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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SOBRE O SILÊNCIO: HÁ MUITOS SILÊNCIOS. 3

  


Continuamos com a urgência da cultura da pausa e do silêncio.


Repetindo, chama-se, como diz o jesuíta Juan Masiá, professor em Tóquio, cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, às margens numa folha escrita ou num quadro, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e eu olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela “Realidade-Assim-Sempre-Presente cuja aura comum nos envolve”. Sai de ti, para te encontrares no Todo. Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao “Assim-Sempre-Presente”, que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver, indo ao essencial?


Aqui, quanto ao essencial, lembrei-me daquela estória, que poderia ser histórica, e volto a Juan Masiá, pois é ele que a conta — está no seu livro Vivir. O jovem rei, com desejo de aprender, convocou os sábios do reino, encarregando-os de lhe trazerem um resumo da sabedoria humana. Passados trinta anos, compareceram com doze camelos, carregando quinhentos volumes. O rei, já cinquentenário, lamentou já não ter tempo para lê-los: “Fazei uma edição abreviada”. Dez anos depois, bastaram três camelos, mas o rei, já sexagenário, sentia-se sem forças para tanta leitura e pediu uma versão mais curta. Outros dez anos de trabalho e um camelo apenas para transportar os volumes. O rei, porém, tinha a vista debilitada. Assim, mais cinco anos de trabalho, para reduzir a obra a um único volume. O rei, já no leito de morte, entristeceu-se profundamente: “Chegarei ao fim dos meus dias sem ter tido o gozo de aprender a história da caminhada humana?” Então, o mais velho dos sábios aproximou-se e sussurrou aos ouvidos do rei: “Majestade, pode-se reduzir tudo a três palavras: nascemos, sofremos e morremos.” O rei assentiu com um gesto e expirou. Recordo que Jesus também disse: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma, a sua vida?”


Afinal, tanta vaidade oca! Ah!, tantos desastres pessoais, sociais, económicos..., se teriam evitado, se tivesse havido a graça do meditar em silêncio! E quem tem a responsabilidade de falar para ser ouvido não pode falar em ruído cacofónico a propósito e a despropósito de tudo e de nada. Também há o silêncio discreto, que  evita os mexericos, a tagarelice vazia. As palavras criadoras, com autoridade, nascem do e no silêncio. Como escreveu o filósofo A. Comte-Sponville, precisamos do “silêncio do sábio, mesmo quando fala.”


E aí está o fundamento de todos os silêncios:  o silêncio perante o Mistério Inefável, Deus, que transcende tudo quanto se possa pensar ou dizer dele: o Mistério do ser. O silêncio da surpresa avassaladora e inominável que nos visita. E vou ao encontro de Raul Solnado, que apenas encontrei uma vez. Num casamento. Surpreendeu-me a imagem que me ficou: a de um homem reflexivo. Deixou um pequeno escrito de uma profundidade surpreendente, com uma experiência, no silêncio, na Expo, em Lisboa, em 2007. “Numa das vezes que fui à Expo, em Lisboa, descobri, estranhamente, uma pequena sala completamente despojada, apenas com meia dúzia de bancos corridos. Nada mais tinha. Não existia ali qualquer sinal religioso e por essa razão pensei que aquele espaço se tratava de um templo grandioso. Quase como um espanto, senti uma sensação que nunca sentira antes e, de repente, uma vontade de rezar não sei a quem ou a quê. Sentei-me num daqueles bancos, fechei os olhos, apertei as mãos, entrelacei os dedos e comecei a sentir uma emoção rara, um silêncio absoluto. Tudo o que pensava só poderia ser trazido por um Deus que ali deveria viver  e que me envolvia no meu corpo amolecido. O meu pensamento aquietou-se naquele pasmo deslumbrante, naquela serenidade, naquela paz. Quando os meus olhos se abriram, aquele Deus tinha desaparecido em qualquer canto que só Ele conhece, um canto que nunca ninguém conheceu e quando saí daquela porta, corri para a beira do rio para dar um grito de gratidão à minha alma, e sorri para o Universo. Aquela vírgula de tempo foi o mais belo minuto de silêncio que iluminou a minha vida e fez com que eu me reencontrasse. Resta-me a esperança de que, num tempo que seja breve, me volte a acontecer. Que esse meu Deus assim queira.” 


É nele, na presença do “Deus desconhecido”, que vivemos sempre. Como São Paulo foi dizer no Areópago aos atenienses: “É nele, realmente, que vivemos, nos movemos, e existimos, ‘pois nós somos também da sua estirpe’.” Mas, distraídos, não damos por nada.


Quem não aprendeu a fazer silêncio e a ouvir o silêncio não aprendeu o essencial do viver nem experienciou o sentido último da vida. Mas não esquecer, mais uma vez, o que escreveu Juan Masiá: “São precisos anos para aprender a ouvir o silêncio.” E cito Teresa Bracinha Vieira: “O silêncio não tem corpo nem ocupa espaço. Não é pintado nos quadros, nem tocado na música. O silêncio não é o oposto do ruído, é muito mais... é um saber que se sente e se sabe e se não diz.”


Fica ainda, pedindo desculpa por isso, o silêncio de todos os silêncios ignorados ou esquecidos neste texto.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de julho de 2023

SOBRE O SILÊNCIO: HÁ MUITOS SILÊNCIOS. 2


Continuo com os silêncios que a vida requer na sua decência.


O silêncio respeitador
. É o silêncio diante de alguém que está a dormir, a sofrer e sobretudo a morrer. Nunca esquecerei as palavras do cardeal P. Veuillot, arcebispo de Paris, que morreu jovem, aos padres: “Quando fordes ao hospital ver alguém, não vades com discursos na tentativa de uma conversão..., não.  Sentai-vos em silêncio e dai-lhes a mão.”


O silêncio sossegado
. Numa praia serenamente deitados numa toalha sobre a areia, apanhando sol e embalados pelo rumor sereno das ondas do mar.


O silêncio cuidadoso
. As mulheres são acusadas de terem dificuldade em estar caladas. Talvez isso provenha de um facto criado pela evolução, que deixou uma marca orgânico-cerebral (área de Broca). Os homens iam caçar e tinham de manter um silêncio cuidadoso para não espantar a caça enquanto as mulheres ficavam em casa e tinham de estimular os bebés para a fala.  


O silêncio da preparação
. São João Baptista preparou-se no deserto. Antes da vida pública, Jesus também foi para o deserto ouvir o silêncio e preparar-se para levar o Evangelho ao mundo. São Paulo fez o mesmo. Sócrates, o filósofo grego, escutava o seu daímon, a voz interior, a consciência...


