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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (3) 

  


A linguagem empobrecida, empobreceu o pensamento que com ela adquire e exprime significação, e por entre este vazio nasceu e cresceu o pasmo dos deslumbrados.

A linguagem sofreu mutações e a capacidade da sua apropriação por parte dos seres já dominados inibe que dessa metamorfoseada realidade se possam dar conta.

Há um novo tempo e há um novo espaço de plurissignificações que em si muito contém a mercadoria do mundo ilusório.

A barbárie do simulacro antecedeu tanta inverdade que os seres confundidos e anestesiados se têm mostrado incapazes do exercício do questionar.

As migalhas que se foram aceitando do poder e da intectualidade que com ele privaram e privam, constituíram a primeira prova da mansuetude cerebral dos múltiplos inquilinos dominados neste sistema.

Até a IA chegou em grande parte pela mão de uma informação de botox, provocadora de paralisia aos estímulos neuronais, de modo que se confundissem as inevitabilidades concordantes e discordantes, num rodopio sem significação.

Tudo o que vai chegando a um mundo sem sonho, e consequentemente sem a grande força da insubmissão, instala-se como fatalidade, já que a condição inquieta do homem se deixou subtrair da sua vida, permitindo o poder titânico que parece ter feito desmoronar o pensamento perscrutador.

E tudo ficou destinado a ficar impune. Até quem muito amedrontou com o esplendor da IA, experimentou o uso de um poder sobre uma civilização que afinal pretendia anular.

O poder incontrolado das novas realidades é tema do qual se desertou sem enfrentar, e a insatisfação absolutamente anémica, perdeu posto e não constitui doença.

O que acontece hoje será meramente pitoresco daqui a um ano, e não se estranha não compreender o agora neste imenso potencial transformador.

Navegar de um lado para o outro pode ser o mesmo que não sair do sítio de não-partida.

A capacidade analítica sobre os inúmeros dados potenciadores de um estilo de aprendizagem e desempenho que a IA transporta com a maior capacidade de sucesso, situa-se no polo oposto do não-questionamento de uma cultura simplificadamente adormecida.

Apesar de todas as possibilidades fantásticas, fascinantes e promissoras que a IA oferece, as preocupações em torno do seu uso, nomeadamente o expor uma notícia falsa indistinguível da realidade, terá consequências críticas para a sociedade, ou a tensão entre a palavra e a essência não fosse o grande poder do mundo simulado e enfim, do caos da vida.

Será que todos acham que ainda é cedo para que esta preocupação tenha raízes?

Não é fundamental que os que desenvolvem a IA e os seus usuários sejam responsáveis pelo seu uso e considerem as implicações éticas das suas criações?

A maior ferramenta da IA é a confiança, caso o abaixamento do pensar e do sentir, não tenham chegado à subcave da passagem por aqui dos seres humanos.

Que os fios poderosos que envolvem os homens não os façam acreditar num doravante de otimismo de consumo que os sacia.

A IA é agora uma eficiência se orientada, e o bule cujo conteúdo é mar, nele se não confina.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (2) 

  


As plantas não crescem nem são belas porque a IA lhes dá o poder da Natureza.

Não, a IA não é mundo natural nem vida, como é tudo o que envolve o mundo dos seres vivos.

A natureza de algo é a sua verdade, a sua essência, a sua disposição inata.

A partir de múltiplos algoritmos não se atinge o que permanece tal como surgiu sem sequer ter tido a ajuda dos seres humanos.

Parte-se de uma ideia profunda de mundo anterior à própria existência de ordem humana.

Partilhar laços e o seu balanceio com o sensível, ter consciência da sua própria existência evolutivamente, da sua própria finitude, é algo que só existe nos humanos.

Lembremo-nos também que planta, fungo, bactéria, animal, estão sujeitos à lei da biologia e da sobrevivência e pedem sombra, sol, sossego e sono.

A célula é a menor unidade de vida e mesmo sozinha forma um ser vivo, um organismo unicelular e em grupo formam organismos pluricelulares como animais e plantas.

Ora, aquilo que é entendido por Aprendizado de Máquina (uma das capacidades da IA que possibilita aos softwares usarem inputs humanos para “aprender”), fundamenta-se no que estimula o funcionamento do cérebro humano, mas aplicando ferramentas computacionais, o que quererá dizer que a IA evolui a partir de algoritmos que “aprendem” as preferências dos usuários, e se combinam para fazerem sugestões mais precisas ao solicitado.

