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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O TEATRO DE SÃO CARLOS EM 1875 VISTO POR JÚLIO CÉSAR MACHADO

 

Há anos, referimos um livro publicado em 1875, programaticamente intitulado “Os Theatros de Lisboa”. É seu autor Júlio César Machado, figura marcante na época e de certo modo ainda hoje. E, como então escrevemos, a edição é valorizada por cerca de 250 ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro. Fica tudo dito quanto à relevância cultural e editorial.

O livro concentra-se na evocação histórica mas sobretudo da época em foi escrito, aí como na flagrante atualidade e na abrangência cultural e documental, não obstante a seletividade das salas e dos artistas referidos. E isto porque Júlio César Machado concentra a sua evocação no Teatro de São Carlos, no Teatro de D. Maria II e no Teatro da Trindade.

São ainda hoje como bem sabemos, grandes referenciais da arquitetura e da arte do espetáculo em Lisboa e no país inteiro: mas obviamente não eram os únicos “teatros de Lisboa”, longe disso. Efetivamente, pela mesma época e mais ano menos ano, funcionavam outros teatros. Citamos não exaustivamente o Teatro Taborda, o Teatro da Rua dos Condes, Salão do Conservatório, o Teatro D. Augusto, o Teatro do Ginásio, o Teatro-Recreio Wittone, o Teatro Avenida, o Teatro das Laranjeiras e mais salas de maior ou menor relevância e durabilidade.

Mas muito embora: os três Teatros referidos no livro de Júlio César Machado eram na época os mais relevantes.

E como já escrevemos, acresce que as 250 ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro, que consagra na capa a grafia da época (Raphael) obviamente valorizam e de que maneira a edição. E isto porque as ilustrações são extremamente variadas, constituindo no seu conjunto uma ampla documentação do próprio teatro e dos teatros em geral.

Com efeito, no conjunto da escrita e das gravuras, o livro mostra-nos o que era o Teatro em Lisboa na sua perspetiva global e abrangente, mas com um distanciamento irónico. Vemos lá cenas de peças, mas também inúmeras evocações do público dos autores, dos atores.

E tudo com um distanciamento descritivo e gráfico e uma visão irónica da vida teatral da época, mas sem de modo algum menosprezar, em crítica direta ou implícita, as virtudes e as lacunas, as qualidades e os defeitos, do meio teatral, cultural, profissional e mesmo social da vida de Lisboa, representada e concentrada nos três principais Teatros.

No que respeita aos Teatros, tem-se em vista sobretudo as programações, mas também, um sentido crítico da função cultural respetiva.

Veremos agora as referências ao Teatro de São Carlos. E não haverá exemplo mais flagrante do que a primeira frase do livro, que abre a longa análise crítica ao Teatro, ao público aos artistas do São Carlos.

Diz com efeito, logo no início, Júlio César Machado:

“Serve só de inverno, como os capotes. E em se espalhando por todos os lados a melancolia do inverno aí abre ele! (…) soberbo, magnífico, e ao mesmo tempo sem cerimónia (…)

 É o teatro da corte mas pode, quem quiser, ir vestido para ali como para o quintal.

 Bom edifício.

Sala magnífica.

Artistas que têm, entre outras, uma prenda muito agradável para quem não é empresário, serem caríssimos.

Nos camarotes, na plateia, tudo gente conhecida”…

E segue-se uma descrição detalhada e irónica da atividade operística do Teatro de São Carlos, ilustrada com cerca de 45 gravuras de cenas, de público e de artistas, de elementos de apoio, desde maestros e compositores, cantores, mas também filas de espetadores, entusiasmados ou nitidamente aborrecidos…!

Reconheça-se que entretanto muito mudou: mas não tanto como seria desejável!

E voltaremos ao assunto.

DUARTE IVO CRUZ 

NO TRINDADE, HOMENAGEM A CARMEN DOLORES


Aqui temos referido o Teatro da Trindade na perspetiva tanto da qualidade arquitetónica como do notável historial nas artes do espetáculo que, desde a inauguração em 1867 mantem até hoje. Justifica-se então que se evoque essa tradição histórica, estética e arquitetónica, no contexto muito recente dos espetáculos que assinalam e homenageiam a carreira de Carmen Dolores, a partir da nova designação da sala principal do Teatro, agora chamada Sala Carmen Dolores.

 

Nada mais justo.

 

Em primeiro lugar, porque Carmen Dolores ali pela primeira vez enfrentou o público, curiosamente não em espetáculo teatral, mas na estreia em 1943, do “Amor de Perdição”, filme de António Lopes Ribeiro. Antes disso, recorda o programa agora distribuído na homenagem prestada no mesmo Teatro, teria atuado como declamadora na rádio. Mas foi no Trindade que pela primeira vez teve contacto com o público, mesmo que essa estreia tenha sido num filme...

 

E foi novamente no Trindade que Carmen Dolores enfrenta diretamente o público, agora na companhia denominada Os Comediantes de Lisboa, dirigida por Francisco Ribeiro, com textos exigentes: Giraudoux, Munoz Seca, Marcel Achard e outros.