O silêncio interrogativamente  orante
. Até Jesus sentiu esse silêncio. No extremo limite do sofrimento da cruz, rezou: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?” Mas, aparentemente, Deus manteve-se em silêncio.  Perante tantos horrores ao longo da História — um exemplo de agora: aquela guerra da Ucrânia e os gritos das mães e das crianças e do desabar de aldeias e cidades —, o impenetrável silêncio de Deus deixa-nos em silêncio, numa oração em silêncio, porque, como me disse uma vez Eduardo Lourenço, cuja centenário estamos a celebrar: “Não se admire. Todos os homens rezam.” Cá está: de um lado, o misterioso silêncio de Deus e do nosso lado, o silêncio da interrogação orante.


O silêncio da advertência
. Ao saber que Jesus era galileu, da jurisdição de Herodes, “Pilatos enviou-o a Herodes, que também se encontrava em Jerusalém nesses dias. Ao ver Jesus, Herodes ficou extremamente satisfeito, pois havia bastante tempo que o queria ver, devido ao que ouvia dizer dele, esperando que fizesse algum milagre na sua presença. Fez-lhe muitas perguntas, mas Ele nada respondeu. Os sumos sacerdotes e os doutores da Lei, que lá estavam, acusavam-no com veemência. Herodes, com os seus oficiais, tratou-o com desprezo e, por troça, mandou-o cobrir com uma capa vistosa, enviando-o de novo a Pilatos. Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois eram inimigos um do outro.” Jesus não respondeu, manteve silêncio, pois Herodes não estava interessado no que Jesus tinha realmente para lhe dizer. Há situações nas quais é preferível não responder, na esperança de que a pessoa atingida reflicta...


O silêncio comovedoramente comovido
de uma multidão a acenar os lenços da despedida em Fátima...


B.3. Há os silêncios da exultação.


Quando ouvimos uma grande orquestra, fazemo-lo em silêncio. Um silêncio exultante: a música é o divino no mundo. Aconteceu-me várias vezes, mas sobretudo uma vez, quando ouvi a Nona Sinfonia de Beethoven pela Orquestra Filarmónica de Berlim. Quando saí, continuei num silêncio exultante, incapaz de falar. Quando visito um grande museu, vou contemplando em silêncio, vagarosamente absorvido por tudo quanto ali me fala ao mais fundo de mim em silêncio,  e, no final, ao sair, é como se despertasse tendo voltado ao quotidiano, ao tempo e ao espaço profano (no sentido etimológico de profanum: diante do sagrado).


O silêncio avassalador
. Aí está o silêncio avassalador do cosmos, que, segundo os pitagóricos, é uma gigantesca sinfonia para a qual não temos ouvidos. Ah! O silêncio do céu estrelado! Ah! e o do pôr-do-sol no mar!  Momentos, daqueles sobre os quais disse Goethe: “Pára, és tão belo!”, a eternidade no tempo. Ah! E o silêncio estrondoso de uma grande biblioteca em silêncio solene... Ah! e o silêncio do amor e no amor...


C. Urgência da cultura da pausa e do silêncio.
Trata-se do silêncio essencial. Já Pascal se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não serem capazes de permanecer em repouso num quarto.” Hoje é pior. Concretamente, numa sociedade como a nossa, quando predomina o barulho infernal — assembleias, televisões, comentários de comentários, todos a falar e ninguém a ouvir —, a vertigem da corrida, do stress e do atropelo numa confusão de imagens e da fúria consumista, na pura imediatidade, exterioridade e esquecimento de si, no dedar constante em busca da última novidade, da vertigem da banalidade, do parecer e do aparecer, é urgente fazer o elogio do silêncio, para ouvir a voz da consciência, fazer apelo à cultura da pausa, para não perder o essencial, para dar conta do milagre que é viver e não se afundar na dispersão de si e na insensatez sem fim. Para se viver e não ser pura e simplesmente vivido.


No meio do ruído infernal, chama-se cultura da pausa, como diz o jesuíta Juan Masiá, à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, às margens numa folha escrita ou num quadro, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar, para ouvir o silêncio e contemplar. (Continua). 


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de julho de 2023

SOBRE O SILÊNCIO: HÁ MUITOS SILÊNCIOS. 1

  


Numa conferência sobre o silêncio, comecei por pedir um minuto de silêncio. E em silêncio perguntei-me como é que os participantes — este, aquela — terão ocupado esse minuto. A pergunta coloca-se aliás em relação a todos os minutos de silêncio pedidos em diversas circunstâncias. Sim, como se ocupa esse minuto de silêncio? Evidentemente, vai depender também das circunstâncias e de quem pede esse minuto.


Afinal — e isso é decisivo —,  há muitos tipos de silêncio. Logo de início, é essencial entender que há os maus silêncios, alguns abomináveis, que é preciso exorcizar; depois, aqueles que a vida nos traz: uns impostos por situações dramáticas, outros, silêncios da decência humana, outros ainda, silêncios abençoados,, que nos vêm ao encontro na exultação da vida; impõe-se, em terceiro lugar, reflectir sobre uma cultura da pausa e do silêncio e ouvir o silêncio, se quisermos ser verdadeiramente humanos e não perder o essencial.


A. Comecemos pelos primeiros, os maus silêncios.
Só exemplos.


O silêncio faltoso
ou mesmo pecador. Quando, na confissão, as pessoas me pediram ou pedem para fazer perguntas, a única pergunta que fiz ou faço é: “Há alguém com quem não fala?”. Negar a palavra a alguém, ao menos uma saudação, um “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, é uma forma de agressão. Tradicionalmente, até se usava uma expressão bela: para saudação, dizia-se “salvar” alguém, de tal modo que a pessoa que não foi saudada sentia-se tão magoada que dizia ou diz: “Imagine: nem me deu a salvação, essa pessoa não me salva”, e isso equivale a: “trata-me como se eu fosse um ninguém”.


Como é uma falta não pegar ao menos no telefone e dirigir uma palavra de saudação, de conforto, de solidariedade, a alguém que está na solidão, uma solidão que pode ser mortal. Como é mortal o silêncio que “ouvimos” num restaurante, por exemplo, com pais e filhos todos a dedar e sem uma palavra entre eles... 


O silêncio mortalmente cobarde
. Tantos que deviam uma palavra de explicação para o mal feito, mas abotoam-se no silêncio. A todos os níveis. Nem uma palavra de desculpa... E era obrigatório denunciar as injustiças, repor a verdade, mas isso não foi, não é, feito por medo e cobardia..., silêncio criminoso. Que dizer do silêncio e do encobrimento dos abusos sexuais do clero...


O silêncio indelicado, egoísta
. Não houve, não há, uma palavra de gratidão por um favor, uma atenção, uma delicadeza. Por ocasião de uma festa, num aniversário, no meio de um pesar, pessoal ou familiar, não há a lembrança de uma palavra.


