Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
As chaminés das fábricas tinham pescoços de cegonha, e quando deitavam fumo era como se as cegonhas abrissem as asas. Quando o fumo era preto, porém, as cegonhas transformavam-se em corvos de grandes pescoços feitos de tijolo; e ao contrário das cegonhas não voavam, mas faziam soar as sirenes com os bicos metálicos, para que os operários saíssem do seu ventre em direcção a casa. No dia seguinte, se o fumo fosse branco, as operárias agarrar-se-iam às asas da cegonha e puxá-las-iam, como se fossem linho, para as enrolar e meter nos contentores que os barcos esperam no cais, para as levar para os países com falta de lençóis. É por isso que os ninhos de cegonha, nos grandes postes eléctricos estão vazios; e que as raposas correm de uma árvore para outra, à procura de um ramo em que esteja um corvo, sem conseguirem encontrar o queijo que a fábula lhes prometeu.
The factory chimneys were like stork necks, and when they gave off smoke it was as if the storks were opening their wings. When the smoke was black however, the storks changed into crows with huge necks made of bricks; they didn’t take flight like the storks but instead sounded sirens with their metallic beaks, letting the home-bound workers out of their bellies. The following day, if the smoke was white, the workers would hold on to the storks’ wings and stretch them as if they were linen in order to fold them and store them in containers on waiting ships which would take them to countries where there was a shortage of sheets. This is the reason stork nests on top of tall electric pylons are empty; and also the reason why foxes run from tree to tree looking for a perching crow, unable to find the fable-promised cheese.
Nossa Senhora não se esquece da Bulgária, Depois da escola os três pastorinhos vão lanchar Pães com manteiga molhados no café com leite Leite quente – faz frio – na montanha Muito frio na montanha BRRHh Nossa Senhora não se esquece do povo búlgaro, Dá-lhes frio quando é preciso e sol quando é preciso, Quando é preciso os búlgaros também têm neve, As ovelhas sobem a montanha seguindo os passos dos Três pastorinhos – sobem as ovelhas, descem as ovelhas, descem a montanha, as pessoas e as ovelhas Nossa senhora não se esquece da Bulgária Aparece sempre bela e provocante aos búlgaros no seu vestido de seda vermelha, braços macios, não feitos de luz, mas de carne humana ajoelham-se diante dela á sombra duma oliveira Os três pastorinhos búlgaros
in Delírio Húngaro, 2009
The three little Bulgarian shepherds
Our Lady doesn’t forget Bulgaria, After school the three little shepherds will have tea Bread and butter dunked in milky coffee Hot milk – it’s cold – on the mountain Very cold on the mountain BRRHh Our Lady doesn’t forget the people of Bulgaria, She gives them cold when it’s needed and sun when it’s needed, When it’s needed the Bulgarians also have snow, The sheep climb the mountain following in the footsteps of the Three little shepherds – the sheep go up, the sheep come down, they come down the mountain, people and sheep Our lady doesn’t forget Bulgaria She always appears beautiful and sexy to the Bulgarians in her red satin dress, soft arms, not made of light, but of flesh and blood they kneel before her in the shade of an olive tree The three little Bulgarian shepherds
resta, de Agosto, esta fotografia iluminada onde tudo permanece ainda no lugar: a boca no artifício dos sabores a lentidão dos açúcares mãos suadas dissipando pântanos interiores pernas brancas, vestido colado ao clima dessas pernas o cio vibrante do Astro, por cima por baixo, umas sandálias às primeiras evidências outonais levantaram as esplanadas
in Santo subito, 2010
The fall to Catarina Barros
left over, from August, this luminous photograph where everything is still in its right place: the mouth in the artifice of flavours the slowness of sugars sweaty hands dissipating inner swamps white legs, a dress glued to those legs’ climate the vibrant heat of the Sun, on top underneath, sandals at the first autumnal suggestions the awnings were pulled in