 

E em 1951 junta-se ao Teatro Nacional de D. Maria II de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro: e aí participa em espetáculos a partir de dramas e comédias do grande repertório que incluiu autores portugueses como Alfredo Cortez ou Luis Francisco Rebello, o que na época seria de registar...

 

Cito a propósito, o que escrevi em 2005 no livro “Teatros de Portugal”:

 

“O Trindade serviu de abrigo a sucessivas companhias de qualidade, desde o Teatro de Arte de Lisboa ao TNP de Ribeirinho, que estreou “À Espera de Godot” de Beckett, da Nova Companhia de Declamação a Amélia Rey Colaço- Robles Monteiro e a Companhia Nacional de Teatro de Couto Viana e voltando atrás, a todos os grande nomes desde Ângela Pinto a Rosas e Brasão, a Palmira , a Vasco Santana e praticamente a todos mais” -  e  incluindo obviamente  Carmen Dolores.

 

Mas não só: encontramos Carmen em 1958/59 no Teatro Avenida então dirigido por Gino Saviotti, na Nova Companhia do Teatro de Sempre, novamente no Trindade com o Teatro Nacional Popular, e no Teatro Moderno de Lisboa, que funcionou no Cinema Império, e ainda na Casa da Comédia, no Teatro Aberto.

 

Paula Gomes de Magalhães escreveu um excelente texto publicado no âmbito das homenagens prestadas no Teatro Meridional e no Teatro da Trindade, a partir do texto de “Vozes Dentro de Mim”, da autoria da própria Carmen Dolores (2017), autora também de “Retrato Inacabado (1984) e de “No Palco da Memória” (2013).

 

E, a partir de “Vozes Dentro de Mim”, tivemos no Trindade, no âmbito das comemorações, um longo monólogo com notável interpretação de Natália Luiza e também notável dramaturgia e encenação de Diogo Infante.

 

DUARTE IVO CRUZ

O Teatro da Trindade de Buarcos: exemplo de descentralização

 

Temos aqui referido o Teatro da Trindade de Lisboa e, como bem sabemos, a sua estrutura arquitetónica, a sua tradição histórica, a sua brilhante atividade constituem exemplo marcante da atividade cultural, sobretudo nas artes da música e do teatro declamado: e aí justifica-se inclusive a evocação da Companhia Portuguesa de Ópera que tanto marcou a vida cultural e artística portuguesa.

 

Mas recuamos no tempo para lembrar que o Teatro da Trindade de Lisboa foi inaugurado em 1867, mantendo desde então e até hoje, como aqui temos amplamente referido e tornamos a referir, a arte e a cultura portuguesa.

 

E vale então a pena recordar que o Teatro da Trindade de Lisboa abriu ao público pela primeira vez em 30 de setembro de 1867. O projeto original, ainda amplamente reconhecível, deve-se ao arquiteto Miguel Evaristo de Lima Pinto: e apesar do Teatro de D. Maria II funcionar na época já há cerca de 20 anos, inaugurado que foi em 13 de abril de 1846 com o drama “O Magriço ou os Doze de Inglaterra” de Jacinto de Aguiar Loureiro; e de funcionarem já em Lisboa os Teatros do Salitre e da Rua dos Condes, ambos de finais do século XVIII.

 

E mais: antes deles, temos no Porto o então chamado Teatro do Corpo da Guarda, inaugurado em 13 de maio de 1762 e o Teatro Sá da Bandeira, este de 1874, então denominado Teatro do Príncipe Real. E o Teatro Baquet de 1859 ou, em Lisboa, o Coliseu dos Recreios de 1890: e tantos mais teatros, nos centros urbanos da época, para não falar no Teatro de São Carlos, que foi inaugurado em 13 de junho de 1793 e é, desde então e até hoje, o edifício de espetáculo mais relevante.

 

E já agora podemos referir o Teatro das Laranjeiras, edificado por João Pedro Quintela, 1º Conde de Farrobo, no que é hoje o Jardim Zoológico de Lisboa. O Teatro é inaugurado em 1825 e funcionou como teatro de ópera com a “originalidade” para a época de não se restringir ao repertório italiano: Farrobo, que estudou musica com Domingos Bomtempo, dirigiu a certa altura o Conservatório e introduziu, precisamente no Teatro das Laranjeiras, um repertório à época moderno.

 

De notar que este Teatro das Laranjeiras foi a primeira sala de espetáculo a introduzir um sistema de iluminação a gaz: isto, a partir de 1842, numa fase de restauro sob a traça de Francisco Lodi.

 

O Teatro arde em 9 de setembro de 1862:  e Farrobo, a caminho da ruina, não o reconstruiu.

 

E no entanto, na época, começava a praticar-se uma política de descentralização que conduziu à edificação de teatros um pouco por todo o país.  Na segundo metade do século XIX são já numerosos os exemplos dessa descentralização e interiorização. O exemplo que hoje aqui referimos ilustra bem a mudança cultural registada mesmo em localidades de bem menor dimensionamento e tradição cultural.