O silêncio amuado
. O miúdo ou até já não miúdo, que amua, senta-se a um canto em silêncio torcido.


O silêncio manhoso
. Alguém poderia obter uma vantagem para a sua vida. Isso não aconteceu, por causa do silêncio invejoso de alguém.


O silêncio irresponsável
. Pessoas caíram na vida, porque alguém fez silêncio, não avisou.


O silêncio ignorante
. Alguém devia responder, saber para formar, mas não responde, não forma, porque não sabe, é culpadamente ignorante.


B.1. Passamos aos silêncio que a vida traz, na sua dramaticidade.


O silêncio aterrado
. Perante a iminência de um desastre brutal e inevitável..., a acontecer, não há tempo para palavras, fica-se em silêncio. Estava com uns amigos, quando surgiu a notícia: em França, um homem atacou com uma faca quatro crianças. Ficámos estarrecidos, em silêncio, não há palavras...


O silêncio recolhido
. Perante a morte, sobretudo inesperada, de alguém muito, muito querido, muito querida..., no encontro com familiares e amigos, só restam um abraço, muito, muito apertadamente afectuoso, e um rosto em lágrimas. Na morte, somos remetidos para o silêncio, o silêncio que ela mesma constitui — o que dizemos exactamente, quando dizemos que alguém morreu?  E aí está, do seu lado e do nosso lado, o silêncio fundo, misterioso, inabarcável, de um cemitério. O cemitério está num silêncio sepulcral e toda a nossa tagarelice,  mesmo quando se é “uma picareta falante”, cai no silêncio.


O silêncio de chumbo
. Perante certas catástrofes e alguns funerais, faz-se “um silêncio de chumbo”.


B.2. Silêncios que a vida requer na sua decência.


O silêncio imposto
. Uma autoridade  (o pai, a mãe, um professor...) manda calar e faz-se imperativamente silêncio.


O silêncio obrigatório
. O segredo da confissão, por exemplo, é inviolável e tem de ser mantido em silêncio. Também há o segredo de justiça. A propósito: a quantas pessoas confiaria um segredo?


O silêncio secreto
. Ai! Se tantos silêncios apenas balbuciados  por cada um, cada uma saíssem do silêncio!...


O duplo silêncio da admiração positiva
. No mausoléu de Immanuel Kant na antiga  Königsberg, Prússia oriental, actual Kaliningrado, um enclave russo, encontra-se uma placa com  o seu texto célebre, que diz o duplo silêncio: o silêncio admirativo e o silêncio imperativo da consciência que grita: “Duas coisas enchem o ânimo de uma admiração e de uma veneração sempre novas e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.”   


O silêncio do espanto perturbado
. Afirmando-se o ser humano animal racional, o que dizer perante o aumento crescente de armamento, incluindo o nuclear, de tal modo que a Humanidade corre cada vez mais o risco de pôr fim a si própria, num suicídio colectivo? 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de junho de 2023

OUVIR O SILÊNCIO. VER O INVISÍVEL

 

1. Há perguntas ingénuas que parece quase tocarem o ridículo. No entanto, são das mais interessantes.


Exemplos: Onde começa um ser humano? Começar, não apenas no sentido cronológico, mas quase diria topográfico... Em que instante começou um ser humano? Aliás, a pergunta do início é similar à do fim: Que instante é esse em que um ser humano deixa, pela morte, de pertencer a este mundo e ao tempo? No tal sentido quase topográfico, a pergunta poderia assumir a seguinte formulação: O que é que um ser humano vê, quando olha, não os olhos, mas o olhar de alguém? Hegel disse  que vê o abismo do mundo. Se estivermos atentos, é isso: quando dois olhares se olham no olhar contemplam o abismo do mundo e o seu mistério.


A pergunta pode explicitar-se, perguntando: O que é que está por detrás e no íntimo e no fundo do que se vê? O que é o invisível do visível? Ou então: O que é que o visível torna visível? Melhor: O que é que o visível, precisamente ao mostrar, esconde? O que é que está na raiz do que vem à luz, do que se manifesta?


Onde é que radica qualquer pergunta digna desse nome senão aí onde habita o imostrável, mas precisamente para mostrá-lo enquanto imostrável? O que é que um rosto mostra senão alguém que está a vir à janela de si próprio, ocultando-se?


Afinal, o que vem à luz acende-se na noite... E as nossas palavras, onde é que se acendem também senão precisamente na noite do Silêncio? Mas há o silêncio morto e vazio, e o Silêncio habitado, que fala. E ouvir o Silêncio que fala não é o que propriamente se deveria chamar oração?


Quando não se ouve o Silêncio que fala, as nossas tempestades de palavras não passam de verborreia e barulho caótico, ensurdecedor. De facto, quem não bebe na fonte do Silêncio que fala, o que é que diz, quando fala? Não quero apontar para os parlamentos...


Não será precisamente porque já não há tempo para ouvir o Silêncio que os pais pouco ou nada têm a dizer aos filhos, que a palavra dos professores anda gasta e murcha, que os padres proferem palavras engasgadas e mortas, que a vida pública se vai tornando pura poluição sonora?


2. De repente, tropecei no título da rádio TSF: Como se visse o invisível. É isso: o ser humano anda distraído, mas pode acontecer que subitamente se dê conta. Aliás, o homem é homem, diferente do animal, precisamente porque não vive estando aí pura e simplesmente, mas se dá conta de que vive, reflecte sobre as coisas, sobre a existência, sobre si próprio.


Como se visse o invisível... Afinal, como é? Trata-se de um simples "como se" ou vê-se mesmo o invisível? E se se vê, que invisível é esse? E como é que se vê o que é invisível? E esse ver é privilégio de alguns ou todos podem vê-lo? Ou acontece até que todos o vêem, simplesmente não se dão conta disso?


Quem ouve como se visse o invisível não espera ouvir dizer que alguém viu Nossa Senhora ou bruxas ou o diabo ou um anjo aí numa esquina qualquer, numa igreja, numa esplanada, no cimo de um monte... Mas então quem fala em Como se vissse o invisível o que é que viu de especial para ousar falar do invisível, como se o tivesse realmente visto? Afinal, o que é que ele ou ela viu ou vê?


Quando não andamos completamente distraídos, sabemos que vemos sempre mais do que aquilo que julgamos ver, ouvimos sempre mais do que pensamos ouvir, pensamos sempre mais do que pensamos. Toda a experiência é sempre experiência com experiências. Seja qual for a esperiência, sabemos dela, de nós e das condições de possibilidade do experienciar. Quando vemos algo, não vemos apenas esse algo que estamos a ver, pois vemo-nos também a nós que estamos a ver, embora não tenhamos imediatamente consciência disso. Por outro lado, por mais que vejamos de nós, nunca nos vemos completamente: somos sempre mais do que vemos de nós ou sabemos de nós. Nunca conseguimos ir até ao fundo de nós, tornar-nos completamente transparentes a nós próprios.


