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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 18 a 24 de março de 2024


Há 750 Anos, a 7 de março de 1274, morria em Fossanova (Lácio) S. Tomás de Aquino, um dos mais influentes teólogos de sempre, que hoje está a ser relido a uma nova luz, deixando vestes conservadoras, para passar a ter uma leitura avançada e original.

 


E SE VIVESSE NOS DIAS DE HOJE?

Há anos, Umberto Eco perguntava: o que faria Tomás de Aquino se vivesse nos dias de hoje? Aperceber-se-ia de que “não poderia nem deveria elaborar um sistema definitivo, como uma arquitetura acabada, mas preferiria uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Diria, por certo, que deveria pensar outra coisa”. De facto, como afirmou Karl Rahner o aquinense era um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão. Tanto mais saberemos de Deus quanto mais nos dermos conta da nossa incapacidade e das nossas limitações para compreender a transcendência. Por isso, S. Tomás sempre se atreveu, ousando a ser lúcido acerca dos limites da nossa ousadia.


Os próximos três anos marcarão três grandes aniversários da trajetória de S. Tomás de Aquino: seu nascimento, sua morte e sua canonização. Em 2025 será comemorado o seu nascimento. Não se conhece a data exata, mas é sabido que nasceu em Roccasecca no Lácio, no ano de 1225 numa família influente. Os dominicanos em Toulouse, na França, onde o grande filósofo e teólogo está sepultado, celebrarão o “Doutor Angélico” com vários eventos, que permitirão revelar a sua inesperada atualidade, como o Concílio Vaticano II reconheceu expressamente. Em 2023 passaram 700 anos da sua canonização que ocorreu em 18 de julho de 1323, sob o magistério do Papa João XXII, num momento a partir do qual a sua celebridade correu o risco de poder perder a força espontânea da sua originalidade. O tempo, porém, foi permitindo compreender que a principal virtude do seu contributo foi a do apelo constante a poder ver a presença de Jesus Cristo como companheiro das nossas audácias e exigências.


UM TEMPO DE REFLEXÃO
No ano corrente, assinalam-se os 750 anos da morte, que ocorreu em 7 de março de 1274. Estas três ocasiões são motivo para termos um melhor conhecimento da sua personalidade e da sua obra, o que constitui um apelo permanente ao seu espírito de renovador da fé, de quem compreendeu o amor, o respeito mútuo, as bem-aventuranças e a compreensão do bem comum como um sinal prático e humaníssimo da vida humana. Chesterton disse que “Tomás de Aquino surgiu de maneira estranha e algo simbólica no centro do mundo civilizado do seu tempo, no ponto central onde os poderes controlavam a cristandade”. E assim pôde revolucionar o modo de pensar, indo descobrir no mundo grego Aristóteles para abrir novas perspetivas sobre a realidade. “Com argumentos sinceros pôde escalar as torres mais altas e falou com os anjos sobre os telhados de ouro”, para usarmos de novo a expressão do autor de “O Homem que era Quinta-feira”. E recordemos um célebre discípulo português, Frei João de S. Tomás, O.P. (1589-1644), que procurou seguir com fidelidade a orientação de S. Tomás de Aquino na procura de uma ligação entre a contemplação e a ação. A contemplação é uma certa forma de ação interior, dinâmica, progressiva, operante, dependendo da fé mas também do conhecimento, como resulta da teologia dos dons do Espírito Santo, entre os quais se encontra o dom do entendimento. E a contemplação anseia, como o veado do salmo, pelas águas frias dos regatos das montanhas, no sentido da visão distante e próxima do amor divino.  


CONVERSÃO E IMAGINAÇÃO
O padre Giuseppe Barzaghi, O.P., dominicano, professor de Teologia fundamental e dogmática na Faculdade Teológica da Emilia Romagna e docente no Estúdio Filosófico Dominicano de Bolonha, na obra La maestria contagiosa, estudou o tema essencial do poder imaginativo de S. Tomás, demonstrando como o grande teólogo foi um mestre na cultura de imagens, enquanto discípulo de Aristóteles, que disse em De Anima, na tradução latina feita por Guilherme de Moerbeke, nihil intelligit anima sine phantasmate. O que isso significa? Nossa alma não entende nada sem imaginação. Quando tentamos entender algo, é por meio de uma conversio ad phantasmata. Devemos converter-nos à fantasia, segundo a relação entre a contemplação e a ação. E isso significa dar exemplo. É por isso que S. Tomás continua fascinante. Ele nunca deixa uma visão, digamos, teoricamente rígida, descoberta, a não ser reconduzindo-a à descoberta das imagens, que são os exemplos e formas de podermos compreender a vida e os outros, a que não podemos ser indiferentes.