 

Trata-se do pequeno Teatro da Trindade de Buarcos, construído por iniciativa de um proprietário local, de seu nome Fernando Augusto Soares, o qual, regressado do Brasil onde enriqueceu, fez construir em 1910 um chamado Teatro da Trindade, não tanto como réplica do Teatro homónimo de Lisboa, mas como homenagem à sua própria mulher, de seu nome D. Maria da Trindade! João de Barros e Santana Dionísio referem-no no “Guia de Portugal”.

 

E o que aqui importa salientar é que este pequeno Teatro da Trindade  manteve-se em atividade até aos nossos dias. O Teatro, com os seus doze camarotes atrás de uma bela fachada neo-manuelina, não tem nada que ver com a sala de Lisboa mas constitui, isso sim, exemplo e modelo de uma notável expressão de arquitetura de espetáculo.

 

DUARTE IVO CRUZ

OS TEATROS DE LISBOA EM 1875 - III

 

O TEATRO DA TRINDADE

 

Temos aqui referido o livro de Júlio Cesar Machado, intitulado “Os Theatros de Lisboa”, com ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro e dedicado aos principais teatros de Lisboa, ou como tal considerados pelos autores dos textos e das ilustrações, a saber, o S. Carlos, o D. Maria e o Trindade, assim mesmo designados e ilustrados.  Referimos já os dois primeiros e hoje analisaremos o terceiro.

 

Como bem sabemos, o Teatro da Trindade era na época da edição o de mais recente atividade, pois estreou em 1867 e o livro é publicado em 1875, o que, nesse tempo seria considerado muitíssimo mais recente do que hoje...

 

Júlio César Machado assume essa “modernidade”. Escreve:

 

“Até hoje, não se sabe como e nunca poderá saber-se, mas a verdade obriga-nos a confessar que o teatro lá se aguenta como uma verdadeira novidade para Portugal, um teatro à francesa, uma bombonnière (sic) que alcançou, graças ao balcão, que enfim se pudesse admirar no teatro o vestuário das senhoras”.

 

E descreve o Teatro:

 

“De aspeto geral vistoso, elegante, conhece-se que se pensou em tudo, e até as cadeiras são de assento movediço. E chegaram a ter o que quer que fosse para segurar o chapéu, inovação adorável porque de todas as pequenas misérias que podem levar um homem de bem ao suicídio, não consta de outra mais irritante do que o embaraço que produz durante uma récita inteira este zabumbinha (sic) que uma pessoa ora põe ao peito, ora abaixo dos pés, e que apesar de todas as cautelas sai sempre o teatro amolgado, acochichado, arrepiado!” assim mesmo...

 

Fazemos esta transcrição porque nela encontramos como que um certo distanciamento irónico relativamente a um teatro na época muito moderno. E no entanto, a enumeração que Júlio César Machado faz em seguida dos elencos do Trindade, mesmo mantendo o tom irónico, confirma a qualidade e o prestígio que, logo nos primeiros anos de atividade, o Teatro da Trindade alcançou no meio social e artístico.

 

São nomes que na época constituíam o melhor o mais prestigioso elenco dos teatros portuguese. E os comentários de Júlio César Machado e as ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro amplamente documentam o prestígio que o Teatro da Trindade desde logo alcançou.

 

Rosa Damasceno, Ana Pereira, Delfina, Virgínia, Leoni, João Rosa, Augusto Rosa, Brazão, Cunha Moniz, formavam um elenco realmente prestigioso: e o que chegou até nós comprova esse prestígio na época.

 

Prestígio também de Francisco Palha, que tomou a iniciativa de contruir o teatro da Trindade.  Júlio César Machado, apesar da ironia que caracteriza todas estas descrições, não poupa elogios. Eis como refere Francisco Palha:

 

“Homem inteligente e ativo, de acordo com uma companhia de acionistas -  que são simplesmente os primeiros negociantes do país, à exceção de um que o não é, mas que me dizem não ser completamente desprovido de posses, o sr. Duque de Palmela- lograssem edificar um teatro com pedra, cal, madeira e outras exuberâncias, não se podia acreditar que semelhante coisa conseguisse ir por diante...”

 

Mas foi, e dura até hoje, como aqui temos referido.

 

DUARTE IVO CRUZ

DOIS LIVROS SOBRE OS 150 ANOS DO TEATRO DA TRINDADE

 

Os 150 anos do Teatro da Trindade, efeméride que já aqui referimos, foram agora assinalados com o lançamento de dois livros e por uma sessão evocativa: e apesar da permanência em atividade de outros Teatros em Lisboa, como designadamente o São Carlos ou o D. Maria II, há que realçar o evento.

 

Até porque o Teatro da Trindade, como aliás aqui temos escrito, constitui um referencial de criação artística de espetáculo, cobrindo o teatro declamado, o teatro musicado, a ópera, o bailado, o cinema e em geral, a atividade cultural mesmo quando não diretamente ligada ao espetáculo.

