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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


O AMOR NÃO INVESTIGA CULPAS…

por Camilo Martins de Oliveira


Meu Caro José Saramago:


São suas "As Pequenas Memórias", essas que nos contam como, menino e moço, pelas férias de verão em casa dos seus avós Josefa e Jerónimo, metia "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge" (tal como o Jesus do seu romance "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", que não é evangelho nem pretende sê-lo) e saía para o campo, por onde pouco tinha para escolher:  "ou o rio, e a quase inextricável vegetação que lhe cobre e protege as margens, ou os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado, ou a densa mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo para jusante, depois do ponto de confluência com o Almonda, ou, enfim, na direção do norte, a uns cinco ou seis quilómetros da aldeia, o Paul do Boquilobo, um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso. Não havia muito por onde escolher, é certo, mas, para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, eram estas as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro"... Por longa que fosse a aventura, ou penoso o esforço que o levasse além dos obstáculos, até novas descobertas, "o rapazinho da Azinhaga só teria para apresentar a sua ascenção à ponta extrema do freixo de vinte metros, ou então, modestamente, mas com maior proveito degustativo, as suas subidas à figueira do quintal, de manhã cedo, para colher os frutos ainda húmidos da orvalhada noturna e sorver, como um pássaro guloso, a gota de mel que surdia no interior deles"... No fim do séc.II, Santo Ireneu de Lyon, na esteira de tradições ainda mais antigas no convívio e na pregação evangélica da Igreja, afirma a autoridade canónica de quatro evangelhos. Sabemos que, em tempos sem imprensa nem televisão, etc., a comunicação em sociedade se fazia por transmissão oral - designadamente em assembleias e reuniões - que era muitas vezes registada em manuscritos, então copiados para serem lidos de forma a darem alguma consistência e uniformidade aos relatos e teses que se iam difundindo. Houve assim várias narrativas da vida e dos ensinamentos de Jesus e, embora todas fossem autorizadas em privado, sentiu-se a necessidade de reter, como corpo autêntico de futuras leituras, um pouco como o José memorizou percursos e paisagens da sua infância, quatro delas, "como partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro". Assim escreveu Santo Ireneu: "Não pode haver nem maior nem menor número de evangelhos. Na verdade, porque existem quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos principais, e posto que, por outro lado, a Igreja se dispersou por toda a Terra e tem por coluna e suporte o Evangelho e o Espírito de vida, é natural que tenha quatro colunas que de todos os lados soprem a incorruptibilidade e deem vida aos homens. Por isso nos deu o Verbo um evangelho em quatro formas, ainda que alimentado por um único espírito..." Leio, com alguma regularidade, os apócrifos cristãos antigos, até porque neles encontro essas memórias do imaginário cristão de antanho, que tantas vezes serviram - e ainda hoje servem - de tema e inspiração para a arte religiosa ou a simples representação de cenas bíblicas mais familiares: o Presépio é disso belo exemplo. Também me aconteceu ler romances ou outras fantasias da vida de Jesus, nada aprendi para além do que já sabia sobre o gostinho que alguém possa ter em meter sexo em tudo ou escandalizar crentes. Nunca me escandalizei, pareceu-me tudo isso pouco interessante. Mas cada qual sabe como se trata. No seu romance, José, há todavia aquela insistência na culpa de Deus, ao ponto de querer confundi-lo com o diabo. Penso que, hoje em dia (para mim, não para si, que já saiu do tempo), o José terá esclarecido a questão. O que a seguir direi é, portanto, mero desabafo, seria estultícia pensar agora convencê-lo, a si, fosse do que fosse. São José, pai de Jesus, é culpado da morte das inocentes crianças que Herodes mandou ceifar, pois apenas pensou em salvar o seu filho e se esqueceu de avisar as famílias de Belém. Será castigado, crucificado pelos romanos por conspiração em que não entrou: "Deus não perdoa os pecados que manda cometer." Mais tarde, no seu romance, Jesus descobrirá que "nunca houve no mundo gente mais inocente que aquela de Belém, os meninos que morreram sem culpa e os pais que essa culpa não tiveram, nem gente mais culpada terá havido que meu pai, que se calou quando deveria ter falado, e agora este que sou, a quem a vida foi salva para que conhecesse o crime que lhe salvou a vida, mesmo que outra culpa não venha a ter, esta me matará". E nessa revelação do mal intrínseco ao ser e à vida surge, como força telúrica, quase sem idade, como Deus, o anjo, mendigo na anunciação, pastor na natividade, Pastor dos fantasmas que, depois, perseguirão Jesus, aquele a quem "não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas. E, quando encontramos coragem para as lançar, não é raro que não nos respondam, como virá a fazer Jesus quando um dia lhe perguntarem, Que é a verdade. Então se calará até hoje." Não sei se Pilatos encontrou resposta, tampouco sei se a pergunta que fez era já a sua resposta, é por vezes mais cómodo duvidar do que procurar. Perante a ordem aparente do mundo, que não esconde um caos eminente, vivemos esta condição de pressentimento contínuo. Poderei não saber a verdade do que vejo, ou encontrar uma verdade em várias fórmulas apresentada e discutida, ou, ainda, ir ou não descobrindo um pouco mais desta ou daquela verdade. Todas essas verdades, com mais ou menos lógica e aceitação, são meras representações. Mas acredito numa Verdade. Inscrita no coração dos homens. O menino que sou aventura-se pelos quatro evangelhos, como o menino da Azinhaga, pelas quatro partes do mundo, trepa por freixos acima quando encontra frases misteriosas ou afirmações estranhas, que deverá avistar lá de cima, para não se deixar enredar por arbustos e silvas, nem travar por muralhas de trepadeiras. Percorro narrativas singelas, cheias de amor pelas crianças e outros pequenos, de segredos guardados no coração, porque só aos que têm a humildade de aceitar que não sabem muito, e nem tudo poderão perceber, é dada a revelação negada aos sábios e poderosos. Os evangelhos por onde me passeio falam-me de culpa mas a pretexto de perdão, de falta como porta aberta à misericórdia. E da única Verdade que posso, em vida, e devo, conhecer: amai-vos uns aos outros. Nenhuma demonstração teológica, nenhum martírio, nem manifestação pessoal ou coletiva de fé ou de sagacidade filosófica, é isenta de contestação. A Verdade, a única, essa que cada um de nós deve descobrir no íntimo do coração, é o amor. Que vai criando o mundo e revelando Deus. A verdade que me cabe, a única de que tenho absoluta certeza, é o amor de cada dia, como se, ao dá-lo, Deus esteja comigo na construção da paz. Escuto muitas vezes os 4º e 5º andamentos da 3ª sinfonia do Mahler. O 4º, como sabe, é um solo para contralto: "O Canto da Meia-Noite" de "Also sprach Zarathustra" do Nietzsche. "Ó Homem, tem cuidado! Que diz a meia-noite profunda?...   ...Profunda é a sua dor!" Mas logo se inicia o 5º andamento, com o "bim-bam" do coro de crianças e mulheres e esse poema tradicional que Mahler foi buscar ao "Knaben Wunderhorn", anunciando que a Pedro foram perdoados os pecados: "A alegria celeste é uma cidade feliz / a alegria celeste não tem fim./ A alegria celeste foi dada a Pedro/ por Jesus, e a nós para felicidade nossa!". O amor não investiga culpas, alegra-se na misericórdia.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 08.11.13 neste blogue.

