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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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REDENÇÃO E SANGUE EM SCORSESE

 

Martin Scorsese estreou agora, numa fórmula heterodoxa ou
quase herege, o seu “The Irishman” na Netflix, sem ir à sala de cinema.
Sigo-lhe as pisadas heterodoxas e olho para o seu “Taxi Driver”
através do livro que a Taschen lhe dedicou

 

É um livro, “Taxi Dri­ver”, e começa exac­ta­mente onde o filme come­çou. Começa na cabeça de Paul Sch­ra­der. Da página 12 à 24, numa entre­vista catár­tica, o livro mos­tra os mio­los do seu criador.

 

Lemos e vemos a cabeça de um tipo que tem difi­cul­dade em dor­mir, sem­pre acor­dado até às 4, até às 5 da matina. Inqui­eto, esquizo, esconde uma gar­rafa de whisky no bolso do casaco, e mete-se no carro, a deam­bu­lar pelas wee-wee hours de Los Ange­les. Pára nuns antros a ver por­no­gra­fia, a essas horas a que se via por­no­gra­fia, antes da web bar­rar com ela as nos­sas tor­ra­das do pequeno-almoço. Não con­se­gue dor­mir, não con­se­gue comer. Sch­ra­der quer escre­ver fil­mes e traz no corpo um livro de desas­sos­sego. A esta exce­lente cabeça salvou-a um mau estô­mago. Paul Sch­ra­der teve uma úlcera e a aben­ço­ada úlcera parou com aquele ultraje aos prin­cí­pios cal­vi­nis­tas bebi­dos no leite materno. Pen­sava redimir-se aban­do­nando L.A., quando se lhe dese­nha no cére­bro a metá­fora do táxi, como a Álvaro de Cam­pos a da taba­ca­ria, e escreve o guião de “Taxi Dri­ver”.

 

Paul Sch­ra­der era pouco mais do que um des­gra­çado. Nin­guém lhe ligou nenhuma até escre­ver “Yakuza”, argu­mento que um estú­dio com­prou por um balúr­dio. Com milha­res de dóla­res a aquecer-lhe o ego e os bol­sos, vol­tou a “Taxi Dri­ver”. Arran­jou um par de pro­du­to­res ide­a­lis­tas, faltava-lhe o rea­li­za­dor. Foi ele que des­co­briu Scor­sese. Viu “Mean Stre­ets”, essa meia-dose de coca pura, e disse aos pro­du­to­res que que­ria o pacote inteiro: que­ria o rea­li­za­dor, Mar­tin Scor­sese, e o actor, Robert De Niro.

 

Está tudo neste livro, mas é pre­ciso ter algum mús­culo para o ler­mos. Com 38 cen­tí­me­tros de altura, por 25 de lar­gura, quase 4 cen­tí­me­tros de lom­bada, este é um dos casos em que o tama­nho conta. Ou seja, nem pen­sem levá-lo para a cama. Abra-se em cima de uma mesa, que nin­guém aguenta andar a ler com 5 qui­los nos bra­ços. São 400 pági­nas de pouco texto e mui­tas foto­gra­fias assi­na­das por Steve Scha­piro. Quem é Scha­piro? Não sei. Esta monu­men­tal edi­ção da Tas­chen dá-lhe hon­ras de capa e depois não lhe liga pevide. Nem uma nota bio­grá­fica, um rodapé auto­ral. Olha, foi um tipo que teve a sorte de foto­gra­far o que acon­te­ceu. Vamos então ao que aconteceu.

 

Os meus generosos leitores têm para aqui um cro­nista, tira da vida e mete no cinema, que até parece que só há fil­mes ame­ri­ca­nos. Ora vai-se a ver e todo o ver­da­deiro artista ame­ri­cano é um mari­conço afran­ce­sado. Basta vol­tar à cabeça de Sch­ra­der que dei­xá­mos lá em cima. A cabeça dele andava assim por estar embe­bida de “A Náu­sea”, de Sar­tre. Sch­ra­der, nas­cido no Michi­gan, objecto de aus­te­ri­dade pul­si­o­nal pro­tes­tante durante a infân­cia, quis escre­ver um guião sobre o herói exis­ten­cial à euro­peia. Mamou Sar­tre, e ele não diz, tal­vez por ver­go­nha, mas se calhar tam­bém se enfro­nhou no Ber­na­nos, vendo depois nas cine­ma­te­cas o “Jour­nal d’un Curé de Cam­pagne” do esque­cido jan­se­nista que é Robert Bres­son. Ora, o que um padre de Ber­na­nos ou de Bres­son mete para den­tro em des­po­ja­mento e lei­tu­ras de bre­viá­rio, o pro­ta­go­nista de “Taxi Dri­ver” mete para fora a Mag­nums.44 – ele que visi­vel­mente, de si mesmo, tem difi­cul­dade em meter seja o que for.