 

E nesse sentido, começamos por assinalar a exposição evocativa da efeméride, “uma ideia de José Carlos Barros”, diz o catálogo. E lá se transcreve com a linguagem da época e com a grafia aqui atualizada, uma notícia da inauguração do Teatro da Trindade, em 1 de dezembro de 1867:

 

“Os fastos do teatro português registam mais um acontecimento memorável. É a inauguração do Teatro da Trindade, novo templo erguido ao culto da arte de instruir e civilizar as turbas por meio da representação ao vivo dos factos da vida social e familiar e da luta das paixões que agitam a humanidade, ou sejam viciosas e ridículas ou sejam virtuosas e sublimes. Muito deve o país a todos aqueles que dedicam seus esforços e capitais a obras de tanta magnitude, e o município de Lisboa deve felicitar-se por ver sair de um montão de ruinas tão belo edifício, que é um novo título de glória para o novo arquiteto o sr. Miguel Evaristo”.

 

E a notícia segue com elogios do espetáculo de estreia, “com o novo drama A Mãe dos Pobres do distinto escritor o sr. Ernesto Biester”, assim mesmo, na presença da “família real e considerável numero de cortesãos e titulares (que) abrilhantavam o numeroso concurso (sic) que enchiam o teatro”... (cit. Diário de Notícias 3 de dezembro de 1867 in “O Nosso Teatro...”ed.TeatroTrindade.INATEL.PT 2017).

 

Mas o que aqui quero assinalar é a publicação de dois livros, largamente documentados e ilustrados, sobre os 150 anos do Trindade, a saber, «Teatro da Trindade 150 anos - O Palco da Diversidade» da autoria de Paula Gomes Magalhães, e «Francisco Ribeiro “Ribeirinho” – O Instinto do Teatro» da autoria de Ana Sofia Patrão (ambos ed. INATEL e Guerra e Paz 2017).

 

Profusamente ilustrados, ambos os livros marcam a celebração dos 150 anos do teatro realçando, o primeiro, a poderosa intervenção cultural feita através do Trindade, nos domínios do teatro mas também da ópera, da opereta, do cinema, da revista, do bailado.

 

E parece também adequado o realce dado ao Ribeirinho e designadamente ao Teatro Nacional Popular – TNP que marcou profundamente, no Teatro da Trindade, a modernização da cultura teatral portuguesa com a estreia de “À Espera de Godot” de Samuel Beckett em 1959: repita-se, marcou profundamente um movimento de modernidade na cena portuguesa, aliás inesperada dada a época e as condições de exploração da atividade teatral...

 

Nesse aspeto (mas não só) o livro de Ana Sofia Patrão é extremamente elucidativo dos contrastes, paradoxos e contradições inesperadas que marcavam a atividade teatral na época, mesmo para quem não levantava problemas de ordem politica imediata.

 

E o livro de Paula Gomes de Magalhães, ao historiar os 150 anos do Trindade, realça a relevância que o Teatro alcançou e conseguiu manter, numa feliz sequencia de sucessivas iniciativas e gestões artísticas, de que salientamos as seis companhias analisadas no capítulo intitulado “A Era de Renovação” – Comediantes de Lisboa, Teatro d’Arte de Lisboa, Teatro Nacional Popular, Companhia Nacional de Teatro e Teatro do Gerifalto – da Companhia Portuguesa de Ópera, e da Companhia de Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro a partir de 1970.

 

Em 1974, com a extinção da censura, regista-se no Trindade um movimento global de estreias e apresentação de companhias e peças, muitas delas antes proibidas, a começar por Bertold Brecht pelo Teatro da Cornucópia em outubro daquele ano, a que se seguiriam outras peças do mesmo autor a cargo da Companhia de Comediantes Rafael de Oliveira, e ainda variadíssimos espetáculos de grupos e de autores diversos, portugueses e estrangeiros.

 

O Teatro da Trindade passou então a ser uma casa referencial de acolhimento de companhias diversas e dispersas. Recordemos designadamente, e acordo com o livro de Paula Gomes de Magalhães, espetáculos do Teatro de Campolide, do Teatro da Cornucópia, da Barraca, do Cendrev, do Teatro Experimental de Cascais, do Teatro de Animação de Setúbal, e novamente espetáculos de ópera, numa sucessão de iniciativas e de autores  de que destaco para terminar alguns autores portugueses: Jaime Salazar Sampaio ,Norberto Ávila, Diogo Freitas do Amaral, Filomena Oliveira e Miguel Real, Luis Francisco Rebello, António Torrado, e outros mais...

 

DUARTE IVO CRUZ

VISITA DO CNC A DOIS TEATROS DO CHIADO

 

O TEATRO DE SÃO CARLOS E O TEATRO DA TRINDADE

 

Tive o gosto de colaborar nas visitas que, em dias sucessivos, o Centro Nacional de Cultura organizou aos dois Teatros históricos do Chiado: o Teatro Nacional de São Carlos e o Teatro da Trindade.

 

Sabemos bem que nesta zona da cidade, onde aliás se situa o CNC, existe e em parte subsiste uma óbvia tradição de salas de espetáculo, designadamente os dois agora (re)visitados: e é desde já de realçar que um deles, o São Carlos, vem do século XVIII, e o outro, o Trindade, vem do século XIX.