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


217. O IMPERATIVO HUMANO E A DESILUSÃO HUMANA


Se aceitamos que é a ação que nos define, então existe um imperativo humano, em todos nós, em deixar uma marca, ou uma mancha. Se formos ambiciosos, motivados e poderosos, presume-se que queiramos marcar a História. Ou manchá-la, mesmo que o não aceitemos.   

Se assim é, o meditar, o pensar e a capacidade de escolher estar só é, para muitos, um sofrimento, um desvario, um sentimento de autocomiseração, de angústia, um vazio, um grupo de umbiguistas, pelo que, quem o faz, precisa de se levantar, fazer algo, abrir-se e sair para o mundo. Precisa de ação, embora também a haja por omissão. 

Indicia-se que, inspirando-nos em seres humanos movidos permanentemente pela ação, temos sempre sucesso, porque têm as respostas, não nos desiludindo, mesmo que vivam numa fuga antropológica, norteada por um imperativo humano de sobrevivência, num corre-corre para a agitação e o ruído, não se autoconhecendo e ignorando a nossa finitude.

Só que a dúvida e a incerteza também são parte da nossa existência, sendo racional e humano pensar que quantos mais mistérios forem explicados e mais questões respondidas, menor é a necessidade de um Deus para as respostas, havendo sempre, de todo o modo, algo que nos transcende.     

