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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 6 a 12 de março de 2017.

 

Zvetan Todorov, num livro atualíssimo, intitulado «Mémoire du mal, Tentation du bien» (Laffont, 2000), cujo tema ganha nos dias de hoje uma importância crescente, diz-nos que “querer erradicar a injustiça da face da terra ou apenas as violações de direitos humanos e instaurar uma nova ordem mundial donde sejam banidas as guerras e as violências, é um projeto que converge com as utopias totalitárias na sua tentativa de tornar a humanidade melhor e de estabelecer o paraíso sobre a terra”.

 

 

RESISTIR AO MAL, NÃO SUCUMBIR AO BEM
Como nos alertou Thomas Morus na sua «Utopia», do que se trata nas sociedades humanas é de não renunciar à capacidade de nos aperfeiçoarmos, em lugar da tentação do império cego da virtude, contrário à liberdade igual e à igualdade livre. Todorov insiste: “É possível resistir ao mal sem sucumbir à tentação do bem”. Mas não se interprete apressadamente o aparente paradoxo. É de pessoas concretas que cuidamos, nos seus vários caminhos ao encontro de si e dos outros, e não de seres abstratos, formatáveis segundo um qualquer modelo de perfeição que não tem lugar no mundo concreto. Por isso, a Utopia é um horizonte, um desafio, e não um modelo ou uma exigência abstrata. Zvetan Todorov (1939-2017) morreu há poucas semanas em Paris e é uma das vozes mais lucidas na complexa reflexão sobre a liberdade e a democracia nos dias de hoje – quando um sério mal-estar atinge as sociedades contemporâneas, a ponto de presenciarmos a adoção de estranhas escolhas e de inesperadas decisões, que à partida julgaríamos fora de um horizonte previsível de racionalidade e de saudável partilha de responsabilidades. Nascido em Sofia na Bulgária, o então jovem estudante chegou à Universidade no ano do relatório Krutchev (1956), no qual se denunciavam os “desvios” estalinistas. Então escolheu enveredar pelos estudos sobre a literatura tradicional búlgara – o que talvez lhe permitiu começar a fugir à uniformização ideológica do materialismo dialético então em voga. Foi esta necessidade de fugir à ideologia oficial que o levou a esforçar-se por esclarecer o mistério da arte da escrita – através da leitura de Tolstoi, Dostoievski, Tchekov ou Maiakovski. E assim, em 1963, parte para França, onde viverá a cultivar a sua criação literária, tornando-se um dos pensadores europeus mais importantes e influentes do seu tempo – através da investigação sobre a complexa relação entre as diversas culturas do velho continente. No seu primeiro livro estudará os formalistas russos (como Chklovski, Tomachevski e Propp) – em Théorie da la Littérature Seuil, 1965). Na Sorbonne, encontra Gérard Genette e aproxima-se de Philippe Sollers e Marcellin Pleynet do grupo “Tel Quel” e cultiva a semiologia, com Roland Barthes, deixando-se influenciar pela busca do sentido escondido nos códigos, nos signos e nas estruturas da escrita… Dialoga intensamente com Barthes, Sollers e Derrida; estuda as Liaisons Dangereuses de Choderlos de Laclos; é diretor de investigação no CNRS e anima a revista “Poétique” com Genette. Contudo, talvez vacinado pela experiência búlgara, não se deixa influenciar pelo radicalismo de Maio de 1968. Não esquece o que designa como os trinta anos desastrosos do leste europeu (1945-1975) e não hesita em falar, contra-corrente, do Movimento parisiense de 1968 como de “arrière-garde”. E não o faz de ânimo-leve. Esse entendimento corresponde a uma exigente reflexão teórica, que assume em diálogo com a intelectualidade do seu tempo. Com Théorie du symbole (1977) afasta-se do estruturalismo, assumindo uma atitude humanista (Nous et les autres, Seuil, 1989) e afastando-se do relativismo de Lévi-Strauss.

 

O TEMA DIFÍCIL DA ALTERIDADE
O tema da alteridade passa a marcar a obra de Todorov, a partir dos anos oitenta, centrando-se o ensaísta na sua própria condição de imigrante ou “deslocado” e na importância das mestiçagens culturais. E aqui encontramos referência ao “universalismo da alteridade”, que Emmanuel Lévinas designava como “humanismo do outro homem”. Nesta ordem de ideias, o escritor combate não apenas o relativismo cultural, mas também o culturalismo nacionalista. Para o ensaísta a literatura não é um discurso, mas um pensamento que transmite valores. Nestes termos, o conflito entre o totalitarismo e a democracia é o acontecimento mais importante na história política do século XX – exigindo uma atenção redobrada relativamente às mais subtis formas que podem pôr em causa a liberdade e a responsabilidade pessoais. Daí que, para Todorov, a crítica da democracia não signifique renunciar a esse ideal. O que está em causa é a preservação do pluralismo, do primado da lei, das legitimidades do voto e do exercício, de modo que a mais ínfima das vozes possa ser ouvida. No seu último livro, acabado de sair por estes dias – Le Triomphe de l’Artiste (Flammarion, 2017) – diz-nos: “O mundo contemporâneo, não menos que as sociedades totalitárias, empurra-nos em todos os domínios, trabalho, justiça, saúde e educação, para o que Alain Supiot designa como ‘governo pelos números’, o que obrigaria a substituir a ‘administração das coisas pelo governo dos homens’”. Daí a necessidade de considerar as fraquezas inerentes ao género humano, sem renunciar ao aperfeiçoamento permanente da humanidade, no sentido de melhores sociedade e democracia. O ultraliberalismo aliou-se, no entanto, à lógica do totalitarismo. E o pensador considera este facto particularmente inquietante, influenciando muitos dos caminhos inesperados que agora têm o seu curso dos dois lados do Atlântico, com a subtil emergência dos inimigos da sociedade aberta. “A tirania dos indivíduos pode ter consequências tão graves como a tirania do Estado”. E, em lugar da racionalidade, o que vemos surgir são a “pós-verdade”, os egoísmos e as ilusões.

 

ENTENDER O SENTIDO DE SER PESSOA
Não basta estudar a diferença entre metáfora e metonímia, é preciso entender o sentido poético de ser pessoa. Mais do que a semiologia, importa ir ao encontro do “sentido moral da história”, compreender como Baudelaire nos legou Les Fleurs du Mal, para além do seu formalismo. Daí a necessidade de perceber a exemplaridade dos Insubmissos (R. Laffont, 2015) de Germaine Tillion e Etty Hillesum a Nelson Mandela ou mesmo a Edward Snowden. E assim se passa da estética à ética, do belo ao bem, na procura da força dos valores. Daí a importância do sentido crítico, que põe à nossa consideração. Conhecedor dos fenómenos totalitários do Estado, sabe que a realidade não se repete e, sem simplificações, fala das continuidades entre o totalitarismo e o neoliberalismo – segundo a uniformização do conformismo das sociedades ocidentais e a emergência de um novo e estranho intervencionismo, mascarado de liberdade, com desregulação, pensamento único e subalternização das pessoas. “Se desejamos defender o ser humano contra as forças sociais que o destroem, não basta imaginá-lo produzido por princípios abstratos, precisamos de aceitar vê-lo com os traços do seu destino”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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