Mas estamos perante formas mecânicas que se não comparam nunca às formas de expressão humana qual pasmosa distância de um querer de um Deus, como o oásis.

Na verdade, sem a presença física de um ser humano, o sistema de um carro pode memorizar - através de ordens nele incorporadas - direções e trajetos o que não determina a exclusão de humanos do melhorar desta função, e sobretudo a IA teria de ser bem mais complexa e precisa do que a praticada pelos humanos para que estes nela possam confiar.

Boris Eldagsen em 2023 ganhou um prémio de um concurso internacional de fotografia gerada por IA.

Eldagsen abdicou do prémio divulgando que a foto tinha sido gerada por um algoritmo, admitindo que essa forma não é comparável à do uso das máquinas fotográficas que não constituem trabalhos derivativos de obras anteriores, e que este método não gera arte, não obstante ser possível nesta fotografia adivinhar-se um vínculo entre estas mulheres, ou a melhor prova de que processos repetitivos geram aparências.

De lembrar que quando surgiu a fotografia ela não liquidou a pintura, e se se entender que o melhor uso da IA origina muito mais do que modificações de incrementos de múltiplas obras, tal não finda com outras formas de arte, mesmo que a da IA venha a ser a ser considerada uma forma de arte.

Certamente a inteligência artificial se irá tornar cada vez mais valiosa para o mundo e melhorará muitas eficiências e irá dar muitos passos muito além, e até já originou um DNA sintético de pessoas inexistentes, o que até leva a que esta ferramenta de pesquisa de geneticistas, possa fazer experimentação sem se comprometer a ética científica ou a vida de pessoas reais.

Todavia, a inteligência humana é um processo multifacetado e ainda muitíssimo desconhecido, que envolve mudanças biológicas, sociais, culturais e cognitivas.

A inteligência humana continua a desenvolver-se à medida que enfrentamos desafios e oportunidades como espécie.

De recordar que Humberto Maturana e Pille Bunnell afirmaram que o único sentimento que amplia a visão e expande a inteligência é o amor.

E a IA não ama.

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (1) 

  


A inteligência humana não se compraz com um estado ter o limite de apenas poder ser verdadeiro ou falso.

A inteligência humana não funciona deste modo nem se baliza pela lógica booleana.

A inteligência humana para um mesmo problema acede a múltiplas variações em consciência, em perceção, em intuição, em previsão e em outras competências, e não é binária.

Mas há um reino que pela sua capacidade para combinar dados invisíveis ao nosso “olhar”, interage connosco de tal modo que nos surpreende o não distinguirmos, se o que nos espanta nos chegou ou não de uma máquina.

Pode-se então dizer que a IA combina dados de modo imprevisível não se limitando a meras colagens, revolucionando positivamente muitíssimas áreas, tal como a da medicina e dentro desta a da imagiologia particularmente, tornando-a muito mais eficiente, precisa e acessível.

A IA surge assim como uma nova razão.

Mas na IA não se paga o tempo do pensar humano.

Tudo deve ser rápido, produtivo e barato e justificador da extinção de milhões e milhões de empregos e profissões, e que as máquinas possam até disputar novos espaços recorrendo à arte convencional.

No curto prazo, a capacidade de adaptação preenche o tempo de novas profissões surgirem, mas apenas no curtíssimo prazo esta adaptabilidade terá cadeira e assento. A medida do tempo é agora diverso e implica diferentes estabilidades.

Caberá aos engenheiros de prompt, cruciais no estímulo das máquinas, obterem da IA as respostas mais precisas; caber-lhes-á o serem capazes de desempenhar as funções de “DJ” ao escolherem as melhores “músicas” (ou prompts) para que a IA possa tocar cada vez melhor a fim de que a sofisticação da resposta da IA seja cada vez mais eficaz.

E que realidade conduzirá ao fim da humanidade tal como a conhecemos?

Quem sobrevive à criação de paradigmas inerentes à criatividade?

Qual civilização se sucede e o que a fará evoluir? Que valores como espécie?

Estou convicta de que a IA já transformou a forma como vivemos, já transformou a garantia de como vivemos esse viver.

E não há que ignorar.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

NO MOMENTO DO VULCÃO
E JÁ
NO PÓS DE TUDO

  


Passo a passo desenleava-se o enovelamento dos fenómenos, e como a razão crítica não convinha aos estabelecidos, obscureceu-se a verdade enevoando-a com a mentira.

A partir daí só havia que destruir inimaginavelmente e aguardar pelos termiteiros submissos.

