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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de agosto de 2016.

A melhor tradução em língua portuguesa do «Leviatã» de Thomas Hobbes (INCM, 1995), obra fundamental do pensamento político ocidental, deve-se a João Paulo Monteiro, com o apoio de sua mulher Maria Beatriz Nizza da Silva. Trata-se de um português, que fez o seu magistério no Brasil e que foi um dos grandes pensadores mundiais contemporâneos da Filosofia Política.

 

UM DOS NOSSOS MAIORES
Fomos surpreendidos pelo desaparecimento inesperado de um dos mais prestigiados cidadãos luso-brasileiros na contemporaneidade. E não se pense que se trata de qualquer excesso nosso para com um amigo. O tempo confirmará o que dizemos – uma vez que não é possível estudar David Hume ou Thomas Hobbes em qualquer Universidade do mundo, em especial as mais prestigiadas, sem conhecer e compreender o criterioso contributo de originalidade e rigor deste indiscutível mestre. E o certo é que são raras as referências mundiais por parte dos nossos pensadores – merecendo, por isso, especial invocação um dos nossos maiores. A notícia passou despercebida, mas não pode ser deixada em claro. João Paulo Monteiro foi uma referência cívica e académica da cultura portuguesa atual. Filho de Adolfo Casais Monteiro seguiu seu Pai no caminho do exílio por razões políticas, afirmando desde muito cedo a sua independência de espírito e qualidades excecionais de pensador e filósofo. Não esquecemos o modo principesco como recebia seus amigos em S. Paulo e a simplicidade do seu trato. Era casado com a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva, outra grande amiga, com quem partilhou um trabalho académico excecional, sobretudo considerando que é uma das maiores especialistas da História de Portugal e Brasil. Trata-se de uma dupla singularíssima, onde encontramos uma complementaridade de primeiro plano. É difícil encontrarmos uma convergência tão rica e uma reunião tão evidente de qualidades científicas de exceção. Na Universidade de S. Paulo (USP), onde fez carreira universitária e era Professor Emérito, destacou-se desde cedo como um dos grandes especialistas mundiais do pensamento de David Hume. Em 1967, apresentou a dissertação sobre os «Ensaios Políticos» de David Hume, tendo como orientador o Professor Bento Ferraz Júnior. Em 1973 obteve o grau de Doutor em Filosofia com «Teoria, Retórica, Ideologia: Ensaio sobre a Filosofia Política de David Hume». Em 1975 obteve aprovação para a livre-docência ainda na USP no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, com a tese «Natureza, Conhecimento e Moral na Filosofia de Hume». A sua paixão por Hume deve-se à importância crucial deste no desenvolvimento da filosofia do século XVIII – «só a filosofia de Kant lhe pode ser comparada. E todo o estudante sabe, pelo menos, que o grande filósofo alemão só soube desenvencilhar-se da submissão à metafísica tradicional a partir do momento em que a leitura das obras de Hume o despertou desse “sono dogmático”. Hume tem assim a honrosa responsabilidade de duas grandes filosofias: a sua própria, e essa outra que ajudou a despertar. Para não mencionar a sua persistente influência, sob formas diversas, na filosofia francesa do seu século e parte do seguinte, e na filosofia de língua inglesa até aos nossos dias».

 

FILÓSOFO DE PRIMEIRA ÁGUA
João Paulo era um filósofo criterioso, investigador probo, pedagogo aberto e próximos dos seus alunos, ensaísta de excecional qualidade – nunca tendo deixado o seu empenhamento cívico e político, numa perspetiva sempre independente, próxima da social-democracia moderna, na linha de Norberto Bobbio, centrado na liberdade e na autonomia individuais e na igual consideração e respeito por todos. Tendo apoiado a candidatura de Mário Soares (1986), esteve próximo dos Estados Gerais de António Guterres, tendo sido Presidente do Instituto Camões. Com a natural distância crítica, o filósofo, no sentido mais rigoroso do termo (contra uma certa tradição nacional algo avessa à filosofia), pôde seguir criticamente os passos e a atitude do mestre britânico: «Dos empiristas, Hume conserva especialmente uma atitude metodológica, a recusa de aceitar a validade de qualquer teoria que não se submeta à prova da experiência. Atitude que é hoje praticamente a da totalidade dos homens de ciência e de grande número de filósofos. Mas evitou transformar a experiência num fetiche: a sua linguagem é a de que sabe que recorrer aos factos não garante o saber, que, o conhecimento humano é uma empresa em permanente transformação». Assim se entende que a filosofia de Hume tivesse como principal objetivo o estudo da natureza humana. Se foi qualificada como empirista, o certo é que a sua maior relevância deveu-se à crítica radical do empirismo. Mas não há aqui contradição, já que o fundamental é o sentido crítico, que leva Hume também a ser severo perante o racionalismo de inspiração cartesiana. Foi esse sentido crítico que animou igualmente a atitude do filósofo português – que procurou, com perspetiva aberta, independente e não dogmática, compreender o papel desempenhado por David Hume não só na mudança de paradigma da filosofia ocidental, mas também a necessidade de abrir caminhos novos no mundo das ideias. Aliás, notam-se ainda aproximações de João Paulo Monteiro relativamente à atitude e ao método de Karl Popper, nas conjeturas e refutações e nas consequências na organização da sociedade aberta. Por outro lado, há uma preocupação especial com os fatores de caráter histórico. O fenómeno da moralidade ou do direito não pode ser entendido independentemente da sociedade que se considera. Ao invés da vontade e do contrato social, importaria considerar a história e as raízes das instituições na organização das sociedades humanas. 

Indo até Hobbes, o nosso pensador encontra um fenómeno muito peculiar que corresponde a um «estado de natureza» profundamente agressivo, que exigiria um exercício de poder centralizado que tenta contrariar a lógica do «homo lupus homini». E João Paulo Monteiro salienta: «O espírito do Iluminismo contribuiu para produzir historicamente tempos e situações que, de modo geral, nos apraz acreditar um pouco menos difíceis do que a época de Hobbes, pelo menos no que diz respeito ao ocidente europeu na segunda metade do século XX. Mas os horrores contemporâneos ainda são de molde a permitir-nos compreender a obsessão hobbesiana pela paz e pela ordem, senão a fazer-nos desculpar os seus excessos autoritários. A nossa época permitiu que se encontrassem soluções outras, que da nossa perspetiva aparecem como mais racionais e mais moderadas. Mas mesmo que possivelmente tenhamos razão, contra Hobbes, tal não deve impedir de reconhecer ao grande filósofo a razão que lhe assistia contra a sua própria época». Só o conhecimento rigoroso dos autores permite evitar simplificações. João Paulo Monteiro ensinou-o sempre. A comunidade científica e do conhecimento portuguesa não deixará, por certo, em momento oportuno de homenagear quem foi um dos seus membros mais proeminentes.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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