem padeiro bretão que atravessa meio mundo, constitui família com uma japonesa, tem os filhos mestiços, bilingues e participantes em verdades antigas de ambos os lados, felizes e lindos, como só a comunhão dos seres humanos pode ser. No seu restaurante, que decorou com madeiras de móveis e portas de carvalho, herdadas de pais e avós da Bretanha - e de cerâmicas tão autenticamente castiças que falam ao universo - o Pierre está atento a tudo, sempre de bata branca, com os seus "discípulos" japoneses a esmerarem-se em cozinhados e no serviço à francesa, com a verdade enternecedora do brio japonês. Há universos assim, em que as fronteiras não são, nem nunca poderão ser, as de quaisquer preconceitos. Mas, se surgirem, serão apenas as da diferença entre o querer ou não querer bem-fazer... Perguntou-me hoje se, na mudança do toldo que lhe protege a varanda do restaurante, deveria mudar ou acrescentar algo ao banal "Chez Pierre". Disse-lhe que o único acrescento verdadeiro e plausível seria, já que estamos em frente de um cemitério com tão promissoras iguarias: "Aux Clés du Paradis..." Poucas vezes terei dito, na vida, coisa tão acertada. O cemitério de Aoyama é um parque frondoso, com alamedas longas de cerejeiras do Japão, das tais que genialmente florescem na Primavera, mas nunca dão fruto... (no caso de um cemitério, até geneticamente se compreenderá). O fruto delas é a flor. E é a alegria das centenas de festejantes das "sakura" (cerejeiras em flor), os "castiços" que ali, anualmente, estendem, sob as árvores, os seus tapetes, e dispõem e saboreiam petiscos sazonais e festivos,"saké" e cerveja. Tal celebração realiza-se pela flor da primavera, pela alegria da vida e por esse segredo que nos habita e se chama esperança. Não necessariamente num cemitério, o mais das vezes, até, noutros lugares. Mas aqui, neste local que é sacramento de repouso eterno, a esperança e a alegria da festa ganham, para o ocidental escatológico que sou, um sentido novo.
Vê tu bem, Princesa de mim, como os outros, por misterioso modo, nos ensinam, tantas vezes, as "nossas" verdades...". Conheci, quase duas décadas depois de Camilo Maria, o inolvidável Pierre Prigent e o seu "Chez". Mais de uma década depois da minha partida do Japão, ainda nos escrevemos todos os anos, e vou sabendo dos casamentos e vocações da prole Prigent nipo-francesa, da filha que prestou serviço na Índia com Teresa de Calcutá e depois se casou e vive católica na muçulmana Malásia, com mais" prigentinhos" que o avô vai acarinhando. Não os verei, mas vejo-os todos os dias. Parafraseando Pascal: o coração tem olhos que a vista desconhece.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 19.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA


EFEITO DE UM SAKÉ QUENTE…
por Camilo Martins de Oliveira


Camilo Maria esteve no Japão, em duas estadias relativamente longas, mais de dez anos antes de mim. Apanhou um Japão esforçado, a tentar redimir-se do que simultaneamente sentia como o erro e a culpa da guerra que, ao gosto napoleónico (?), as elites militares da era Showa tinham insistido em chamar "pan-asiática". E, mais ainda, um povo que, por educação e tradição, valorizava a comunhão com a sua natureza e os seus antepassados. E, por esse sentimento profundo de pertença e dívida (que é motivo de dádiva), conseguia encher a consciência de brio, isto é, da vontade de bem fazer - ou fazer bem - o que nos é confiado. Reside, neste fundo solidário da alma, a receita secreta, única, de tantos êxitos do Japão. E, no apagamento possível (?) dessa consciência do dever solidário (que é dádiva), na eventualidade de se trocar a comunhão com o nosso sentido de nós e dos outros (que é a responsabilidade), de se "substituir o valor pelo preço", talvez se venha a desenhar a perda