O mundo, portanto. O que nos manuseia. Convoca: esta é uma outra maneira de dizê-lo. Será esse o seu propósito (chamemos-lhe assim) e a razão dos seus acasos, necessidades, dos inacabados engenhos, das suas discretas insistências e dos nossos risos (chamemos-lhes assim) ruidosos por entre o que há de incumprido nos lugares. Mas depois disso? Não adianta alegar inocência. Já ninguém acredita. E depois pouco interessa. Há quem tenha rabiscado em guardanapos ou lançado gestos. Assim, sem mais. Como se fossem imprevistos. Quem tenha feito aperfeiçoado o crrchtctchhtt das fitas encravadas ao lembrar-se. E assim por diante, sem que andasse assim tão longe da verdade. Quem tenha furiosamente esquecido o tempo e o espaço, ou dobrado um no outro, bem devagar, enquanto esperava, simplesmente, que passasse por ali um sopro. Ou seja, que fosse visto pelos outros igualmente assim cambaleantes. Que as dores não amansassem o tempo, o mundo, e tudo o resto. Há quem tenha sido exaltadamente retráctil, como uma mão na água fria. Quem tenha guardado uns berlindes num saco de renda, numa gaveta junto aos bonecos de dar à corda. Naturalmente. (Pensem por exemplo no som que uns e outros) Há quem tenha chegado um pouco tarde porque parou, muito parado um bom bocado, para desentorpecer o andar. Uma espécie de esgravatar da rotina por uma desordem, quase sossegada. Uma desordem quase, uma desordem quase. Há quem tenha feito uma ideia súbita durar anos, usando-a ferozmente, só de vez em quando. Quem tenha lido tão espantadamente os voos e as vísceras desgovernadas do banal. Há quem tenha deixado de vez de anunciar cortes nos paradigmas e emprestado a faca a criaturas mais soltas. Quem se tenha deixado ficar muito aconchegado para ouvir melhor e praticar o ranger de dentes. Quem tenha de tanto andar digamos por aí roubado a arquitectura aos arquitectos. Quem tenha demorado uma vida a chegar às ditas grandes questões. E as tenha desfeito às três pancadas (e não uma de cada vez). Quem tenha trazido as palavras de volta ao esforço. Quem tenha passado muito tempo em zonas em que a lei é omissa. Quem tenha perguntado muito rindo de como encolhem os ombros os que choram. Pois não há resposta. Quem tenha sido obstinado na hesitação, mas porque acreditava como ninguém nas virtudes do mergulho incalculado. Há quem não tenha esperado nunca por nada senão talvez um certo dia pelo fim de tudo e por isso tenha andado tão entregue a princípios. E andado tanto, entretanto (o que não impede o exercício por exemplo da cartografia mas atrapalha as competências um pouco mais lentas da lupa). Quem tenha portanto ido e vindo e nisso visto um pouco o mundo. Há quem tenha achado que era pouco, isso. Quem tenha desencadeado. Isso sim, seja lá como. Quem tenha sido pouco minucioso a pontapear os inimigos circundantes. (Ainda assim, tão exacto quanto possível) Quem tenha feito uma coisa parecida com extinguir-se. Que tenha espatifado uma coisa parecida consigo próprio. Quem se tenha encadeado, a olhar para o chão. Quem nunca tenha clarificado muito bem as suas claridades. Até quem não as tenha tido, para evitar distracções. E quem tenha sido objectivamente impreciso (para lá da óbvia necessidade). Quem tenha rasurado mais do que escrito. Há quem tenha prematuramente anunciado o fim. Nem que fosse de mais um cigarro (porque mesmo um fim assim, tão fraco de cinza e assobio e luz que se esboroa é tão doce como um bom prenúncio). Há quem tenha dito: talvez quando amanhecer. Quem tenha apagado a luz e rondado as explosões de maçãs muito quietas. Quem tenha vivido sem que se desse por isso. Quem tenha achado lindo um sábado em que já não havia nada mesmo nada a fazer. Quem se tenha agachado a rir. Quem tenha esfaqueado a pedra como se tivesse alguma coisa dentro. Quem tenha dançado tão mal e tão espantosamente entre cadeiras num bar, já depois de fechado. Quem tenha relido tudo, agora mais devagar. Quem tenha sobretudo rasgado. Ou enfim dançado. Quem tenha sido tão sossegado, e no entanto. Quem se tenha divertido a mexer as mãos em frente a projectores. E no entanto. Quem tenha acendido o ecrã simplesmente para ver o pó contorcer-se. Quem tenha escavado esconderijos e engendrado evasões. Quem tenha amplificado os sons mais murmurados, inventado cartuchos ainda mais oleados e bandas tão mais magnéticas para isso. Pigmentos novos, pestanas mais estremecidas, facas mais aguçadas, vozes ainda mais roucas, palavras mais impensadas, morais mais soltas, vidas mais desfeitas, futuros mais espalhados, amores mais o que seja que os amores mais ficam. Ou quem tenha desamado tudo com uma seriedade louca e entre risos por acaso auscultado os tais engenhos. Não é mau, como princípio. Tudo isto, diga-se, quase sempre com rigor feroz e subtileza sempre quase rítmica e sôfrega. Isto interessa-nos. Tudo isto, ainda que por outra razões, ou com outros fins – ainda incertos. Daremos outro uso aos instrumentos Às subtilezas, e aos modos de desabar. É disso que se trata. Falta tudo o resto.