E eis que tudo pareceu acontecer de súbito quando afinal se lhes deu tempo e força e permissão para que rebentassem a crosta do mundo, avaliando previamente a potência da câmara magmática, aquela que que alberga a caldeira do mando cruel e oportunista e cego de cegueira absoluta, aquela que sabe que explode com consequências planetárias.

Foi usada a extrusão para dar forma e atribuir características no tecido do Ser.

Causaram-se descargas explosivas avaliando as tolerâncias;

a sismicidade de aparente baixa magnitude entrou de manso nas escolas;

em sons de baixa frequência, avaliaram-se as universidades;

a voz cavernosa das placas tectónicas a roçarem ressurgentes anunciaram pontos de partida;

e quase todos alheios, como última verdade, os humanos sentaram-se em cima do momento do vulcão, e já nos pós de tudo, no próprio pós-armadilha e fraco engenho,

aconteceu.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

A GRANDE VIAGEM 

  


O GRANDE DESPERTAR


É condição de êxito na vida o entendimento funcional de comportamentos que nos facultam a estreita união com o mundo. E tanto basta afinal a uma resposta que constitui o nosso grande equipamento.


Tudo o que nos confere vantagens adaptativas ao crescimento em graus de atividade e latência, confere-nos combinações de raciocínios e sentires, a partir dos quais se desimpedem pensares aos quais se atribuíram enormíssimas importâncias, quando não, superioridades medidas apenas pelos ralos de ângulos secos.


Jane Goodall,
primatóloga, é doutorada em Etologia pela Universidade de Cambridge, e tem grau de Doutor Honoris Causa em mais de 45 universidades do mundo.


Jane Goodall
, é e foi a experiência luminosa e exaltante, vivida e transmitida pela complexidade de pasmosas singularidades:


um lance ao invés de tudo.


Compartilhamos 98,6% de nosso DNA com os chimpanzés, mas o mundo sabia muito pouco sobre eles até que Goodall, a cientista britânica chegou a Gombe (Tanzânia), em 1960 e seis décadas depois, cada fórmula de verdade decifrada, ajudaram o mundo a refletir o quanto se ampliarmos a visão do grão, sempre outros pormenores se mostram imprescindíveis ao mistério do mundo; o quanto um constructo conforme à indagação nos ajuda a refletir sobre o que é ser humano e como contribuir para um mundo mais sustentável e consciente.


Questionada em 2010 se acreditava em Deus, a antropóloga respondeu:


"Não sei quem é ou o que é Deus. Mas acredito num poder espiritual maior. Sinto em particular quando estou na natureza. É algo maior e mais forte do que qualquer outra coisa. Sinto-o e isso é suficiente para mim". 

  


“Eles buscam o contato físico para aliviar o nervosismo ou o estresse. É muito parecido connosco."


E acrescenta:


"Foi muito chocante descobrir que, como nós, eles podem ser brutais e até mesmo travar uma espécie de guerra. Eles também podem amar de forma altruísta. Eles mostram os dois lados da natureza".


Jane
Goodall descobre também que o fabricar e o próprio uso de ferramentas não é atributo exclusivo dos humanos e a essa constatação respondeu Louis Leakey:


TEMOS DE REDEFINIR FERRAMENTA; REDEFINIR HOMEM


Digo, com profunda humildade que a grande viagem e o grande despertar dão-nos o limiar de expressão, de motivação para desencadear um comportamento e um paralelismo com a própria oferenda ritualizada, oferenda que simboliza intuições propiciatórias em sucessivos movimentos de intenção. 

  


De registar que Jane Goodall chegou a ser acusada de antropomorfismo, o pior dos pecados etológicos.


Enfrentou igualmente a comunidade científica por ser jovem e por ser mulher.


Constatou o quanto os humanos se não redefinem no seu interior, o quanto não saem do seu pedestal para entender que outros seres também têm emoções, são inteligentes, sentem empatia e dispõem de um sistema social próprio. 

  
Compartilhando alimento


Jane Goodall
, bem tem conhecimento que os primatas que desejam a paz, têm de desviar a arma da direção do seu adversário: movimento e forma têm um significado conhecido de todos, enfim.


Em rigor, adotar um sistema de escala de dominâncias isolando indivíduos, exprime zonas claras de intolerância e desencadeadoras de medos que apenas submetem e humilham para comandar.


Eis os grandes fragmentos da vida social humana.