 

E nesta perspetiva epocal poderemos aqui lembrar, como aliás fizemos durante a visita, outras grandes salas de espetáculo que ainda marcam, ou marcaram ao longo do seculo passado, esta zona da cidade. Foram várias: mas, para alem das citadas e visitadas, resta apenas, em plena atividade, o São Luis, a que haveremos de voltar. Infelizmente desapareceu o Cinema e Teatro Ginásio, que pelo menos, em boa hora, mantem a fachada: e também, noutro plano, desapareceu o Chiado Terrasse, onde ocasionalmente se fez teatro.

 

Quem desce o Chiado e sobe a Avenida da Liberdade, escontra o edifício, ou pelo menos a memória de salas de espetáculo de grande tradição, algumas ainda hoje de qualidade arquitetónica. Desde logo o Teatro de D. Maria II, seguindo-se na proximidade o Coliseu, o Teatro e Cinema Politeama, o desaparecido Odeon e os sucessivos Teatro(s) e Cinema(s) Condes: e também o edifício e a memória do Eden Teatro e Cinema.

 

Para baixo, ficariam os bem antigos Animatógrafo do Rossio e Olimpia, e mais para cima o Tivoli, o São Jorge e o conjunto em parte recuperado dos velhos Teatros do Parque Mayer, a que voltaremos: Capitólio, Variedades, Maria Vitória, ABC, esse desaparecido. E em zonas urbanas mais recentes, o Teatro Villaret e o Cinema e Teatro Monumental e alguns cinemas em áreas adjacentes.

 

Mas fixemo-nos então na visita que o CNC organizou nos passados dias 20 e 21 de maio ao Teatro de São Carlos e ao Teatro da Trindade.

 

Quanto ao Trindade, muito recentemente aqui o temos evocado. Destacou-se entretanto a visita detalhada ao palco e camarins, zonas menos conhecidas e que proporcionam, além de tudo, uma visão menos habitual da sala, quando olhada a partir do palco.

 

E quanto ao São Carlos? Desde logo há que referir a notável qualidade, até porque excecional mesmo em temos europeus: e dizemos “europeus” porque não faltam casos e memória de teatros da época que arderam ou, alguns até, que foram demolidos por essa Europa fora.

 

Ora o São Carlos é inaugurado em 30 de junho de 1793 com a ópera “La Ballerina Amante” de Domenico Cimarosa. Trata-se de um exemplo curioso de intervenção privada, com o distanciamento que a época impõe. Na verdade, o Teatro foi iniciativa de Joaquim Pedro Quintela, Barão de Quintela e pai do Conde de Farrobo, este por sua vez ligado à exploração do então chamado Teatro da Rua dos Condes e também à construção do D. Maria II.

 

A sua elegante traça terá sido, ao que parece, inspirada no antigo Teatro Real São Carlos de Nápoles, destruído por incêndio (como habitualmente) em 13 de fevereiro de 1816. Familiar dos teatros italianos, José da Costa e Silva não copiou, como correntemente se diz, o São Carlos de Nápoles... Nesse tempo, todos os teatros se construíam de forma semelhante. (in "O Teatro Nacional de São Carlos" de Manuel Ivo Cruz, Edições Lello & Irmão, 1992, pág. 15-16)

 

Muito há a dizer sobre o Teatro de São Carlos. Mas por agora refira-se que o Teatro beneficiou de sucessivas alterações estruturais, desde logo aliás em 1796, três anos após a inauguração, com a construção do chamado salão nobre. Em 1897, procedeu-se a uma extensão da plateia.

 

No capítulo XIII de “O Primo Basílio” Eça refere figuras desenhadas do o charuto nas paredes à entrada da plateia. Em 1921 estreou-se lá a “Zilda” de Alfredo Cortez e em 1922 o “Mar Alto” de António Ferro. E podíamos multiplicar as evocações no teatro declamado mas sobretudo na ópera: recordo como mero exemplo o que foi a estreia em Portugal de Maria Calas!

 

O Teatro foi recuperado nos anos 40. E até hoje, é um dos mais belos teatros a nível europeu. A ele voltaremos.

 

 

DUARTE IVO CRUZ

OS 150 ANOS DO TRINDADE (III) – UM LIVRO DE EVOCAÇÃO E CELEBRAÇÃO

 

 

Este é o terceiro texto que, nesta série, dedico ao 150º aniversário do Teatro da Trindade, inaugurado em 1867. Outros textos se seguirão, pois não é demais, penso, referir, evocar e novamente analisar o que é hoje e o que tem sido, neste período, a exemplar estrutura e prática de cultura teatral e musical do Trindade: e isto, a partir da qualidade arquitetónica de origem (projeto do arquiteto Miguel Evaristo) e consagrada nas sucessivas alterações que, ao longo de século e meio, têm sido efetuadas, sem de modo algum desvirtuar o edifício, a sua funcionalidade e o património cultural-teatral inerente.  