Em qualquer caso, mesmo agindo com ação e sucesso, ninguém pode ser divinizado, dado não sermos a medida de todas as coisas e não termos resposta, na sua simplicidade e complexidade, por exemplo, para o vazio monocromático da lua. 

Se os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis, também o estão de pessoas de ação, que tantas vezes cumpriram como profissionais, mas nos desiludiram como seres humanos.


13.06.25
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

E vai sendo suposto que este é um modo de viver neste estado incompossível de não-ser. 

  


Parecem seres ausentes do mundo estes seres que tomam por inimigos quem os abana para que se proporcione vida.

E como dialogar com eles sem surpresa nem susto?

Eles são também os novos tempos de sonolência e existem ainda mais gentes com outras sonolências, mais escravas da escravatura, do não-questionamento de si próprias e da possibilidade de se olharem conforme à sua condição envolta numa gama de simplificações absurdas.

E de um lado para outro os tempos do ovo sem gema.

E como extrair alguma coisa deste nada a que se chegou?

Estarão muitos dos homens ineptos para a existência, destituídos de meios para pensar, falar, questionar, contestar, como quem aceita os planos inclinados e porque sim ou porque não, e por que, e os danos colaterais a celebrarem a apoteose da morte em grunhidos quase números.

E vai sendo suposto que este é um modo de viver neste estado incompossível de não-ser.

E são estas as gentes líquidas, as gentes de uma humanidade destituída até da angústia.

E o drama é a conciliação no aceitar este viver todas as praias assim e tudo o mais no mesmo assim.

E o drama é que dentro destes seres existe a faca que cortou todas as palavras e as coisas que denominam.

Contudo, algo superior e distinto existe e continuará a acudir à loucura do mundo.

Assim cremos.


Teresa Bracinha Vieira

O FIM DO MUNDO

  


Imagina-se normalmente o fim do mundo como uma superprodução. “Alguns,” declarou um poeta, “acham que o mundo vai acabar em fogo.” Versos mais tarde irá concluir que seria suficiente o mundo acabar congelado. Pouco importa no entanto a temperatura: em ambos os casos o mundo iria acabar num acontecimento único, de enorme magnitude.

Estas imaginações explicam-se pelo favor de que o estilo catastrófico goza entre a população. A ideia de um acontecimento de grande magnitude é para a maioria indissociável da ideia de que nada escapa a esse acontecimento; e assim da ideia de que tudo e todos vão ser afectados pelo fim do mundo. As fantasias de inverno nuclear, de  verão global,  de ajuste de contas com o Anticristo, ou de invasão de marcianos têm em comum a escala enorme a que se propõem. A ideia de alguém ou alguma coisa poder sobreviver é-lhes remota e desagradável.

São também fantasias curiosamente consoladoras. De facto, se o fim do mundo coincidisse com um incêndio de grandes proporções ou com uma invasão de marcianos teriamos a satisfação final de ver que connosco o mundo pereceria, e que ninguém seria tratado de modo diferente. A ideia de suicídio colectivo tem o encanto igualitário de nos fazer abandonar esta vida com um último mau pensamento: o de que a pena que a nós se aplicar se vai aplicar a todos os outros. Consola-nos a ideia de que ninguém se ficará a rir, pelo menos neste mundo. Esta consolação pela catástrofe é característica de muitas actividades humanas: políticas, médicas, ambientais, e astrológicas.

Podemos porém imaginar o fim do mundo de outra maneira. Ocorre-me a seguinte sequência de um filme mudo:  numa casa de jantar com uma toalha aos quadrados e uma fruteira, alguém corrige a posição de uma maçã; a maçã cai na mesa; ao voltar a pôr a maçã na fruteira, a toalha entorta-se; ao endireitar a toalha a fruteira cai; ao apanhar a fruteira batemos com a cabeça na mesa, que se parte em dois; ao querer impossivelmente colar a mesa damos um encontrão na parede e um quadro cai; ao pregar o quadro furamos a parede; e assim sucessivamente até não haver casa de jantar e aliás coisa nenhuma.