O olho vê o que vê, mas nunca se vê a si mesmo; sabemos, no entanto, que está lá. Como dizem os Vedas, livros sagrados dos Hindus, "o que vê não pode ser visto; o que ouve não pode ser ouvido; e o que pensa não pode ser pensado". O mais fundo de nós nunca pode vir à consciência, é, por sua própria natureza, invisível. Quando demos por nós já lá estávamos, e a existência nunca pode ser reflectida adequadamente nem tornar-se plenamente consciente de si própria. Assim, quando nos vemos é sempre com o invisível que contactamos.


Antes da execução, aos condenados à morte vendam-lhes os olhos, porque o olhar da vítima é intolerável. Afinal, quando vemos alguém no olhar o que é que vemos senão o invisível na sua visibilidade, mas precisamente de tal modo que permanece invisível? Uma pessoa no seu corpo, melhor, um corpo pessoal não é simplesmente uma estrutura fisiológica visível: ninguém faz amor com uma estrutura orgânica visível, mas ama-se uma pessoa na sua invisibilidade palpável e visível. Um corpo humano é uma "alma" visível e vista, cheirada, palpável...


Quando olhamos para o mundo com olhos de ver é sempre com o invisível visível que entramos em contacto. A realidade toda é a visita do invisível. Na raiz de tudo está um mistério que se diz, que vem à luz, mas que ao mesmo tempo continua velado e sem se ver: vê-se precisamente como invisível.


Como se visse o invisível: apontamentos para chamar a atenção para o mistério do ser, para a dignidade de ser homem, para a justiça, para a religação última à fonte invisível de tudo o que se vê...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 de novembro de 2021

CRÓNICA DA CULTURA

O pio do silêncio


E estar velho é sentir que se vive uma intensidade do saber e do não-saber para o qual se deseja tempo e ar puro na Natureza e nas ideias e em todos os convívios dos afetos em consciência comum da missão do amor

e estar velho é desejar o vento das tardes, o das casas, o do mar, o dos pássaros e que o cavalo de madeira seja agora de carne e de conclusão em vida do sonho que transportou

e estar velho é sentir que esta pandemia nos faz ficar no defeso, como sítio de folhas sem retorno onde se demora a claridade e apressa o desconhecimento aos nossos espelhos

e se estar velho é não aceitar este tempo assalariado de uma existência rígida, espaço intercalar e jamais, jamais paisagem, quando nunca nos bastou o ver e o rever

então sistematizemos os dados destes excessos de visões mínimas que nos fixam irónicas e eis 

como até vivemos numa desordem de muitas inexistências e só não somos antipoéticos porque enviamos barcos uns aos outros numa antevisão órfica

nós

o bloco dos dissidentes robustos contra as formigas que afinal nos devolvem Camões a um outro destino

quando o silêncio é o imenso pio qual nova proposta da vida

turmalina

que só pertence a uma ave que o esclarece e nos visita.

 

 Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

50. CAMINHAR E MEDITAR EM SILÊNCIO

 

Caminhar e meditar em silêncio são exercícios de resistência.
O inverso do espírito de competição, num tempo dominado pelo ruído, em que a filosofia de vida predominante é a do mundo de negócios.
Caminhar e meditar em silêncio é terapêutico.
Uma cura, um remédio, um ansiolítico natural que recompensa.
É viajar com a mente, pensando enquanto se caminha.
Trabalhar com a mente, enquanto se anda a pé.
Viver o corpo, enquanto se caminha e medita.
A mente a trabalhar e a cooperar com as pernas.
É humanizar a vida.
Simbolicamente é uma aventura, um passeio palpável e intangível, uma experiência de aprendizagem, cognitiva e de procura do silêncio, desfrutando-o.
O nosso mundo mais próximo, que nos rodeia, é apreciado, explorado e festejado.
Abrimos os olhos e achamos a beleza onde não diríamos estar.
É respirar e sentir a paz.
Dialogar com o tempo e o espaço.
Ter paciência, sem pressa, pois o mal da pressa apressa tudo.
Arrumam-se ideias, obrigações, compromissos, conhece-se o pormenor do percurso, o nome das ruas e seus desvios.
É passear ao longo da praia, apreciada e sentida de manhã cedo, ouvindo o oceano, molhando os pés, apanhando conchas, vendo as gaivotas e o mar a enrolar na areia.
Saboreia-se e disfruta-se a natureza.
Degustamos a memória do tempo passado, o presente das coisas, a espera e o sonho das coisas futuras.
Purifica-nos a contemplação e o sentir do silêncio que nos falta.
Interrogamo-nos sobre nós próprios e os outros.
Sensibilizam-nos pormenores da paisagem que usualmente não vemos.
Ocioso, para muitos, apoiando-se na teoria de vida dominante, que concebe a existência como uma luta, na qual só é devido respeito ao vencedor.
Vive-se o corpo e a mente, cada um está mais perto de si, dada a intimidade, introspeção e concentração do caminhar e meditar em silêncio, sociabilizando mentalmente com outros.
Um prazer físico, espiritual, frugal e tranquilo.

 

08.05.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

O silêncio é de oiro

 

Ó menina não me faça perguntas, tire lá daqui o microfone, não insista. E lá volta ela

 

O que é que eu sou? Sou um homem sem opiniões daquelas que a menina gosta de ouvir e depois passa na televisão e foi o seu programa ou lá o que seja. Não é?

Se não tenho opinião sobre nada? Pronto, então vamos lá a ver: até tenho. Olhe tenho-as fresquinhas todos os dias pois troco-as com as minhas vacas quando as levo ao monte ou a dar-lhes de beber ou a levá-las a dormir ou quando as acordo. Quer saber? Não quer saber? Mas eu digo

 

A minha opinião de hoje - aquela fresquinha que troquei com a Eulália, esta vaca que aqui vê e que me dá grandes alegrias pelo leite que faz meu pão - foi a seguinte

 

A minha vaca não quer ser europeia e eu também não quero que ela seja. Está no seu direito, ou não? E eu também, ou não? Ela é corajosa mesmo quase calada. É tão corajosa como eu quando digo com firmeza à menina que é precisa coragem para não ter opiniões. A menina consegue? Ah! pois é, até fica muda. Mas olhe, que se conseguir não ter opiniões, ou, tê-las frescas como a minha Eulália me ensina, olhe que no seu caso, se for capaz, ainda vai parar a um cargo bom. Aqui ou na Europa. Sou eu que lho digo. Mas olhe que é preciso que esteja muito tempo caladinha e não pergunte o que não quer ouvir.