 

Taxi Dri­ver” era, por­tanto, um filme de Sch­ra­der. Chega Scor­sese e, de ame­ri­cano para ame­ri­cano, rouba-lhe o filme. “Fui eu que escrevi isto”, disse Scor­sese ao ler o guião. “Cada uma des­tas pala­vras arde debaixo da minha fuc­kin’ skin.

 

Mas rou­bou como? Mudando de fran­ce­ses. Dou exem­plos e vou ser gene­roso. Sch­ra­der desunhara-se a des­cre­ver por­me­no­res do quo­ti­di­ano, pequenos-almoços, ruas, silhu­e­tas das pes­soas que pas­sam, sacando-as ao Bres­son de “Pick­poc­ket” e “Mou­chette”, coi­si­nhas mais ínte­gras e éticas do que esté­ti­cas. Scor­sese pul­ve­ri­zou as ideias depres­si­vas e a con­cep­tu­a­li­za­ção de Sch­ra­der: pas­sou tudo a ser godar­di­ano, ima­gens ner­vo­sas, tra­ba­lha­das a tra­vel­lings e pano­râ­mi­cas. E há outra coisa: Sch­ra­der tinha escrito um filme cal­vi­nista, des­pido, ascé­tico. Está no Robert De Niro do filme, naquele braço tenso e teso que De Niro mos­tra ao espe­lho e que pode­mos ver, no livro, nas 22 pági­nas de fotos, de beleza devas­ta­dora, do capí­tulo “total orga­ni­za­tion is neces­sary”.

 

Era o que Sch­ra­der que­ria, mas o cora­ção de Scor­sese, for­mado em Vir­gem Maria, roma­rias, pro­cis­sões e comu­nhão solene, cris­mou aquela trampa seca e gélida de Sch­ra­der com, digo eu, um renas­cen­tismo sici­li­ano: Nova Ior­que, a cidade do filme, converte-se numa igreja cató­lica. Néo­nes como se fos­sem alta­res, mul­ti­dões de pere­gri­nos em noi­tes de 42nd Street, semá­fo­ros e faróis que pare­cem a pro­cis­são das velas. Scor­sese meteu um calor medi­ter­râ­nico onde a Sch­ra­der fazia um frio escandinavo.

 

Há sem­pre um ladrão que rouba outro ladrão. Iro­nia das iro­nias, Robert De Niro rou­bou a Scor­sese, que já a rou­bara a Sch­ra­der, a melhor cena. Lembram-se? Frente ao espe­lho, o actor expe­ri­menta as armas, corpo magro, seco, que jamais pen­sa­ría­mos que viesse a dar a bola redonda e balofa de “Raging Bull”. Sch­ra­der via a cena quase como uma ascese, via De Niro como uma frí­gida Teresa d’Ávila que tirasse um Colt 38 de entre as per­nas.

 

Mas Scor­sese fil­mou tudo com o baixo-ventre de Godard, numa linha “mon­tage, mon beau souci”, numa frag­men­ta­ção meio expe­ri­men­tal. Um a rou­bar ao outro e, do nada, a olhar-se ao espe­lho, o cabrão do actor começa a dizer coi­sas, “are you tal­kin to me, are you tal­kin to me!”, num impro­viso que não estava escrito, nem pla­ni­fi­cado, dei­xando os donos do filme a tinir. De Niro, nessa cena, vale uma década de cinema.

 

Rou­bou mais. De Niro rou­bou a cabeça ulce­rosa que fizera Sch­ra­der escre­ver tanta soli­dão. Numa foto, na página 13, vê-se De Niro, a pé, com o disco que vai ofe­re­cer a uma puta­tiva namo­rada. Há um tipo atrás dele, de fato azul, e é tudo igual, a aber­tura de bra­ços, o mesmo botão aper­tado do fato, as per­nas cam­baias. Esse tipo é Paul Sch­ra­der e vê-se que é, como De Niro, o mesmo tipo de rato que, a pé ou de táxi, se move bem no esgoto mais escuro.

 

Taxi Dri­ver” é o livro de um filme que nos rouba a calma e o sos­sego. Com um fri­go­rí­fico de emo­ções den­tro de si, um tipo con­duz um táxi na noite de uma cidade que ele vê como uma cate­dral pejada de lixo humano. Sonha com um sopro de reden­ção que lave tudo a san­gue. Tipos des­tes, avisa Sch­ra­der, devem ser aba­ti­dos. Tenho agora o tipo preso num livro de cinco qui­los da Tas­chen. Pri­são perpétua.

 

Manuel S. Fonseca

A VIDA DOS LIVROS

De 9 a 15 de janeiro de 2017.

 

O filme «Silêncio» de Martin Scorcese é baseado no enredo concebido por Shusaku Endo (1923-1996) sobre a memória da presença portuguesa e cristã no Japão. O livro foi publicado entre nós pela D. Quixote, com tradução de José David Antunes, e a sua temática insere-se na nossa riquíssima relação com o país do Sol Nascente.