in Que se diga que vi como a faca corta, 2010
The world, therefore
The world, therefore. That which handles us. Summons us: in another manner of speaking. Will this be its endeavour (let’s call it that way) and the reason for its chances, needs, its unfinished devices, its discrete insistences and our laughing (let’s call it that way) loudly amongst that which is left unfulfilled in places. And then what? It’s no use invoking innocence. No one believes in it any longer. Nor is it very interesting. There were some who scribbled on paper napkins or hurled gestures. Just like that. As if they were unexpected. Those who have perfected the crrchtctchhtt of stuck film strips as they remembered. And so forth, not so far from the truth. Those who have furiously forgotten time and space, or folded them up together, very slowly, while simply waiting for some breeze to come by. That is, to be seen by others just as unsteady. As if pain didn’t appease time, the world, and all the rest of it. There are those who have been exultingly retractable, like a hand in cold water. Who have stashed away some marbles in a laced bag, inside a draw together with the wind-up toys. Naturally. (Think for instance of the sounds they generate) There are those who arrived a little late because they stopped, very still for quite a while, to stretch their legs: a sort of routine scratching by an almost peaceful unrest. Almost an unrest, an unrest almost. There are those who have made a sudden idea last for years, as they used it ferociously and sparsely. Those who have so sloppily read the unruly flights and entrails of banality. There are those who ceased for good to announce cuts in paradigms and lent the knife to more relaxed creatures. Those who have stayed well snuggled to better listen and practice the gnashing of teeth. Those who have wandered round, shall we say, so randomly, stealing architecture from the architects. Those who have taken their whole life to grasp the so called great questions only to destroy them carelessly (and not one at a time). Those who have brought words back into effort. Who have spent a long time in lawless places. Who have questioned a great deal, smiling at the shoulder shrugging of those who weep. For there are no answers. Those who have been hesitatingly obstinate, due only to their unique belief in the virtues of non-calculated dives. Those who have never expected anything except perhaps once for the end of everything and have therefore walked totally devoted to principles. And they took such long strides, in the meantime (which doesn’t for example prevent exertions on cartography but muddles up the much slower abilities of the magnifying glass). Those who have therefore gone to and fro and thus seen a little of the world. There are those who thought this wasn’t enough. Those who have broken ground. It doesn’t really matter how. Those who weren’t very precise when kicking their surrounding enemies. (Well, not as exact as they might have been) Those who undertook something such as becoming extinct. Who have annihilated something resembling their own selves. Those who got entangled looking downwards. Those who didn’t quite clarify their clarity. And those who didn’t even see the clarity so to avoid distraction. Who have been objectively inaccurate (beyond the necessarily obvious). Those who have erased instead of writing. Those who prematurely announced the end. Even the end of yet another cigarette (since such a crumbling end, so spare in ash, light and whistling breath, is as sweet as any good omen). Those who have said: maybe in the morning. Those who switched off the light and haunted the explosion of very still apples. Those who have lived without anyone noticing. Those who have admired a saturday when there was nothing, but truly nothing, left to do. Those who have squatted, laughing. Those who have knifed the stone as if there was something inside. Those who have danced so clumsily and so amazingly among the chairs of a closed bar. Those who, now at length, have read it all again. Those who have mainly torn it all up. Or danced at last. Those who have been so quiet and yet. Those who have enjoyed waving their hands in front of film projectors. And yet. Those who have lit up the screen only to see the writhing dust. Those who have dug holes to hide and worked up escapes. Those who have amplified the most whispered sounds, inventing even oilier cartridges and so much more magnetic tapes to this end. New pigments, more fluttered eyelashes, sharper knives, still coarser voices, more thoughtless words, looser morals, more wrecked lives, more wide-spread futures, more of whatever can further happen to love. Or those who have unloved everything with a mad seriousness and smiling listened randomly to such exploits. Not bad, as a principle. And all this, it must be said, always with a fierce rigour and almost permanent, rhythmical and eager subtlety. This is of interest to us. All of this, even if for other reasons or to other aims – still uncertain. We’ll provide other usages for tools, subtleties and manners of collapsing. It’s what this is all about. Everything else is amiss.