Nesta sequência, que só por acaso é cómica, o fim do mundo não resulta de um único cataclismo, mas de uma série de pequenos desastres; em particular, resulta dos esforços de correcção que a cada desastre fazemos, e que precipitam novas ocorrências catastróficas. A sequência do filme, na sua trivialidade, sugere que o fim do mundo se deve aos nossos esforços para adiar o fim do mundo. Num filme mudo insignificante há sempre um sentimento teológico mais agudo e mais aflitivo que em visões dos nossos semelhantes triturados pelas dentuças do Anticristo.


Miguel Tamen
Escreve de acordo com a antiga ortografia

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

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Babel e o Pentecostes

 

Quando, este Domingo, se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.

 

Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homen e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris – desmesura – que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.

 

Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em «povos que de dispersaram por países e línguas, por famílias e nações». Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.

 

Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.» Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia falar na sua própria língua». Atónitos e maravilhados diziam: «Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!».

 

No dia de Pentecostes, que deveria ser todos os dias, na sua intenção mais profunda —, e cada vez mais tomamos consciência disso — , quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor de Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.

 

Na actual situação do mundo globalizado e mortalmente ameaçado, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um Governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da Natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.

 

Dada a presente crise global, dramática ou mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macro-paradigma para o desenvolvimento e para as relações entre os povos, incluindo a sua relação com a Natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de alegria e paz.

 

Em toda a sua Históra, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. É preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de cometer um suicídio colectivo.

 

Relembro uma entrevista recente na qual um dos intelectuais mais influentes da atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.» Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (le rien et l´infini). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana insaciável, a única verdadeira tentação, desde o princípio, como se escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus através do orgulho e da dominação de tudo e de todos, construindo uma Torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede descendo sobre todos em Pentecostes.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Sábado, 7 de Junho de 2025

A VIDA DOS LIVROS

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  De 9 a 15 de junho de 2025

 

"O Sonho de uma Nova Manhã – Cartas ao Papa" de Tomás Halik é uma reflexão tanto mais oportuna quanto corresponde ao início de um novo pontificado, num mundo de grandes incertezas.

 

o sonho de uma nova manhã.jpg

 

O autor escreveu estas cartas no final do pontificado do Papa Francisco e o certo é que ganharam uma evidente atualidade, pelo que nelas se lê e pelo sentido prospetivo que contêm. A eleição do Papa Leão XIV obriga à consideração de um novo tempo, por diversas razões. Antes de mais, a herança do Papa Francisco exige a ponderação de um método sinodal que ficou delineado quanto ao futuro próximo e que deve continuar. Há um conjunto de exigências que correspondem a desafios múltiplos e complexos, desde a resposta à reorganização da Cúria, à recuperação da credibilidade afetada pelos escândalos morais, passando pela resposta da Igreja Católica, como realidade global, relativamente à crise das vocações, ao papel das mulheres e à mobilização de todas as energias disponíveis. O novo Papa declarou-se missionário, e importa encontrar as melhores respostas relativamente a esse perfil de ação. E importa não esquecer ainda que a leitura dos sinais dos tempos faz-nos regressar ao pressupostos da encíclica “Pacem in Terris”. Num mundo dominado pela incerteza e pela violência, são pedidas ao “Povo de Deus” diligências concretas para que haja avanços no diálogo e na mediação para que a paz não seja uma palavra vã. Em simultâneo, importa tomar-se consciência de que o desenvolvimento humano obriga a recusar a inércia da indiferença, bem como exige a definição de prioridades que correspondem à resposta ao vazio de valores éticos, à situação dramática das desigualdades e injustiças e à dramática crise ambiental.

 

Tomás Halík imagina um Papa surgido num novo tempo, com o nome de Rafael: «um dos temas-chave nas minhas conversas com o papa Rafael é a questão de como passar da reforma, no sentido de apenas mudanças exteriores na forma, à transformação interior do ‘coração das coisas’. Como, no processo de reforma, não perder, mas sim descobrir algo novo e revitalizar aquilo que constitui a identidade cristã, aquilo que é para ela o ‘sal da terra’ e o fermento do pão fresco para os dias de amanhã?» Se falamos de transformação, temos de entender a ideia de metamorfose, que a natureza nos ensina. Há um caminho. Por isso, o método sinodal faz sentido como gradual reflexão e como ação com consequências práticas. «Os movimentos de renovação da Igreja têm de ser avaliados, na medida em que contribuem para que tudo o que é humano na Igreja esteja cada vez mais aberto a esta dinâmica transformadora da presença de Deus. Jesus, na sua famosa parábola, fala sobre o grão que tem de morrer para dar fruto». Mas quem somos? Vivemos numa circunstância perigosa. Pessoas com identidades pessoais fracas e incertas facilmente sucumbem ao mercado das seitas, de ideologias fundamentalistas, fanáticas e totalitárias. Por outro lado, os meios e os fins confundem-se e perde-se o sentido de um tempo que não se esgota no imediato e no instrumental.