 

Nesse sentido, tive o gosto de participar, em 2014 num ciclo de conferências organizado pela Fundação INATEL, proprietária do Teatro da Trindade. E foi agora editado pela Fundação um volume, “Conferências do Trindade” que reúne intervenções e textos diversos de Inês de Medeiros, Joaquim Paulo Nogueira, Isabel Pires de Lima, Luís Soares Carneiro, José Sarmento de Matos, Guilherme d’Oliveira Martins, Nuno Domingues e José Carlos Barros e da minha, no ciclo acima citado. (cfr. “Conferências do Trindade – História Cultural e Artística do Teatro da Trindade” ed. Fundação INATEL 2017).

 

Os textos introdutórios - “Um Palco de Todos Para Todos” de Inês de Medeiros – Vice Presidente do INATEL e diretora do Trindade – e “Fazer do Teatro da Trindade um Acontecimento Cultural” de Joaquim Paulo Nogueira, realçam precisamente a oportunidade do ciclo evocativo.

 

Pois, tal como refere Inês de Medeiros, “o que ressalta das leituras destes textos é uma certa continuidade na evolução, mesmo quando atribulada, deste Teatro, o qual sempre foi pensado como uma sala de espetáculos popular, com uma programação variada – tanto de teatro como musical – distinta e mais acessível do que a programação dos dois grandes teatros nacionais vizinhos: o D. Maria II e o São Carlos”. (cfr. “Um palco de Todos para Todos” cit., pág. 10).  

 

Teve-se então em vista, no ciclo e agora no livro citado, uma análise historicamente evocativa mas sobretudo culturalmente bem atual da atividade do Trindade na política teatral-musical dos anos decorridos desse a sua fundação (1867), inserindo-a aliás na dupla perspetiva de antecedentes históricos e de projeção para anos vindouros: e isto porque o Teatro da Trindade, ao longo deste tão variado século e meio de existência, soube alternar intervenções históricas e projeções de modernidade, numa ação constante de divulgação da cultura nas suas expressões de música, ópera e teatro.

 

Basta recordar, nessa perspetiva abrangente, o que significou, numa ação de política de cultura, por exemplo a Companhia Portuguesa de Ópera-CPO, dirigida por Serra Formigal, que viabilizou o profissionalismo do espetáculo lírico português, até aí residual no contexto das temporadas e das atividades profissionais e artísticas inerentes da tradicional ópera do Teatro Nacional de São Carlos, mesmo quando esses espetáculos se repetiam no Coliseu. Sem questionar obviamente a qualidade, tenha-se presente que não havia, antes da CPO do Trindade, viabilização de carreiras de cantores portugueses e acessibilidade mais alargada de público.

 

Mas tal como recorda Nuno Domingues, no ciclo de conferências citado e agora publicado, “a Companhia Portuguesa de Ópera não foi a primeira a atuar no Trindade. Em 1908, o empresário Afonso Taveira organizou uma Companhia Portuguesa de Ópera, que durou um ano”. (cfr. “O Trindade e a Ópera” in ob. cit. pág.159).  

 

No que se refere ao teatro declamado, é interessante recordar, com aliás fiz na conferência agora publicada, e que intitulei precisamente “O Trindade e o Romantismo”, a inauguração do Teatro, em 10 de Maio de 1867, com um espetáculo de declamação com intervenções de Bulhão Pato e Júlio de Castilho, nada menos.

 

E ainda, como referi na conferência, “a 30 de Novembro é inaugurado o conjunto Teatro da Trindade com duas peças: «A Mãe dos Pobres» de Ernesto Biester e «O Xerez das Viscondessa» que foi adaptado pelo grande empresário e diretor do Trindade até morrer em 1899 Francisco Palha”.

 

Descrevi então a importância assumida pelo Trindade na expressão pujante do teatro romântico em Portugal, bem como os elencos das companhias que, no Trindade, em dezenas de anos, recriaram o espetáculo teatral. E pude recordar que a música e a ópera alternavam, desde o inicio da atividade, com o teatro declamado: e neste, ganhava expressão o temário romântico na sua expressão sentimental, mas também, note-se, na sua expressão político-social. (cfr. “O Trindade e o Romantismo” in ob. cit. págs. 21 e segs.).

 

Mas há que insistir na constante atualidade que, em termos globais, o Trindade sempre soube manter. Certamente porque, ao longo do seculo e meio, e não obstante períodos intercalados se bem que breves de exceção ou apagamento, o Trindade marcou as épocas sucessivas da sua atividade. Ou como disse na conferência deste ciclo Guilherme d´Oliveira Martins, “As humanidades correspondem ao entendimento do género humano. As Humanidades são a compreensão de que, no «Auto da Lusitânia», não sabemos se «Todo o – Mundo e Ninguém» são os gémeos que Almada desenhou na fachada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa ou se são diferentes como Gil Vicente os representou”… (cfr. “Pode a Economia Viver sem as Humanidades?” in ob. cit. pág. 147).

 

Ora bem: nos 150 anos decorridos, o Trindade não parou. E por isso, também apraz recordar, num plano de atualidade, o papel do Trindade numa modernização/renovação do teatro declamado português, e na atividade de espetáculo inerente, em períodos complicados da vida teatral portuguesa.

 

Em próximo artigo, evocarei alguns dos grandes espetáculos do Trindade: por exemplo, o que foi “À Espera de Godot” de Samuel Beckett!...