Eis como os fenómenos da catação inspiram as hierarquias sociais a um estatuto que as conduz aos objetos em disputa que lhes darão credibilidade e poder, e sem pudor, os excessos de visualização dos humanos expõem-se como se se não tratasse de verdadeiros comportamentos agressivos. 

  


O que você faz, faz a diferença, e você tem que decidir que tipo de diferença você quer fazer.” (Jane Goodall)


O desafio é o da visão lúcida! Sempre foi! E só a partir daqui se iniciam as mudanças do todo que igualmente sempre foi composto por partes que se influenciam mutuamente.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

NÉLIDA PIÑON

Eu não confio no Estado.
Eu confio na vigilância da sociedade
.

  


Não tenho filhos, mas leitores, capazes por si sós de defenderem a civilização contra os avanços da barbárie. A eles nomeio sucessores de uma linguagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persisto em inscrever certas normas no código dos direitos humanos.


E que ninguém abandone o arado da literatura que se lê e vive em fôlegos de grandeza responsáveis pela manutenção da pátria-poética na esteira de si, no coroar de toda a trajetória literária e na esteira também de Saramago.


Nélida: a musa de quantos viveram também na sua convivência, na sua vizinhança, aquela mesma que nos legou uma narrativa luminosa.


Traduzida em mais de 30 países, Eduardo Lourenço, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Alberto Mussa entre tantos outros criadores de linguagens como William Faulkner ou Pedro Páramo - tão evocado por Jorge Luís Borges -, nunca descuraram a poderosa trajetória de Nélida Piñon.


Escritora integrante da Academia brasileira, dela, na emoção da despedida, escreve Evandro Afonso um epitáfio à sua palavra-luz de onde centro, proa e quilha se confiam à vigilância da sociedade, à respiração de onde é tantas vezes alheio o próprio Estado.


Como afirmava Nélida, os tribunais quase inquisitórios proliferam nas mãos dos perguntadores de serviço esgrimindo artríticos poderes: homens em declínio como perfeitas imagens de solidão.


Que vigilantes sejam as gentes a tanta ambiguidade! Que se não desatentem do quanto as sombras fantásticas gritam! Digo.


Nélida morre em Lisboa em 2022 em plena pandemia, mas deixa-nos a pedra obsidiana, aquela do seu livro “Um Dia Chegarei a Sagres”, análise poderosa de decadências e esplendores humanos quando fundo e superfície são um reter e um libertar.


Bem-haja!


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

«Se é o sonho que cria o homem, vou criar o sonho que me cria»
Maria Gabriela Llansol

 

  


Quando comecei a ler Maria Gabriela Llansol aquele estado de estranhamento que é a base da atitude filosofal, abriu-se a um outro tempo encontrado na proposta de uma fração infinitesimal, aquela mesma que se situa entre o que recordamos e o que percebemos.


Maria Gabriela foi e é um ponto luminoso de ideias e inspirações.


Entendi-a como uma lutadora incansável contra as normais solicitações humanas, procurando que a compulsão mimética não prevalecesse no seu íntimo, como um assalto constante a tudo e todos sabendo o quanto tudo se desvaneceria, enfim.


De Kafka, Camus, Goethe, Malraux, sempre numa tentativa algo oracular, procuramos dar rumo e sentido a um polo oposto da verdade que intuíamos existir, e esse percurso, também o fizemos mão-na-mão das seduções de Gabriela Llansol.


Por Dilthey, procuramos mesmo por entre as ciências da consciência e as da natureza, uma sociedade fora da universidade que nos foi proposta e que pouco ou nada permitia o pé em ramo verde, pé de fantástica afinidade pelo ensino de dentro de ângulos novos, quando tudo começa a ser predileção, depuração, condensação do pensar e do dizer.


Eduardo Lourenço afirma: «Qualquer texto de Maria Gabriela Llansol é um texto em que o laço com a realidade, no sentido banal, se nega e se transfigura numa outra espécie de texto, considerando-se aquela ofuscação positiva que só a música exprime, ou antes é. Viajemos por um texto qualquer, porque todos os textos de Maria Gabriela têm essa propriedade de serem um só texto e um texto diferente».


"Escrever é o duplo de viver" ou "a minha maior responsabilidade é contribuir para que um livro seja um ser". Assim Maria Gabriela no seu livro "Falcão no Punho".


A absoluta centralidade da linguagem com a qual pensamos, será sempre o que nos conduz às grandes perguntas gravitacionais, e só por aí o sonho que nos cria é o mais desejado e furtivo dos animais em nós:


um verso de Camões que ninguém iguala.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

QUE SE LEVANTEM OS SUSPEITOS!