dos frutos, pois não há frutos sem árvore. O Japão da era Meiji (1867-1912) é uma força nova no concerto das nações, sai de dois séculos e meio de relações cortadas com o mundo para um deslumbramento na emulação das potências ocidentais... E consegue, logo em 1905, ser a primeira potência asiática a vencer, em guerra, uma potência europeia (o Império Russo). "Moderniza-se", mas rasga a alma. Entre os que insistem na necessidade de ser tão "desenvolvidos" e fortes como os "maiores" (ocidentais) e proceder em tudo como eles (inclusive em pretensões colonizadoras de outros povos), e os que defendem a preservação da alma e do modo nipónico, está o drama de muitos intelectuais e populares que, intuindo a duração e a demora, procuram um equilíbrio naquele momento impossível. A "modernização" comanda a industrialização e urbanização de territórios e pessoas, o enquadramento social e ético tradicional vai perder-se...  Finalmente, goradas as expectativas "liberais" da era Taisho (1912-1923), chegará a hora fatídica em que forças reunidas num "complexo militaro-industrial" (que os EUA voltariam a reconhecer, no seu próprio caso, depois da tal guerra), poderão desencadear a barbárie que sabemos. Como Camilo Maria observou, numa das suas cartas à Princesa de..., é comovente e perturbante essa contradição (conflito?) da alma japonesa, entre o "giri" e o "ninjo"… A novela de "O médico e o monstro", de Stevenson, é pós-iluminista e romântica, coloca tudo no âmbito dos sentimentos pessoais, como se a consciência fosse um universo individualista. A consciência japonesa, como aqui falamos dela, está inicialmente dividida, não entre o mal e o bem - como nós moralmente os separamos - mas entre mim e a minha circunstância (terá o grande Ortega sonhado com isto? Ele me perdoe!). Por convenção tradicional, isto é, por uma sistematização da educação que, na oscilação das épocas e dos regimes - e imponentemente desde o século XVII - sempre procurou normalizar as gentes, as classes e comportamentos delas, o "giri" foi condicionante. Camilo Maria definiu-o - e bem - como sendo "a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com as normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido"... Para mim, é admirável, mais do que a obrigação do "giri", o milagre da sobrevivência do "ninjo" que tão bem se expressa nas obras dos artífices e artesãos japoneses. Volto a Camilo Maria: "A arte, o "design" japonês, minha Princesa de mim, distinguem-se por uma intuição da assimetria. Na natureza, tudo é como é, e a arte não tem de a violentar. O olhar do artista contempla, não embeleza. Tenta perceber, no gesto com que desenha ou molda, a essência mutante e permanente das coisas. O Verbo que criou o mundo não é lógico. O logos é inicial, criador e sempre amante. A arte é um caminho de conversão. A obra de arte é o fruto da transformação do amador na cousa amada. Nós, os ocidentais, não resistimos à tentação edénica da pressa em explicar tudo. Por isso reduzimos tudo à nossa imagem e semelhança.  Tenho visitado museus e exposições... Mas nada me dá o gosto, sentido na alma, tão livre e enorme, como o de olhar para uma peça rudimentar de cerâmica, bambu ou pano, na tenda de um artesão de Kyoto. Esses homens e mulheres acolhem-me sem pressa nem objetivo, apenas com um sorriso tão discreto que só pode estar na alma, e comigo contemplam o misterioso encontro de mãos humanas com a natureza. E é no reconhecimento desse encontro que reside a alegria e o valor sem preço daquela obra. Só um silêncio comungado pode celebrar esse entendimento íntimo. Assim também te sinto no silêncio infinitamente secreto do coração, quando à noite rezo e dou graças a Deus por sentir tão bem tantas coisas que não sei explicar. Aconchego-me-te neste mistério". Numa folha