 

Charles Péguy e Jacques Maritain falaram dos polos político e profético da vida – ambos são indispensáveis, no primeiro, cuidamos da relação entre as pessoas na cidade; no outro, procuramos sentido para além do imediato. A vida faz-se dessas duas referências. Daí que a sinodalidade seja não apenas “a necessidade de caminharmos juntos e de pensarmos juntos, mas também a oportunidade de percebermos ao longo desse caminho a compatibilidade entre temas que são, muitas vezes, discutidos separadamente. Cada passo no caminho para uma compreensão mais profunda de um dos grandes temas teológicos traz uma nova luz sobre os outros”. Não podemos viver sem transcendência e a liberdade de consciência permite distinguir e completar os planos, de modo que a dimensão espiritual não ponha em causa o espaço plural da polis. E assim Teilhard de Chardin está presente na lição de “Fratelli Tutti”, considerando “a cooperação, a parceria e o apreço mútuo como motores do desenvolvimento em vez da luta pela sobrevivência”. A idade do Espírito Santo de Joaquim de Flora deve, assim, ser lida não como um contraponto relativamente à presença do Pai e do Filho, mas como uma continuidade. O Pentecostes é natural presença do Espírito na História. Afinal, como ensinou o Mestre Eckhart, “o homem exterior tem um deus exterior e o homem interior tem um Deus interior”. Como realidades do mundo da vida, “religare” e “relegere” constituem o fenómeno religioso como natural no seio da humanidade, fator de coesão e de reflexão, de ligação e de confiança. Somos uma comunidade de peregrinos, a quem se pede que saibamos escutar-nos uns aos outros. “A igreja tem a obrigação de ser a voz daqueles que não têm voz e tem de interpretar a mensagem que nos é dirigida e nos é transmitida por Deus fora das fronteiras da fala humana”.

 

A noção de ecumenismo alarga as fronteiras e chega à compreensão franciscana da “Laudato Si’”. Tomás Halik crê, assim, sinceramente numa renovação sinodal, numa partilha de responsabilidades, num encontro de todas as mulheres e homens de boa vontade. Não se trata de alimentar qualquer ilusão, mas de compreender quem é o nosso próximo e de fazer da atenção e do cuidado a nossa ordem do dia. E esta renovação sinodal “inclui o aprofundamento do respeito mútuo e do diálogo entre três componentes da Igreja; a hierárquica (representando a continuidade da tradição), a democrática (representando o sensus fidelium, a experiência da fé de todo o povo de Deus) e a carismático-profética (representando a presença do Espírito de Deus). Se a Igreja realmente enveredar por esse caminho, a relação entre a fé do indivíduo e a fé de uma Igreja assim entendida será muito mais dinâmica, mais rica, e mais profunda. Não se tratará de uma obediência de tipo militar, mas de uma escuta comum, de um enriquecimento mútuo, uma complementaridade, uma busca comum, uma viagem comum a profundidades inesgotáveis”. Eis a atualidade de uma obra que nos põe perante os desafios fundamentais do mundo contemporâneo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (XXV)
DAVID MOURÃO-FERREIRA ATOR
por Duarte Ivo Cruz


Temos alternado, nesta série, textos obedecendo a critérios distintos mas obviamente complementares: por um lado referências a atores e encenadores “profissionais” no sentido do exercício constante e dominante da atividade; por outro lado, referências a personalidades destacadas do meio artístico, literária e até politico, que marcaram também, na obra e no talento, a vida cultural-teatral e do espetáculo.

David Mourão-Ferreira é ainda hoje, quase 20 anos decorridos sobre a sua morte, um exemplo flagrante deste grupo escolhido de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro-espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, conciliado, no que respeita ao teatro, com a escrita e a produção de algumas peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.

Cito, nessa área específica da criação teatral, “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, como já aqui vimos, peça nunca publicada, mas à qual se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, com sucessivos nomes, até à versão e edição definitiva em 1988.