 

E referirei então os textos dos outros colaboradores deste livro evocativo das Conferências do Trindade.

 

DUARTE IVO CRUZ

OS 150 ANOS DO TRINDADE (II) – A COMPANHIA PORTUGUESA DE ÓPERA

 

Ópera Serrana, de Alfredo Keil no teatro da Trind
    Ópera Serrana de Alfredo Keil, no Teatro da Trindade

 


Merece o maior destaque esta evocação da Companhia Portuguesa de Ópera - CPO, que marcou, entre 1966 e 1975, o meio musical-cultural português, na perspetiva aglutinadora da música e do teatro, essência da criação e realização operística – mas que, em Portugal, constituída como exceção nas temporadas aliás de grande qualidade do Teatro Nacional de  São Carlos – qualidade, sim, mas temporadas quase exclusivamente constituídas por produções basicamente italianas e/ou alemãs: o que não questiona a qualidade em si mesma  (bastaria recordar, entre inúmeros espetáculos, ter lá assistido à “Traviata” cantada por Maria Callas, nada menos!) mas que não correspondia em rigor à função cultural abrangente de um teatro do Estado. E note-se que frequento a ópera do São Carlos desde 1947. 

 

Nesse aspeto, a CPO, instalada no Trindade e dirigida por José Serra Formigal, constituiu um importante fator de divulgação do espetáculo de ópera, mas sobretudo da profissionalização dos cantores portugueses, e também, de reforço da própria expressão musical e teatral. De tal forma que se justifica esta evocação, tantos anos decorridos, na medida em que a CPO conferiu ao Trindade uma função singular. E isto, não esquecendo a própria qualidade, tradição e modernidade do Teatro em si nas sucessivas grande companhias e iniciativas que marcaram a sua atividade ao longo de 150 anos. 

 

Ou, tal como escreveu Tomaz Ribas, “os principais e salutares objetivos (da CPO) eram, por um lado, criar condições de estabilidade profissional e artística aos cantores portugueses e formar novos cantores, novos artistas do bel canto e, por outro lado, proporcionar ao grande público e à classe média espetáculos de ópera e opereta a preços módicos, populares”. O que se conseguiu. (cfr. Tomaz Ribas “O Teatro da Trindade – 125 Anos de Vida” ed. Lello e Irmão 1993).

 

Agora, passaram mais 25 anos!      

  

Ora bem: um aspeto relevante da CPO foi a produção de óperas portuguesa, sabendo-se que, historicamente não são muitas… Em qualquer caso, de acordo com o levantamento exaustivo de Nuno Domingos, entre óperas e operetas, o Trindade programou e executou, no período referido, ao todo para cima de 60 títulos, em sucessivas produções e encenações. E seis eram de autores portugueses: “A Serrana” de Alfredo Keil, logo como segundo espetáculo da temporada inaugural (1963), “A Vingança da Cigana” de António Leal Moreira, “A Condessa Caprichosa” de Marcos Portugal, “Inês Pereira” de Rui Coelho, “Variedades de Proteu” de António Teixeira, “Rosas de Todo o Ano” de Rui Coelho. (cfr. Nuno Domingos «A Opera do Trindade» - ed. Lua de Papel 2007). 

 

E no repertório operístico internacional destacaram-se, segundo a mesma fonte, produções de ópera de Rossini, Puccini, Schubert, Verdi, Mascagni, Donizetti, Leoncavallo, Gounod, Massenet, Belini, Wolf-Ferrari, Mozart, Menotti, Casavola, Bizet, Gluck, Giordano, delibes, Franz Léhar, Massenet, Hindemith. 

 

O repertório operístico conciliava assim os grandes títulos com revelações, clássicas ou modernas, para um público não especializado mas cada vez mais empenhado na participação dos espetáculos: e importa também lembrar que a produção de cada uma das óperas não se limitava, como há décadas sucedia no São Carlos, a dois espetáculos (6ª feira à noite, domingo à tarde) por cada produção.   

 

E mais: a CPO era formada principalmente por cantores portugueses, dos quais citamos, com injustiça para os não citados, nomes como Maria Teresa de Almeida, Maria Cristina Castro, Hugo Casais, Guilherme Kjolner, Ana Lagoa, Armando Guerreiro, Álvaro Malta, Zuleika Saque, Carlos Jorge, e tantos mais… 

 

E tudo isto em sucessivas encenações de nomes notáveis da cena portuguesa, como Álvaro Benamor, Tomaz Alcaide, Artur Ramos, Couto Viana, ou o grande cantor italiano Gino Becki… E maestros também notáveis, como Silva Pereira, Ruy Coelho, Manuel Ivo Cruz, Joly Braga Santos, Filipe de Sousa…   

     

Havemos de evocar ainda, no Teatro da Trindade, dois grandes momentos seletivos: o Teatro Nacional Popular - TNT, dirigido por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), e a Companhia Nacional de Teatro, de António Manuel Couto Viana. Ambas marcaram por um repertório avançado para a época. Recordo em particular o que foi a estreia de “À espera do Godot” de Samuel Beckett, numa época e num enquadramento que não se mostraria especialmente adequado a estas expressões dramatúrgicas!   