solta, talvez perdida de um maço de apontamentos sobre o gosto japonês, encontrei este manuscrito do Marquês de Sarolea, onde se fala de um célebre restaurante tradicional de Kyoto, o Waranji-ya, onde também já tive o prazer de um delicado jantar: "Se me pusesse agora a escrever sobre estética japonesa, parece-me que anteporia às minhas considerações um trecho do "Iniei Raisan" (o elogio da sombra) do Junichiro Tanizaki. Ocorreu-me há pouco, enquanto saboreava, em cerâmica do século XVIII, o meu jantar no Waranji-ya. Reza assim: "Quando substituíram a lâmpada elétrica em forma de lanterna por uma candeia ainda mais escura, e pude então observar as travessas e as tijelas à luz vacilante da chama, descobri, nos reflexos das lacas, profundos e espessos como os de um lago, um encanto novo e todo diferente. E soube que se os nossos antepassados tinham descoberto esse unto que tem por nome "laca" e se tinham deixado enfeitiçar pelas cores e o lustro dos utensílios dele revestidos, isso não fora fruto do acaso..." Inspirado, pedi também que, na minha sala, substituíssem a lanterna elétrica pela candeia antiga. E ganhei uma experiência estética nova, até na contemplação da gravura ao gosto chinês, do vaso de barro e do arranjo de flores dispostos no "toko no ma". E lembrei-me do Georges de la Tour, do Menino que alumia, com uma vela segura por sua mão, o S. José carpinteiro que prepara o madeiro da crucifixão... Será, quiçá, efeito do "saké" quente que me ajuda a abrir memórias e, por vezes, as confunde. Sorrio, pensando nessa verdade que Bernanos tão bem disse em "La Joie": Tudo é graça!"


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 16.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


UM INESPERADO BARROCO…
por Camilo Martins de Oliveira


"Ma Petite Princesse,
À ton âge, tu t’imagines, encore et usque ad pulverem, ma Petite Princesse... É simples e enternecedora esta verdade: a melhor expressão de um amor maior é um diminuitivo! A intimidade do que se sente no fundo do coração desconhece a grandiloquência. Na memória de um crente - e de tantos incréus! - não há lembrança mais doce do que a do Deus Menino. Nem oração em boca de mulher poderá ser mais cheia de graça do que a da rendição de Maria ao Menino soprado no seu ventre... A fundação da nossa religião é a ternura carinhosa de Deus, que somos convidados a partilhar. O amor é manso, debruça-se sobre o outro, não violenta nem conquista, apenas acolhe e é acolhido. Os japoneses têm uma palavra curiosa: "amae". Significará a vocação da dependência, ou o desejo inato dela. Tem a mesma raiz etimológica de "amai", que significa doce, doçura. Há quem pretenda - como o psiquiatra Tadeo Doi - que essa vocação para a dependência é como um desejo de regresso da criança à união inicial com sua mãe, e que se traduz por uma expressão que evoca a nostalgia de uma intimidade tornada sensível, após o nascimento, pela doçura do leite materno. "Amae" será então um desejo vindo da antiguidade da infância, a recusa do desamparo que, afinal, mais não é do que um modo da orfandade. A forma verbal de "amae" é "amaeru", que poderemos traduzir por desejar depender do amor dos outros. O que S. Paulo diz do amor: que "é paciente, é amável (…) tudo encobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta" - eis o que o japonês menino (mesmo já crescido e a diminuir para velho) deseja encontrar. Nem que tenha de se servir de truques ou manhas infantis: curiosamente, o mesmo verbo "amaeru" também quer dizer "ser mimado, portar-se como um bebé"... Para o Doutor Doi, o conceito de "amae" é chave para o entendimento da confrontação de "giri" e "ninjo" que, aliás, é o tema fulcral do romance "A Bailarina", de Ôgai Mori (1862-1922), um dos textos fundadores da moderna literatura