  


Há um Portugal profundo que já desapareceu.


Os lugares de pão amassado pelas mãos das gentes, o lavrar, cavar, semear, podar, a debulha, a empa, o diálogo dos ofícios no uso das malgas, dos lagares, das eiras, dos alambiques, do carro de boi, do arado, da grade, do malho, da candeia, do chocalho, o gado e as capoeiras de campo aberto, tudo se esfumou como se nunca tivesse existido aquela vida e os instrumentos de a fazer naqueles lugares.


A relação entre as pessoas da lavoura, naqueles locais e naquelas naturezas, deveria ter-nos levado a compreender corpo e laboratórios de sentires e de fazeres diferentes que, em verdadeiras equipas multidisciplinares, executavam soluções procuradas com imaginação, criatividade e solidariedade.


As várias intimidades da vida, viviam-se de formas distintas de tudo o que são as experiências urbanas, pois que ali o vento sempre foi mais igual ao vento, e as abas das terras, corpos carnais dos riachos, por lá corriam ao caminho dos moinhos de um deus.


A razão das bebedeiras, das ladras dos cães, dos ovos das galinhas, dos esgares dos partos, do partir dos filhos para guerras ou para os estudos, pois que a mão do padre ajudara, tudo eram feições desta vida sofrida entre goelas que afinal a deixavam num lado de cá de tudo, numa cena sempiterna.


Era tão importante termos entendido a tempo, o quanto o beijo do milho-rei já estava a ser obrigado a transformar-se num exercício de despedida dos encontros de amor de então; o quanto as expectativas das sensualidades das vindimas, das constituições das famílias futuras, dentro daquelas arenas da vida, já se procediam em ausências por detrás das casas transumantes de um frio.


Os últimos viveres destas populações - às quais nunca se prestou a atenção de os ajudar a um conforto mínimo na labuta do que nos alimentava -, são hoje suportados em solidões absolutamente incompreendidas e consequentemente cruéis, já que nunca se interpretou sequer a razão das hortas serem o lugar do semear, do crescer e do regar dos mimos.


Mesmo quando os filhos das gerações de aldeões de então, os trazem a viver nas suas casas em condomínio na urbe, a ausência da comunidade do leite, o ATL que substitui o brincar dos netos nos campos de tapetes de carqueja, é algo que só conduz a uma obrigatória e definitiva infelicidade.


Nascer, crescer e morrer junto à Mãe-Natureza criou-lhes rotinas no acender do fogo na terra-chão das cozinhas, quando todos eram a infância uns dos outros, e por esses laços se seguravam por debaixo dos cobertores de papa, os colchões de carolas de milho que muito arranhavam o corpo, e até muitas substâncias da ideia-esperança.


Por ali, e daquele modo, amargamente duro, se criou conhecimento primordial, um conhecimento que não reclamou direitos, mas que era o participante insubstituível a que sobrevivêssemos nós, no nosso caminho.


E afinal, abandonámo-los, isolámo-los e aceitamos que eles, com humildade selada, se resignassem nas suas tremendas fragilidades, à sua sorte, tão inclusiva no desamparo.


Ir embora destes lugares começou a ser a transformação de uma extinção numa outra realidade.


As visitas de tantas músicas nas festas das aldeias com os DJ em cima das camionetas, começaram a interessar às gerações do êxodo que só regressavam no agosto.


A nova realidade surpreendeu os fazedores de alimentos do mundo de então, surpreendeu a comunidade, surpreendeu as pedras, as serras, os rios, e sobrepôs-se numa aventura sem respeito, aos seus diálogos com a vida.


O despovoamento de muitos dos lugares a que nos referimos, é agora algo colmatado - sobretudo depois da pandemia – pelo descobrir de vontades de uma vida mais simples e mais natura, mas definitivamente distinta da que temos estado a referenciar.


Estamos a escrever do lado da incompreensão a uma existência que tinha um objetivo, uma existência surpresa, corpo, unidade, luta, rugas e maçãs de rosto rosadas pelo dom do percorrer amor e outras verdades.


Escrevemos também do lado das ruínas de todas as casas mortuárias, afogadas bem fundo pelas barragens, traços exaltados da nossa evolução.


QUE SE LEVANTEM OS SUSPEITOS!


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

Não fui eu e ainda não sou tudo está por caminhos do ainda.
Cada coisa é parte de outra.
Que acesso me dá a solidão? O SMS? 