 

Ainda há uns dias voltei a lembrar-me que o silêncio é de oiro. Ora veja o preço dele aqui em Ponte de Lima. Mas viu, viu, como já lhe respondi, já não consigo ser rico proximamente. Temos que falar para dentro e por isso eu não lhe queria dizer nada, já que, acredite, a maioria das vezes não tenho opinião e acho que até é bom para o país que não exista mais um palavroso. Entende? E muito menos que fale também em nome de outro, neste caso outra, como foi o caso da minha Eulália. Prometi-lhe e agora descaí-me com a opinião dela também.

 

Pois com licença, cá vou à vida que já pequei e que a sua já está feita, ao menos por hoje.

 

Eulália? Tens a certeza que tens sede? Ou é só para conversar? Pronto a tua mãe vai connosco também. O que é um rumo? Olha é eu andar ao teu passo e aguardar há anos consulta para a dor nas cruzes. Pensa bem, tens opinião sobre quem quer ser um de nós?

 

Pois. Eu também fui sempre assim, como sabes. Seria bom que, por uma vez…

 

Pois.

 

Teresa Bracinha Vieira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Lembro-me de que quando fiz os exames do nosso "7º ano do liceu", como então se dizia, para a "média" das classificações das provas escritas também contribuiu a "nota alta" que me foi dada a "História", no liceu Passos Manuel, onde me apresentara a exame, vindo do Colégio de Clenardo, de padres e privado. Recordo a efeméride, porque a minha dissertação escrita incidira e se concentrara sobre a importância histórica da descoberta do caminho marítimo para a Índia, com forte insistência na consideração de objetivos estratégicos (económicos, políticos e religiosos) e no seu confronto real com outros povos e culturas. Era certamente entusiástica e - pelo menos assim sentipensei - talvez bem fundamentada, para me merecer a recompensa. Quarenta anos depois, em 1998, quando acompanhei a visita do príncipe herdeiro do Japão à EXPO de Lisboa, mais, talvez, do que na lembrança de Portugal no pavilhão nipónico, reparei na referência que "nos" fazia, logo à entrada do seu pavilhão, a União Indiana: resumindo, explicava que o eldorado que os europeus procuravam se encontrava na Índia, e o caminho para lá fora descoberto pelos portugueses. O novo mundo de Cristóvão Colombo fora engano. Por muito que tal pudesse festejar o ego tão carente da cultura portuguesa tradicional - que, aliás, neste particular não distingue monárquicos de republicanos, nem "fascistas" de comunistas - a representação oficial da União Indiana procurava aqui, sobretudo e aproveitando uma exposição em Portugal, tornar-se centro de atenções... E agradar aos indígenas (nós, claro!)

 

   O que, francamente, tampouco deixou indiferente o meu próprio "brio patriótico"... Mas também me levou a refletir e me interrogar - era residente no Japão - sobre a perceção corrente (a tal que é comum e quotidiana) que a gente nipónica tem de "nós", comparando-a, ainda, com a versão dela que nos é proposta pelo nosso amor próprio. Falei muitas vezes, em charlas e círculos restritos, da evolução do meu pensarsentir sobre o assunto. Hoje, pela primeira vez, e para ti, escrevo sobre a questão.  É, com os pés no chão, uma lembrança de coisas que li, vi, ouvi e registei in loco. Como sabes, não sou mitómano...

 

   Em todas as escolas japonesas se aprende, logo nas primeiras classes de história, que Vasco da Gama descobriu o caminho marítimo para a Índia, que náufragos portugueses foram os primeiros europeus a arribar ao Japão, onde introduziram o teppo, ou arcabuz, creio, e que Francisco Xavier foi ali o primeiro missionário cristão, chegado seis ou sete anos depois. [Também todos nós, na escola primária, Princesa, ouvimos falar de Viriato...] Hoje, a esmagadora maioria dos japoneses pouco ou nada sabe de Portugal, e os que em nós pensam podem ser classificados em dois grupos: aqueles que, ao acaso de encontros ou por tradição familiar ou outra, são amigos de Portugal, podendo até participar e animar (secundários) departamentos de "português" em universidades locais (pouquíssimas e, aliás, hoje mais orientadas pela relação muito mais estreita com as comunidades nipo-brasileiras (o Brasil foi importante destino da emigração japonesa) ou, ainda, grupos, clubes, associações de amizade, etc.; e os que, quanto mais privam connosco, tanto mais à vontade nos dizem que se sentem por vezes menores   por se apontar como primeira gente curiosa do ocidente por eles um ínfimo e pobríssimo povo europeu... Claro que há outros interesses japoneses em Portugal, e é sobretudo comovente a simpatia dos pequenos núcleos que celebram amizade connosco. Mas somos, naquele oceano, uma gotinha de água - e qualquer português que lá tenha vivido uns anos sabe do que falo. Nas visitas oficiais, o tema do primado da chegada e contactos dos portugueses, claro está, é sempre recordado... quiçá porque nada mais há para invocar. [Já noutro registo, ocorre-me, Princesa, uma crónica publicada na revista Flama, nos anos 50 (cujo título era Lágrimas de Crocodilo...seria?... e o autor Joaquim Silva Pinto, já não me lembro...) que perguntava, com ironia: O que é que os estrangeiros pensarão de nós? Ainda temos o mesmo tique, basta passar os olhos pelos nossos jornais ou um distraído ouvido pelos debates políticos...] Facto é que nem o conhecimento do Portugal atual, nem a curiosidade pelos portugueses de hoje são comparáveis ao maravilhado encanto que, no século XVI, os nanban, ou bárbaros do sul despertaram nas gentes do arquipélago nipónico. Alguns saborosos exemplos dessa atração vêm apontados no capítulo Os Nanban do meu Fomos em busca do Japão... Mesmo os vocábulos de origem portuguesa que, naquele tempo, diziam, na fala japonesa, as coisas que eles antes não conheciam (gibão, capa, botão, vidro, copo, etc.) caíram em desuso e foram substituídos por anglicismos. Ficaram as palavras da doutrina e da liturgia cristã católica (Deus, Maria, missa, etc.), aliás de origem luso-latina: a língua da religião, na altura, era, como sabes, o latim. Dito isto, é sempre com indestrutível carinho e admiração que recordo o século cristão (o "nosso" século) no Japão. Sabendo hoje que também ganharei dele um melhor entendimento, se o considerar como um período importante, a vários títulos, da história dos japoneses, e não sobretudo como saudosa épica glória "nossa"... 