japonesa. Conta-nos a história do grande amor do autor (médico militar de alta patente e pertencente à elite do império Meiji) e de uma bailarina que conheceu na Alemanha, onde estudava a cultura e civilização do Ocidente. Convidou-a a vir ter com ele ao Japão, para se casarem, mas por pressão familiar e social obrigou-se, em consciência, a renunciar a esse compromisso do coração. Prevaleceu o "giri", a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido. Explicam-se assim comportamentos como os dos pilotos suicidas ("kamikaze" ou ventos dos espíritos), ou os suicídios rituais ("seppuku" ou "harakiri") pela morte, derrota ou vergonha do senhor ou mestre. Ou ainda, a troca obrigatória e, muitas vezes, normalizada e até ritualizada de favores - que nós ocidentais tendencialmente consideramos corrupção... O "ninjo" que, neste caso, saiu vencido, é esse universo de sentimentos de simpatia, compaixão, afeto ou submissão do coração - o amor humano que, diria Tadeo Doi, nasce nessa dependência inicial da criança e da mãe e se vai reproduzindo com amigos, amantes, família, no decurso das vidas. O amor é um menino pequenino que nos enche o coração. Voltei hoje ao Byodoin, onde já não ia há mais de uma década. Fica um pouco afastado de Kyoto, mas é talvez a obra-prima da arquitetura do budismo da Terra Pura no período Heian (794 a 1160 ou 85). Foi Yorimichi Fujiwara - na altura "kampaku", ou 1º Conselheiro do imperador - que iniciou, em 1052 a construção do templo no sítio de uma casa de recreio de seu pai, prática aliás repetida por outros, inclusive pelos "shogun" Ashikaga, no séc. XV/XVI, com a edificação ou transformação em templos dos pavilhões "Ginkakuji" e "Kinkakuji" (prateado e dourado). Mas falo-te no Byodoin, por essa orientação do budismo Mahayana (da Porta Larga) que se apelidava de Terra Pura, e foi adotada pelas seitas Shingon e Tendai. O Buda aí venerado e invocado é o Amida ou Amitaba, cuja estátua está neste templo guardada no "shumidan" do pavilhão da Fénix, e tem 3 metros de altura, sentado. Todo ele é de madeira laqueada a ouro, e o rosto pacífico e quase feminino ilumina-se diariamente, a hora variável conforme a incidência do sol, que penetra por uma larga escotilha, aberta na parede sul. O "milagre" da iluminação de Amitaba Tatagata é visível, de fora do pavilhão, para quem estiver na margem sul do lago artificial aos pés do edifício do templo cujo desenho evoca uma fénix pousada, abrindo, extensas, as suas asas... O culto de Amida, como tantos outros votos e devoções na prática budista, não é uniforme: pode ficar-se pela contemplação da pureza que resultará da libertação das coisas mundanas, ou poderá crer e esperar no salvador que receberá todos na sua Terra Pura (e esta foi a crença, iniciada na China, que predominou na era Heian), ou ainda como uma salvação que libertará e acolherá todos mesmo os mais pecadores. No Byodoin, em sala anexa ao "shumidan", somos envolvidos por representações esculpidas, ao gosto, diria eu, do barroco europeu (este, cinco séculos depois), de apsaras, seres celestes que, como os anjos da nossa tradição, evoluem sobre nuvens, tangendo, percutindo, soprando vários instrumentos de sonora - e, esperemos, melodiosa - música. Rodeiam o Buda, e exultam com as suas virtudes. Por isso, haverá quem lhes chame bobisatvas. Santos, diríamos nós, que chegaram ao Nirvana. Tudo isto é "kawai" (japonês), "cute" (inglês), "mignon" (francês), precioso - dirão os meridionais - como um Menino... Por isso me despeço de Vossa Alteza, minha Princesa de mim, com esta diminuta banalidade "brusseler": au revoir, "chouke" (mon petit choux)."  Traduzo: até à vista, minha couvezinha, diria Camilo Maria em português.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 12.04.13 neste blogue.