  


Precisamos que nos aceitem como somos no convívio e no silêncio e nada disto se transmite por SMS.


Insistir que nem sequer se ouça o timbre da nossa voz quando comunicamos com outros é sermos humanos ou é o início do fim do trajeto de quando o fomos?


Ausculte-se a mesa! que pode ter pieira na proximidade de a ela nos sentarmos.


Essa a opção que escolhemos? Essa a nossa nova sensibilidade? Tudo infirme e súmula que a vida do humano assim se persigna?


Parece também que a maioria anda sempre em trânsito; trânsito parado, ou em suposto compasso de ida.


Uma outra maioria toma o caminho dos elefantes e comovem-se e comovem-me ao atravessarem por uma outra entrada.


E os que se julgam de saúde muito rija, e os que muito trabalham para fugir do que os espera, e os que não registaram o quanto o egoísmo lhes eliminou as companhias, e os das muitas pertenças às famílias de grande ou pequena animação - sempre expostas pelo ângulo correto -, tudo enfim, a sobreviver na linha que reparte e parte o que com arte divide os pés nus sobre inúmeros gumes e algumas alegrias, e ainda assim, basta o uso do SMS nesta profunda transformação comportamental que aceitamos.


Ouvi que a lúcida solidão, sentiu que é bem chegada a sua hora de sucesso, a sua hora de acesso à busca de um sentido, de um compromisso de saúde mental que restaure o quanto antes do covid ainda se jogava ao pião de muitos modos, seduzidos numa atividade lúdica que se deixou de viver, e nada deste universo que eramos e ainda nos resta no estar aí, se transmite por short message service.


Não fomos nós e ainda não somos, tudo está pelo caminho do ainda não próximo do Outro, e cada coisa é parte de outra e também é notícia o anúncio da passagem de um astro a quem se deve a gratidão imensa do nosso percurso até Pitágoras.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

Na candura das alvoradas podemos surpreender o futuro: a ideia de progresso não é a da sobrevivência do indivíduo. 

  

Na modernidade líquida a responsabilidade é individual e se alguém empreendedor de si mesmo, falha, por esse fracasso, responde apenas o próprio. Nenhuma responsabilidade se afere às instituições ou à sociedade, pois estas também são líquidas, aliás, tudo é fugaz e maleável.


A volatilidade das relações económicas e de produção, implicou que o trabalho se tornasse fluido e imprevisível, dissolvendo-se as empresas logo que atingidos os objetivos, dissolvendo-se igualmente o objetivo individual que saltita de ideia em ideia.


A busca do prazer imediato e do auferir monetariamente a cúpula máxima de cada dia, fez perder as referências fixas, deixando de existir projetos de média ou longa duração.


A nossa era aceitou uma fragilidade de laços entre pessoas, e entre pessoas e instituições, que implicou que as relações económicas se sobrepusessem às relações humanas.


A própria lógica do consumo levou as gentes a comprarem afeto e atenção, mas de um modo submisso à moda, à qual os sentires também se devem submeter de x em x meses.


O mistério da fragilidade das relações humanas, desencadeou uma contraditória necessidade de criar laços, nomeadamente através de incontáveis amigos e afins, e a impossibilidade real de poder usufruir de inúmeros sentimentos de outrem, levou e leva à procura constante de novos afetos numa indispensável absurdidade.


Eis as relações que não podem acompanhar a rapidez com que o mundo líquido se move, apesar de ser este o modo de esforço na procura do amor de hoje.


Os níveis de insegurança nas relações amorosas e mesmo de família e de outros convívios, são uma constante das fragilidades em busca de alianças melhores, não se realizando que a falta de compromisso foi e é a grande ignorância que conduziu à sociedade líquida, tendo-se abandonado a confiança nas instituições e na solidificação das relações humanas.


A fragilidade levou à tremenda ansiedade que se vive nos dias de hoje também por total falta de referências e de realidades a médio e longo prazo.


A apartação entre poder e política, o enfraquecer de sistemas de proteção às tempestades da vida, têm também provado que há algo a mudar.


Como afirmou Bauman:


nós, seres humanos, podemos mudar com a racionalidade capaz de perceber o que está errado com o mundo, saber o que precisa ser modificado, quais são os pontos problemáticos, e ter força e coragem para extirpá-los.


Então, a utopia que conduziu a esta perceção, a confiança no potencial humano capaz de mudança, vivem sim, bem creio, na candura das alvoradas quando podemos afinal ainda surpreender o futuro.


Teresa Bracinha Vieira