 

   Eu mesmo já inocentemente disse que Silêncio, o livro mais célebre de Shusaku Endo, era um romance histórico. Queria só lembrar que todo esse drama é situado num passado distante, mas tive logo o cuidado de chamar a atenção para o propósito do autor, que poderia ter escolhido outro cenário. Depois de tanto escarcéu à volta do filme com o mesmo título, sinto-me na obrigação de sublinhar que não, não é um romance histórico - muito menos no sentido lusocêntrico de exaltação das nossas primazias e glórias - e já expliquei porquê. E até a personagem principal, o padre Cristóvão Ferreira, eminência parda na tramoia dos factos relatados e inventados, está, afinal, perenemente presente, é ela a metáfora da luta, no coração do homem, entre as opções possíveis da fraqueza humana e a misericórdia de Deus... O romancista, trata-o, aliás, com compassiva simpatia, ao ponto de achar um desfecho, uma "explicação" da apostasia que os documentos históricos não corroboram. Cito o padre Francis Mathy, s.j., da Universidade Sophia, Tokyo, sobre o padre Cristóvão Ferreira (1580-1650): Em 1632 foi feito Provincial do Japão e, portanto superior de todos os jesuítas que ali trabalhavam. O relatório anual do estado da missão foi escrito por ele em 1628, 1629, 1630 e 1631; todos estão ainda conservados nos arquivos romanos. O último é especialmente interessante por dar longa e vívida conta dos mártires em Unzen. Em 1636 foi capturado e submetido à tortura da fossa, tendo subsequentemente apostatado. Foi-lhe dado o nome de um criminoso executado, Sawano Chuan, mais a mulher e o filho deste, e juntou-se aos seus antigos perseguidores na sua inquisição. Em 1636 escreveu o livro "Kengiroku" (Uma Clara Exposição da Falsa Doutrina), um rigoroso ataque cerrado ao Cristianismo. Também traduziu para japonês vários tratados ocidentais de medicina e astronomia. Anos mais tarde, o seu nome aparece em vários julgamentos a que foram levados cristãos. Por exemplo, estava no tribunal de Edo, em 1639, que condenou à morte o padre Kibe, jesuíta japonês. Este, nos seus momentos derradeiros, exortou zelosamente Ferreira a voltar à prática da sua fé.

 

   Mas sem resultado, porque Ferreira parece ter morrido sem arrependimento em 1650. No drama teatral sobre o mesmo tema da apostasia de Cristóvão Ferreira, a peça Ogon no Kuni (O País do Ouro), o padre pisa o fumi-e para poupar, não só a sua vida, mas a de outros cristãos, acreditando que a voz de Cristo assim lhe ordena. Outro apóstata, Inoué, um perseguidor japonês que foi cristão e abjurou por ter concluído que o cristianismo não é adaptável ao Japão, dirá a Ferreira, na última cena da peça: Indo direito ao assunto, não foi por mim que foste vencido, mas por este pântano chamado Japão... Mas a última voz a ouvir-se, antes do cair do pano, será a de Hirata Shunzen, adjunto de Inoué: Quatro padres cristãos acabam de desembarcar em Amami O-shima. Chegaram num barquito remado por chineses e conseguiram desembarcar a coberto da noite. Dizem que, em Silêncio, é vencedor o pântano, enquanto que, em O País do Ouro, esse novo Judas que se chama Cristóvão parece ter feito da sua queda um sacrifício reparador, ele mesmo que confessa já não ser português, nem poder vir a ser japonês, nem cristão, nem opositor de cristãos. Sou um cadáver vivo. As reações de leitores e críticos ao romance de Endo terão encontrado mais simpatizantes no ocidente do que no próprio Japão. Tal pode explicar-se pelas circunstâncias culturais de uns e de outros. Já em 1969, no seu prefácio à primeira versão inglesa de Silêncio, o tradutor, William Jonhston, da Universidade Sophia, afirmava que o problema central que preocupou o Sr. Endo desde os primeiros dias é o conflito entre Oriente e Ocidente, especialmente na sua relação com o cristianismo... Já me referi a isso várias vezes no passado, incluindo em considerações sobre o carácter estrangeiro do cristianismo, no meu Fomos em Busca do Japão. Voltarei ao tema em próxima carta, pois continuo a pensar que, mais do que religioso - mesmo tendo "facilitadores" culturais - o processo de perseguição do cristianismo no Japão foi eminentemente político. Mas hoje quero só citar-te mais um passo do prefácio do jesuíta Francis Mathy à sua versão inglesa do Ogon no Kuni: A ação de "O País do Ouro" centra-se sobre a tensão existente entre o cristianismo e o "pântano", uma tensão que, antes do mais, está no próprio Endo. Na novela "Silêncio" é o pântano que vence. Não acontece assim na peça, escrita pouco depois. A impressão que envolve a peça e mais tempo permanece com o espectador é a da coragem, nobreza e amor dos mártires. Contra essa imagem concreta, a abstrata tese de Inoué é impotente. Todavia, tanto a novela como a peça sublinham com força o trabalho que ainda é necessário fazer para modelar o cristianismo essencial numa forma que vá tocar nas cordas do coração japonês e liberte o seu amor e ação. Um cristianismo que permaneça um credo abstrato ou uma lista de obrigações jurídicas, de faças e não faças, nunca sobreviverá no pântano. Contudo, isto não é basicamente um problema de Oriente e Ocidente, mas de qualquer motivação humana, independentemente das culturas. Concordo inteiramente: já não me lembro de quando e onde escrevi um dia que o pântano de Shusaku Endo é uma metáfora não necessariamente negativa, nem pessimista: apenas quer exprimir a dialética interior própria a qualquer conversão. Por isso a escrita de Endo é sempre desafiante e controversa... É, por outro lado, ridículo e confrangedor alguém pretender que Silêncio é uma tentativa de justificação ou perdão da apostasia. O romance não é apologético, muito menos pretende ser teológico. É, em meu entender, e como já disse e repito, a narração metafórica da luta interior de qualquer de nós contra e pela sua fé... Além disso, também pensossinto - e tal, insisto, é eminentemente subjetivo - que a nossa relação com Deus se tende pela simultaneidade de uma presença com a sua própria distância. Assim, qualquer conversão é um caminho de saudade, um regresso.