 

DUARTE IVO CRUZ

O TEATRO DA TRINDADE, NOS 150 ANOS DA INAUGURAÇÃO (I)

 

Ocorre este ano o 150º aniversário da estreia do primeiro espetáculo do Teatro da Trindade, realizado em 1867, primeiro no salão nobre, com bailes no Carnaval daquele ano, e depois com espetáculos musicais de declamação e já de representação cénica, ao longo dos meses, até que, a 30 de setembro, verifica-se a primeira grande estreia na sala do teatro propriamente dita, sala essa que até hoje perdura, com alterações que não a desvirtuam.  

O evento merecerá pois aqui, ao longo do ano, uma breve  sucessão alternada e complementar de  evocações.    

E isto porque o Trindade representou na época e até hoje representa e significa, sem grandes períodos de inatividade, um referencial de cultura e de espetáculo, cénica e arquitetonicamente enquadrado no modelo de teatro oitocentista que perdura, mas conciliado com sucessivas intervenções, designadamente na tecnologia de cena. E importa também lembrar a sua função cultural, com destaque para algumas iniciativas inovadoras e/ou muito representativas na cultura de espetáculo – desde o teatro declamado, à ópera, aos concertos, ao cinema, sobretudo quando o cinema era inovação ímpar ou quase… 

Mas também em épocas posteriores: e nesse aspeto específico, que hoje já quase não se recorda, vale a pena assinalar que foi no Trindade a estreia, em 1943, do “Amor de Perdição” de António Lopes Ribeiro e estreia no cinema de Carmen Dolores.   

Mas voltemos a história do edifício. No ponto de vista arquitetónico, o Trindade deve à traça de Miguel Esteves de Lima Pinto a qualidade do projeto, conservada ao longo destes 150 anos e, pelo menos em certos aspetos, do interior, valorizada ao longo de sucessivas intervenções. Isto, não obstante uma alteração externa devida a construções empresariais contíguas. Mas referem-se no interior os 12 medalhões do teto da sala principal, representando dramaturgos, da autoria de José Procópio, discípulo dos “históricos” cenógrafos Rambois e Cinatti:  lá encontramos Gil Vicente, António Ferreira, Camões, Sá de Miranda, Garção, Bocage, Garrett, Manuel de Figueiredo, Inácio Maria Feijó, João Batista Gomes.  E cita-se também na sala principal, o belíssimo frontão da autoria de Leopoldo de Almeida, colocado nos anos 30 do século passado.  

 

E vale a pena pois lembrar que a inauguração “oficial” do Trindade, na grande sala do teatro, ocorre em 30 de setembro de 1867 com um duplo programa de modernidade indiscutível na época e desde logo, de heterogeneidade de géneros. É certo que os nomes das peças e até dos autores respetivos, hoje, já pouco dizem. Mas, na data, trata-se de expressões concretas e significativas de modernidade: o dramalhão ultrarromântico, em quatro atos, “A Mãe dos Pobres”, de Ernesto Biester, dramaturgo então de primeiro plano e projeção, e a comédia em um ato “O Xerez da Viscondessa”, adaptada por Francisco Palha, este também no auge do prestígio como autor teatral. É certo que, se os nomes dos dramaturgos hoje ainda marcam no ponto de vista histórico e estético, as peças em si já pouco dizem aos espetadores a não ser pela expressão epocal-documental.  

 

Mas o elenco desta primeira companhia do Trindade, a 150 anos de distância, ainda guarda ecos de qualidade: os atores Tasso, Isidoro, Rosa Damasceno, Eduardo Brazão, Augusto Rosa, Delfina do Espírito Santo, entre outros mais esquecidos, marcaram e muito o teatro da época e sobretudo documentam uma projeção da arte do teatro que não pode ser ignorada.  

 

E não o foi, desde a fundação até hoje. De tal forma que nos propomos evocar e analisar a função histórica do Trindade e a visão que dele nos deixaram, em sucessivas épocas, grandes nomes da literatura e da cultura portuguesa.  

 

E desde logo, porque será o mais marcante nesta perspetiva, Eça de Queiroz, designadamente em ”Os Maias” e ”A Tragédia das Rua das Flores” que antecede. 

 

Citemos breves passagens que contêm descrições do teatro: 

Em “Os Maias: “ (…)Ega, esguio e magro,  foi rompendo pela coxia atapetada de vermelho. De ambos os lados se serravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao tabelado.(…) Em volta, de pé, encostados aos pilares vermelhos que sustêm a galeria, estavam os homens(…) O gaz sufocava, vibrando cruamente naquela sala clara, de um tom desmaiado de canários, raiada de reflexos de espelhos”… 

 

E também se recorda aqui o início e estratos do primeiro capítulo de “A Tragédia da Rua das Flores”: 

“Era no Teatro da Trindade, representava-se o Barba Azul (…) O segundo ato terminava: o regente aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com um movimento de serras apressadas: agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas na pele do tambor, com uma mansidão sonolenta.” 

Mas voltaremos ao Trindade! 


DUARTE IVO CRUZ