 

CONHECIMENTO MÚTUO
Diz-me a experiência que os nipónicos conhecem melhor Portugal do que nós a eles. Não falo só dos muitos vocábulos portugueses usados no quotidiano (butan, kappa, koppu, pan ou tempura) ou do célebre pão-de-ló (kasutera, palavra que vem das claras em castelo), mas sobretudo de uma empatia muito especial, devida ao facto de os portugueses terem sido os primeiros ocidentais a chegarem a este distante arquipélago, habitado por guerreiros, mercadores e pescadores, abertos ao mundo. A arte Namban é um resultado deste encontro, provindo a designação do modo como os japoneses nos conheciam – Namban-jin significa bárbaros do sul… Por toda a parte no Japão, encontramos memórias do encontro com os portugueses – e Venceslau de Morais ou, nos nossos dias, José de Guimarães bem compreenderam esta riquíssima relação. De facto, há uma curiosa relação biunívoca entre os nossos povos. Shusaku Endo foi um grande admirador dos portugueses e amigo do Embaixador Martins Janeira. Nasceu em Tóquio, viveu a infância na Manchúria, tendo-se tornado católico aos doze anos, por influência da mãe, com quem viveu, depois desta se separar do pai, em Kobe. Licenciou-se em Literatura Francesa pela Universidade de Keio, tendo estudado na Europa, em Lyon. A sua obra é marcada pela pertença a uma religião minoritária e pela vivência de intensos e dramáticos dilemas morais e religiosos. Endo é muitas vezes comparado a Graham Greene, que tinha uma grande admiração pela obra do romancista. E Silêncio é considerado o seu livro de maior originalidade e intensidade e o mais significativo, tendo sido distinguido com o prestigioso Prémio Tanizaki (1966). Não esqueço o encontro em Quioto com os Padres Adelino Ascenso e José Tolentino Mendonça, para falarmos de Silêncio. O tema crucial era o da barreira cultural entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. O cristianismo nipónico é heterogéneo e surpreendente – os mártires coexistem com os cristãos escondidos, os que preferiram o testemunho público e os que mergulharam na sociedade, divididos entre as fidelidades do gesto e do princípio. A dúvida liga-se ao remorso. E Cristo representado no fumie, a pequena placa usada para consumar a apostasia, parecia dizer: “Podes pisar-me!”. Afinal, o mistério do silêncio está no centro desta reflexão, como ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. Vem à lembrança a negação de Pedro, a pedra em que assentou a Igreja. Para o Padre Ascenso, a distância cultural torna-se mais forte que os julgamentos precipitados de traição. E António Alçada gostava de recordar a passagem da Peregrinação, em que Mestre Belchior e o rei do Bongo falavam da conversão deste último – em que ele dizia ser desnecessário qualquer gesto, já que Deus o sabia…

 

INTERPRETAÇÃO SOBRE A VIDA
O filme de Scorcese procura uma interpretação sobre a vida de um missionário no Japão no século XVII, em especial durante a dura perseguição, que durou quase um século. O caso que serve de base ao livro de Endo tem a ver com a apostasia do Padre Cristóvão Ferreira em 1633 – caso inédito até então. Perante as perseguições, houve necessidade de resistir. Daí que os jesuítas tenham assumido a exigência de algum tipo de acomodação cultural, como no caso dos ritos. No livro, tudo começa por um dado dramático: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus, Cristóvão Ferreira, submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos. Ocupava o cargo de superior provincial e era tido como um exemplo inspirador tanto de clérigos como de leigos”… As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata, onde se encontrava, revelavam uma grande determinação e coragem por parte do padre jesuíta. Essas missivas não faziam suspeitar ou prever qualquer negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo tornou-se violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos adotados para extirpar a influência cristã e ninguém estava em condições de prever o sentido e alcance das medidas. Silêncio trata das informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe sobre o que se tinha passado com o Padre Ferreira. O romance é constituído por cartas de Sebastião Rodrigues e por outras informações, que nos levam aos estranhos acontecimentos que conduziram à apostasia do mais proeminente dos missionários no Japão…

 

UM DRAMA HUMANO E RELIGIOSO
Cristóvão Ferreira é obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção limite em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses condenados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente também responsável. E neste ponto não pode deixar de se lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas, porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre por trinta dinheiros. Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? “Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes”. Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exatamente onde estão um e o outro. A pressão é máxima, desde a culpa à dúvida, do silêncio ao amor. A apostasia concretizava-se pisando a imagem de Cristo. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso ato de amor de que jamais alguém foi capaz”. Afinal: “Quando o padre assentou o pé no fumie nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”… O drama existencial é tratado magistralmente, não devendo apenas situar-se num momento histórico, projeta-se numa tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso.O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa (diz o romancista): que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado esse esforço! Todavia é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses”.

 


Guilherme d'Oliveira Martins

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