 

   Como exemplo de outras reações nipónicas ao romance de Endo, transcrevo a do professor universitário Yanaibara, cristão japonês protestante, que - quiçá não compreendendo essa tensão interior de que falo - curiosamente faz ressaltar outro aspeto negligenciado da japonização do cristianismo, que vai desdramatizar a tal oposição oriente/ocidente e nos leva também a considerar a realidade histórica que foi terem sido muito maioritariamente japoneses as vítimas da perseguição. Facto que, aliás, Endo não escamoteia na sua própria ficção, onde, ao lado de apóstatas, a gente nipónica também surge com mártires seus. Mas escreveu Yanaibara no jornal Asahi Shinbum:

 

   Os mártires ouviram a voz de Cristo, mas para Ferreira e Rodrigues Deus estava silente. Não quer isto dizer que, desde o princípio, esses padres não tinham fé? Por essa razão, o combate de Rodrigues com Deus não é descrito... ...Obviamente, a crença de Inoué e Ferreira em que o Japão é um pântano que não pode absorver o cristianismo não é razão para apostasia. Foi por ter perdido a fé que Ferreira começou a pensar dessa maneira... ... Naquele século cristão, houve muitos japoneses que sinceramente acreditavam em Cristo, e há hoje muitos que também acreditam. Nenhum cristão acreditará que o cristianismo não pode criar raízes no Japão. Se os japoneses não podem compreender o cristianismo, como teria sido possível o Sr. Endo escrever tal romance? -  Este artigo foi publicado no Asahi, em japonês, em 1966, três anos antes da primeira tradução (para inglês) de Chinmoku (Silêncio).

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Com tanto alarido à volta do filme do Scorsese, Silêncio tem havido pouco. Nem tampouco ouço vozes que nos aproximem do drama dos cristãos japoneses, nem sequer de uma compreensão mais próxima do combate obsessivo de Endo Shusaku pelo entendimento da sua própria fé cristã. Este, tanto quanto possamos depreender de passos da sua obra literária, tem muito a ver com sentimentos de divisão e traição (ao pai ou à mãe), com solidão e separação (rasgões que experimentou através da companhia e deserção de animais domésticos) e, já no plano mais propriamente racional, cultural, filosófico e religioso, com o problema do mal, do pecado e da graça, da misericórdia de Deus. Começo por te referir um passo do romance Rio Profundo (Deep River, na versão inglesa, Le Fleuve Sacré, na francesa), em que Otsu, seminarista jesuíta japonês em Lyon, França, desabafa assim: Não posso perceber a diferença entre o que as pessoas de cá chamam o bem e o mal. Penso que no bem se esconde o mal, e vice versa. E aí intervém a magia de Deus. Até pode servir-se dos meus pecados para os transformar em salvação...   ... A Igreja considera-me herético. Corrigiram-me: "Não distingues claramente as coisas, tens de agir com mais discriminação. Deus não é assim". A pobre personagem quererá pensar num cristianismo que se coadune com a mentalidade japonesa. Eis um ponto fulcral para o entendimento, não só de atitudes e comportamentos de católicos japoneses perante os  estrangeiros (lembra-te do que eu já contei da minha experiência com a família católica dos meus senhorios em Tokyo ou das diligências que, enquanto Comissário Geral de Portugal na Exposição Universal de Aichi, fiz junto da hierarquia da Igreja em Nagoya) mas sobretudo da estranheza - para não dizer dificuldade de aceitação, desconfiança, ou mesmo aversão - que uma pregação rígida da ideia cristã pode causar nos japoneses. Já no século XVI, em debates entre missionários jesuítas e bonzos budistas, os japoneses interrogavam sobre se poderia ser infinitamente misericordioso um Deus omnipotente que, todavia, condena e castiga gente, mesmo até ao inferno eterno. Ou como poderia o mesmo Deus ser justo, ao pretender que há uma só religião verdadeira, quando, afinal, tanta e tanta gente nunca ouviu nem ouvirá a boa nova evangélica, do que não têm culpa. Nesse romance de Endo, Otsu afirma que estou persuadido de que o homem elege o seu Deus em função do seu local de nascimento, da sua cultura, das suas tradições e do seu ambiente. Os europeus escolheram o cristianismo porque assim o haviam feito os seus antepassados, e a cultura cristã era predominante no seu país. Não se pode dizer que os habitantes do Médio Oriente se tornaram muçulmanos, nem a maioria dos indianos hindus, após terem feito rigorosas comparações com outras religiões. Quanto a mim, foi a minha mãe e a sua particular influência que fizeram de mim o que sou. [Este passo é claramente autobiográfico, num romance em que Endo Shusaku se revê, ou descreve, sobretudo noutra personagem, Numada de seu nome]...   ..." Mas nunca pensaste que teres nascido numa certa família foi graças à bênção de Deus e ao seu amor?" - perguntou-me certo dia o meu diretor espiritual. "Sim, mas foi também graças à Sua bênção que aqueles que nasceram noutros lares acreditam noutras religiões... - responde Otsu/Endo.

 

   O tal Numada, como Endo ele-mesmo na vida real, passara a infância em Dalian, na Manchúria, que à época fora colonizada pelos japoneses. Ajudado por um jovem criado chinês - que seu pai mais tarde despediria - recupera da vadiagem das ruas um cão manchu, que criará e a quem chamará Negrão. Quando os pais se divorciam, na sequência do alcoolismo crónico do marido, Numada/Endo parte para o Japão com a mãe. E assim, depois de ter perdido Li, o criado amigo, terá de se separar de Negrão. Mais tarde, o menino já adulto nunca esquecerá o olhar de despedida do seu cão. Foi graças a ele e a Li que aprendeu o significado da palavra separação. Já casado e escritor conhecido, Numada adquire um estranho pássaro tropical, um calau. Este acabará por voar livremente no gabinete do romancista, que com ele conversa e o calau observa enquanto escreve. Quando a ave morre, a mulher de Numada, que muito discutia e protestava contra a sujidade que o bicho lhe fazia em casa, oferecer-lhe á outro pássaro diferente. Percebera que o marido era incapaz de explicar o seu desejo intenso de se religar a todos os seres vivos. A semente nele plantada pelo Negrão, na infância, tinha lentamente frutificado num mundo imaginário que ele só podia descrever através das histórias que contava. Aí, as crianças eram capazes de compreender o murmúrio das flores, as conversas das árvores, e até de ler os sinais trocados pelas abelhas entre elas, ou as formigas. Apenas um cão e um calau tinham compreendido a solidão que, já adulto, ele não conseguira dissipar... 