Se a língua ganha a dimensão da escrita E a escrita toma a dimensão do mundo Descer é preciso até ao fundo na busca das raízes da saliva que na boca vão misturar tudo Mas há ainda a pressa do papel que no tacto navega a brusca seda Se a sede se disfarça sob a pele descendo pela escrita essa vereda E já se inventa Enlaça Ou se insinua Se entrelaça a roca e o bordado que as palavras tecendo lado a lado querem do país a alma nua Aí podes parar e retornar à boca Esse espaço de beijo e de cinzel Onde a fala retoma a língua toda trocando a ternura por fel Um lado após o outro a dimensão está dita O tempo a confundir qualquer abraço entre o visto e o escrito Espelho e aço Nesta fundura boa e mar profundo Para depois subir a pulso O mundo
in Inquietude, 2006
Portuguese
If the tongue gains the dimension of writing and writing takes on the dimensions of the world We must go deep searching saliva’s roots in the mouth where all is mixed And there’s still the paper’s haste its touch steering rough silk Even if under the skin the disguised thirst streams through the trail of words And already it creates Envelops Insinuates Interlaces the spindle with the stitch as the words weave along the line wanting the country’s naked soul There you can halt and return to the mouth That space for the kiss and the chisel Where the voice reclaims the whole language exchanging tenderness for bile First one side then the other the scale is settled Time fusing the embrace between what is seen and written Mirror and steel In this pleasing depth the sea unfolds Then with effort lifts up The world
Ficou vazio o teu lugar à mesa. Alguém veio dizer-nos que não regressarias, que ninguém regressa de tão longe. E, desde então, as nossas feridas têm a espessura do teu silêncio, as visitas são desejadas apenas a outras mesas. Sob a tua cadeira, o tapete continua engelhado, como à tua ida. Provavelmente ficará assim para sempre. No outro Natal, quando a casa se encheu por causa das crianças e um de nós ocupou a cabeceira, não cheguei a saber se era para tornar a festa menos dolorosa, se para voltar a sentir o quente do teu colo.
in Poesia Reunida, 2012
Your place at the table…
To my Grandmother
Your place at the table was empty. Somebody came to tell us you wouldn’t be back, no one can be back from so far. And since then our wounds are as deep as your silence, our visits only feel welcoming at other tables. The rug remains shriveled underneath your chair just as you left it. It will probably stay so forever. Last Christmas when the house was full just for the children and one of us sat at the head of the table, I never found out if the reason for this was to make our gathering less painful or to feel again the warmth of your lap.
Ouvia o mar – quando o sono demorava – espalhando-se em humidade salgada em todo o ar da casa, até aos lençóis da cama: como em tudo na casa, há mar na cama De manhã auscultarei a bruma, a promessa do sol auscultarei as vagas, o seu porte, porque eu amo o poder do mar Atravessaremos o pinhal, o forte cheiro das raízes molhadas, a áspera proximidade da vegetação de duna – chorão, camarinhas, lírios de areia e as suas gotículas de água Iremos comprar pão à Serra, tomar café e ler o jornal entre moscardos Ah mas ao fim da tarde, ao pôr do sol, é que o cheiro da duna rescendia de uma tal vida… ! Depois das travessias do sol e das nortadas O que eu não sabia… (meu Deus eu não sabia nada)
in Lugares, 2010
West Coast
I could hear the sea – when sleep took its time – spreading in salty humidity all over the house, even onto the bed sheets: as with everything else in the house, there’s sea in the bed In the morning I’ll see about the mist, the promise of sun I’ll check out the waves, their height, for I love the power of the sea We’ll walk across the pinewood, strong smell of wet roots, rugged nearness of the dune’s vegetation – weeping willow, bear berry shrubs, sand lilies, their droplets of water We’ll buy bread up on the Serra, have coffee and read the paper with the flies Ah, but when afternoon ends, when the sun sets and the dune’s scent springs into such life…! After striding the sun and the north wind So much I didn’t know… (Good God I knew nothing)
Esta sarça é interdita a matilhas; há que mudar a pele para comer o fogo. Não que eu faça render qualquer talento, ou tenha em vasilhas semi-intactas ilustres maravilhas: uma lista de coisas a fazer, solidão, pedra de isqueiro, um revólver, e um aparelho já com pouca pilha e que só uso eu; a nós vontade basta – e alguma luz: pede-se intensa, mas sem que obste o brilho à entrega cega, aceitas? compreendes? aguentas? no nervo negro desta densidade penetra só sentindo que sustentas e me conténs quando eu me desintegro.
In Relâmpago magazine nº26, 2010
Minimum Conditions
Wolf packs are barred entrance to this bush; a change of skin must precede the eating of fire. With this I am not boasting of particular talents or hush- ed-up wonders, semi-flawless flattery: a to-do list, utter loneliness, bristle cigarette lighter flint, a pistol, a gadget almost out of battery for my exclusive use. Willingness suffices us – and light, hopefully bright, although not outshining blind surrender willl you accept? understand? take it in? pierce the dark nerve of this denseness but only if you’re able to hold tight and wholly contain me while I fall asunder.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004
1 - Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.
2 - Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente.
Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.
3 -Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.
4 - Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".
"Dentro deste quarto um outro quarto Como um Carpaccio nas ruas de Veneza Segunda imagem sussurro de surpresa E um pouco assim são as ruas de Veneza Em fundo glauco de laguna ou vidro E um pouco assim em nossa vida o duplo Espelho sem perdão do não vivido Caminha destinado a ser perdido
5 - Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.