E nesta dramaturgia breve conciliam-se aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referência permanente   a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social dos dias de hoje. Tudo isto num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem diretamente ligadas a versões cinematográficas da sua ficção – e uma vez pelo menos até como interveniente direto.

Mas voltemos ao teatro. Em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG (nº145/146, julho - dezembro de 1997, dir. Joana Morais Varela) publicou um vasto memorial sobre David Mourão-Ferreira, em que tive o gosto de colaborar, e que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David à escritora Graziana Somai. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Exma. Srª Professora D. Carmen”.

E justamente: este escritor de obra imensa e variada, mas limitada no teatro a quatro textos, sendo um esquecido (“O Irmão)”, outro nunca publicado (“Isolda”) os outros publicados mas profundamente e sucessivamente alterados até às versões finais, foi ator no Teatro Estúdio de Lisboa, companhia referencial como já aqui lembramos, da renovação do teatro português – e foi ainda ator esporádico em outas produções e em outros espetáculos.

Ouçamos a esse respeito as suas recordações na entrevista citada:

“Comecei por participar num grupo de teatro da própria faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) Isolda e Contrabando. Entrei como ator em peças da Comedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”…(ob. cit,).

Em artigo que publiquei na revista Colóquio citada identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão-Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.  

E mais uma nota pessoal: em conversas com David Mourão-Ferreira, a propósito de estudos que publiquei sobre o seu teatro, David referiu-me a intenção e escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett. Ora, bem podemos dizer que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária e até política – ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências. 

Mas sobretudo ambos foram profundamente renovadores da época respetiva, e como tal continuam ambos profundamente modernos.

(cfr. “Infinito Pessoal – Homenagem a David Mourão-Ferreira” in “Colóquio Letras” cit.)


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 27.05.15 neste blogue.

UMA FANTÁSTICA VILA RICA

  
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O património cultural como realidade viva tem na “Visita Guiada” de Paula Moura Pinheiro na RTP-2 uma bela ilustração, que nos permite não apenas conhecer melhor a História, mas também compreender a sua importância, com os seus fatores diversos e complexos.  No ciclo sobre a realidade brasileira, deparamo-nos com uma pluralidade de elementos que permitiram ao Brasil ter nos nossos dias dimensão e coesão territorial e linguística, só possíveis e invejáveis graças à coexistência de razões múltiplas, às vezes contraditórias, que conduziram à criação da realidade atual.

Em Ouro Preto, no coração de Minas Gerais, a extraordinária Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar, que podemos definir como Portugal em laboratório, como se regressássemos, por magia, ao século XVIII, num tempo em que, depois da cana-de-açúcar, veio a febre do ouro, mergulhamos na coexistência de vontades diversas que permitiram chegar à realidade contemporânea. Em diálogo com a historiadora Júnia Furtado, somos levados aos confrontos gerados pela exploração das novas riquezas, na Guerra dos Emboabas (1707-1709), entre os bandeirantes paulistas capitaneados por Manuel de Borba Gato e os exploradores do ouro, onde se destacou Manuel Nunes Viana, natural de Vieira do Minho. O conflito viria a ser resolvido pela intervenção das forças enviadas pelo Rei de Portugal. A História é muito fecunda em episódios como este e o seu relato permite-nos compreender como o Brasil resultou de um sábio encontro de vários povos e influências que culminou numa unidade complexa que apenas pode ser entendida na dialética de contrários que Sérgio Buarque de Holanda bem compreendeu nas suas Raízes do Brasil. Ouro Preto foi ainda a grande cidade que abrigou em 1789 a dramática Inconfidência Mineira, onde se destacaram Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, e o árcade Tomás António Gonzaga, célebre autor de “Marília de Dirceu”, nome grande da literatura da língua portuguesa. Numa realidade multifacetada que envolveu os povos naturais do território, os colonizadores paulistas, os emboabas, os portugueses, os africanos, os jesuítas construtores das reduções, chegamos à influência unificadora decisiva do marquês de Pombal e ao facto de o Império ter-se consolidado quando o Rio de Janeiro se tornou a influente capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A convergência de fatores, na aparência contraditórios, ditou a afirmação do importante Estado que conhecemos. Como disse Antonio Candido: «um jogo de oposições e contrastes impede o dogmatismo e abre campo para a meditação de tipo dialético, (…) em benefício dos rumos abertos pela civilização urbana e cosmopolita, expressa no Brasil do imigrante»… A memória fantástica de Ouro Preto e traz-nos a lembrança da tensão entre povos com diversas sensibilidades, com os seus efeitos projetados no tempo. Em vez de uma ideia ilusória centrada no passado ou nos ganhos imediatos, importa tirar lições de largo prazo, baseadas na complexidade dos estímulos, compreendendo que as raízes históricas são necessárias para lermos a realidade. Trazemos assim connosco uma multiplicidade de razões que nos permitem sentir o Brasil, sem paternalismo, como revelação do que somos e como tomada de consciência das diferenças. O barroco brasileiro encerra uma multiplicidade de influências que permitem conhecer um mundo outro que a aventura do encontro permitiu descobrir. 