 

   Essa sentida solidão - em Endo autor e muitas das suas personagens - acaba sempre por ter uma proposta de companhia: a de Jesus. No romance Chinmoku (Silêncio), o padre apóstata ouve em confissão o renegado Kichijiro, que o traíra. Ambos haviam pisado o fumie, a imagem de Cristo. - "Senhor, ressenti o teu silêncio". - "Eu não estava silente. Sofri ao teu lado". Após a confissão secreta, Kichijiro chora mansamente e sai. E o livro termina assim: O padre tinha administrado o sacramento que só um padre pode administrar. Sem dúvida de que os seus colegas padres condenariam o seu ato porque sacrílego; mas mesmo que estivesse a traí-los, ele não traíra o seu Senhor. Amava-o agora de uma maneira diferente de dantes. Tudo o que ocorrera até agora fora necessário para o trazer a este amor. "Agora mesmo sou o último padre nesta terra. Mas Nosso Senhor não estava silencioso. Mesmo que estivesse calado, a minha vida até hoje teria falado dele". William Johnston, jesuíta da Universidade Sophia, em Tokyo, amigo e tradutor de Endo Susaku, escreve, a abrir um prefácio ao romance, algo que traduzo para ti:

 

   Shusaku Endo tem sido apelidado de Graham Greene japonês. Se com isso se quer dizer que ele é um romancista católico, que os seus livros são problemáticos e controversos, que a sua escrita é profundamente psicológica, que ele descreve a angústia da fé e a misericórdia de Deus - então é certamente verdade. Porque o senhor Endo chegou à ribalta do mundo literário japonês escrevendo sobre problemas que, a dado momento, pareciam longe deste país: problemas de fé e Deus, de pecado e traição, de martírio e apostasia.

 

   Sobre o pano de fundo desta história - que é o século cristão do Japão - já escrevi bastante. Mas talvez volte a escrever, em carta só para ti. Por hoje, basta lembrar-te de que, como já te disse, Silêncio não é um romance histórico, muito menos uma análise da missionação dos jesuítas no Japão dos séculos XVI-XVII. É um cenário e uma ficção para questões que o seu autor foi interrogando, sofrendo e meditando.


Camilo Maria  


Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

De 9 a 15 de janeiro de 2017.

 

O filme «Silêncio» de Martin Scorcese é baseado no enredo concebido por Shusaku Endo (1923-1996) sobre a memória da presença portuguesa e cristã no Japão. O livro foi publicado entre nós pela D. Quixote, com tradução de José David Antunes, e a sua temática insere-se na nossa riquíssima relação com o país do Sol Nascente.

 

CONHECIMENTO MÚTUO
Diz-me a experiência que os nipónicos conhecem melhor Portugal do que nós a eles. Não falo só dos muitos vocábulos portugueses usados no quotidiano (butan, kappa, koppu, pan ou tempura) ou do célebre pão-de-ló (kasutera, palavra que vem das claras em castelo), mas sobretudo de uma empatia muito especial, devida ao facto de os portugueses terem sido os primeiros ocidentais a chegarem a este distante arquipélago, habitado por guerreiros, mercadores e pescadores, abertos ao mundo. A arte Namban é um resultado deste encontro, provindo a designação do modo como os japoneses nos conheciam – Namban-jin significa bárbaros do sul… Por toda a parte no Japão, encontramos memórias do encontro com os portugueses – e Venceslau de Morais ou, nos nossos dias, José de Guimarães bem compreenderam esta riquíssima relação. De facto, há uma curiosa relação biunívoca entre os nossos povos. Shusaku Endo foi um grande admirador dos portugueses e amigo do Embaixador Martins Janeira. Nasceu em Tóquio, viveu a infância na Manchúria, tendo-se tornado católico aos doze anos, por influência da mãe, com quem viveu, depois desta se separar do pai, em Kobe. Licenciou-se em Literatura Francesa pela Universidade de Keio, tendo estudado na Europa, em Lyon. A sua obra é marcada pela pertença a uma religião minoritária e pela vivência de intensos e dramáticos dilemas morais e religiosos. Endo é muitas vezes comparado a Graham Greene, que tinha uma grande admiração pela obra do romancista. E Silêncio é considerado o seu livro de maior originalidade e intensidade e o mais significativo, tendo sido distinguido com o prestigioso Prémio Tanizaki (1966). Não esqueço o encontro em Quioto com os Padres Adelino Ascenso e José Tolentino Mendonça, para falarmos de Silêncio. O tema crucial era o da barreira cultural entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. O cristianismo nipónico é heterogéneo e surpreendente – os mártires coexistem com os cristãos escondidos, os que preferiram o testemunho público e os que mergulharam na sociedade, divididos entre as fidelidades do gesto e do princípio. A dúvida liga-se ao remorso. E Cristo representado no fumie, a pequena placa usada para consumar a apostasia, parecia dizer: “Podes pisar-me!”. Afinal, o mistério do silêncio está no centro desta reflexão, como ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima. Vem à lembrança a negação de Pedro, a pedra em que assentou a Igreja. Para o Padre Ascenso, a distância cultural torna-se mais forte que os julgamentos precipitados de traição. E António Alçada gostava de recordar a passagem da Peregrinação, em que Mestre Belchior e o rei do Bongo falavam da conversão deste último – em que ele dizia ser desnecessário qualquer gesto, já que Deus o sabia…

 

INTERPRETAÇÃO SOBRE A VIDA
O filme de Scorcese procura uma interpretação sobre a vida de um missionário no Japão no século XVII, em especial durante a dura perseguição, que durou quase um século. O caso que serve de base ao livro de Endo tem a ver com a apostasia do Padre Cristóvão Ferreira em 1633 – caso inédito até então. Perante as perseguições, houve necessidade de resistir. Daí que os jesuítas tenham assumido a exigência de algum tipo de acomodação cultural, como no caso dos ritos. No livro, tudo começa por um dado dramático: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus, Cristóvão Ferreira, submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos. Ocupava o cargo de superior provincial e era tido como um exemplo inspirador tanto de clérigos como de leigos”… As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata, onde se encontrava, revelavam uma grande determinação e coragem por parte do padre jesuíta. Essas missivas não faziam suspeitar ou prever qualquer negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo tornou-se violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos adotados para extirpar a influência cristã e ninguém estava em condições de prever o sentido e alcance das medidas. Silêncio trata das informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe sobre o que se tinha passado com o Padre Ferreira. O romance é constituído por cartas de Sebastião Rodrigues e por outras informações, que nos levam aos estranhos acontecimentos que conduziram à apostasia do mais proeminente dos missionários no Japão…

 

UM DRAMA HUMANO E RELIGIOSO
Cristóvão Ferreira é obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção limite em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses condenados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente também responsável. E neste ponto não pode deixar de se lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas, porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre por trinta dinheiros. Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? “Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes”. Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exatamente onde estão um e o outro. A pressão é máxima, desde a culpa à dúvida, do silêncio ao amor. A apostasia concretizava-se pisando a imagem de Cristo. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso ato de amor de que jamais alguém foi capaz”. Afinal: “Quando o padre assentou o pé no fumie nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”… O drama existencial é tratado magistralmente, não devendo apenas situar-se num momento histórico, projeta-se numa tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso.O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa (diz o romancista): que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado esse esforço! Todavia é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses”.

 


Guilherme d'Oliveira Martins

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