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


216. ATÉ SEMPRE, FERNANDO!


Conhecemo-nos pessoalmente no lançamento simultâneo de dois livros de um conhecido ensaísta e escritor.     

Estarmos sentados, lado a lado, propiciou a conversa e a empatia foi recíproca.

Os contactos, presenciais e virtuais, continuaram e permaneceram, intervalados pelas deslocações do Fernando Venâncio entre os Países Baixos (para onde emigrara, trabalhava e constituiu família) e Portugal (onde regressava quando podia).   

Foi de uma enorme satisfação e agrado conhecê-lo e sermos amigos, dialogarmos em longas e boas conversas em esplanadas, entre almoços, jantares, telefonemas, convites para apresentações públicas de novos livros (sem esquecer a feira do livro), algumas caminhadas, deslocações pontuais entre Lisboa, Queluz e Sintra. E através da internet e uma ou outra rede social. Se possível, uma agradável, fascinante e interessante conversa a dois tinha sempre prioridade.         

Como linguista e figura marcante e singular do panorama académico e cultural, e de um entusiamo contagiante pela língua portuguesa e galega foi, para mim, um privilégio tê-lo como amigo. Havendo discordância, sempre houve tolerância e respeito mútuo.

Depois do retorno à pátria nativa, para Mértola, a sua morte recente não me surpreendeu. Falava com ele, nos últimos tempos, amiudadas vezes, de cada vez com mais dificuldade, até ficar incontactável. 

A sua partida emocionou-me e consternou-me muito.     

Não esqueço a sua opinião, inteligente e sincera, sobre os textos que ia publicando neste blogue.

Nem o seu amor e dedicação pela Galiza.     

Nem a inesperada surpresa que me deste, Fernando, com os agradecimentos finais do teu livro “Assim nasceu uma língua”, ao referires o meu nome, entre outros, com “Um sincero e forte obrigado a quantos, no decurso de anos, com um pequeno ou grande contributo, tornaram este trabalho menos árduo”.     

E que palavras generosas teres escrito, para mim, em dedicatória, que esse teu “livro testamento” alguma coisa de precioso me deve, sem que eu, alguma vez, o tenha consciencializado (mesmo sabendo que muito falávamos sobre o nosso idioma).

Por tudo, tudo o que vivemos, o meu muito obrigado.     

Até sempre, meu bom Amigo Fernando!


06.06.25
Joaquim M. M. Patrício

POESIA

E digo que eterno é isto que vivemos 

  

    Michelangelo


1.

E digo que eterno é isto que vivemos


mesmo quando fingimos ser aqueles

que na noite andam sempre à frente

das mãos que não seguram

o candeeiro

da viagem ainda por fazer


2.
E digo que eterno é isto que vivemos


quanto transpomos os ferros, as vésperas, as ânsias,

os sonhos em que nos abandonamos

as saídas que nos dizem o quanto dos escuros

se extraem caminhos certos


3.

E digo que eterno é isto que vivemos


com as pianolas nas promessas de todos os amores

acontecidos

e por acontecer

porque esses respondem ao chamado

se mesmo inseguros

o medo não for nosso


4.

E digo que eterno é isto que vivemos


ao encontro de mapas sumidos

que nos destacam o porto

o pão e a flauta

para ali morarmos por uns tempos

até ao erro de querermos anexar mundo

e ser muito tarde, muito noite

e não sobrar consolo.


5.

E digo que eterno é isto que vivemos


o lugar, a casa, a grande mesa,

o tempo sempre insuficiente do amor

e o amor

ainda a acariciar-nos o olhar 

esse que já viu inexistências e deleites

e ele

o amor

a ilibar-nos


Teresa Bracinha Vieira