Quando quer representar a atividade de nossa razão no conhecimento, O Doutor Angélico toma a imagem do voo dos pássaros e diz: há o pássaro que voa de forma circular e rodando, ou o voo que vai para frente e para trás, ou o voo que vai de cima para baixo e de baixo para cima. O movimento circular é o movimento contemplativo, que vai para frente e que liga a causa e o efeito, e que vai para trás, do efeito para a causa. De cima para baixo é a dedução, de baixo para cima é a indução. Lembrando o voo dos pássaros trazemos à mente todas as formalidades da atividade cognitiva, e compreendemos a importância da contemplação e da ação. Eis como S. Tomás de Aquino nos ensina a compreender a complexa realidade que nos cerca, a humanidade que nos enriquece, a dignidade que nos afirma e reconhece, a fé, o conhecimento e a ação que nos animam. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt., 5, 8).


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO JÚDICE 

  


Fábula industrial


As chaminés das fábricas tinham
pescoços de cegonha, e quando deitavam
fumo era como se as cegonhas abrissem
as asas. Quando o fumo era preto,
porém, as cegonhas transformavam-se
em corvos de grandes pescoços feitos
de tijolo; e ao contrário das cegonhas
não voavam, mas faziam soar as sirenes
com os bicos metálicos, para que
os operários saíssem do seu ventre
em direcção a casa. No dia
seguinte, se o fumo fosse branco, as operárias
agarrar-se-iam às asas da cegonha
e puxá-las-iam, como se fossem
linho, para as enrolar e meter
nos contentores que os barcos esperam
no cais, para as levar para os países
com falta de lençóis. É por isso que
os ninhos de cegonha, nos grandes postes
eléctricos estão vazios; e que as raposas
correm de uma árvore para outra,
à procura de um ramo em que esteja
um corvo, sem conseguirem encontrar
o queijo que a fábula lhes prometeu.


2019, unpublished
© Nuno Júdice


Industrial fable


The factory chimneys were like
stork necks, and when they gave off
smoke it was as if the storks were opening
their wings. When the smoke was black
however, the storks changed into
crows with huge necks made of
bricks; they didn’t take flight like the storks
but instead sounded sirens
with their metallic beaks, letting
the home-bound workers out
of their bellies. The following
day, if the smoke was white, the workers
would hold on to the storks’ wings
and stretch them as if they were
linen in order to fold them and
store them in containers on waiting ships
which would take them to countries
where there was a shortage of sheets. This
is the reason stork nests on top of tall
electric pylons are empty; and also the
reason why foxes run from tree to tree
looking for a perching crow, unable to find
the fable-promised cheese.


© Translated by Ana Hudson, 2019
in Poems from the Portuguese 

ANTOLOGIA


ATORES, ENCENADORES (VI)
A COMPANHIA REY COLAÇO-ROBLES MONTEIRO: QUALIDADE E LONGEVIDADE
por Duarte Ivo Cruz 


Num meio cultural e profissional tão instável como é o teatro-espetáculo português, merece destaque a continuidade e a capacidade de renovação da Companhia Rey Colaço- Robles Monteiro, designadamente na sua longa permanência, ação cultural e capacidade de renovação, a nível de elencos e a nível de repertório, o que nem sempre é reconhecido.


A longevidade tem destas coisas e então, num meio, repita-se, instável como é por definição o teatro, e em particular entre nós, mais se fez e faz notar o quase meio século de atuação da empresa. Mas refiro aqui a empresa como tal: pois a própria Amélia Rey Colaço ainda nos anos 80 participou em Portalegre num espetáculo de homenagem a José Régio.


Por seu lado, Robles Monteiro faleceu em 1958: já anos antes deixara de exercer a atividade de ator, mas numa primeira fase duradoura da Companhia integrou os elencos e encenou numerosíssimas peças do repertório, com destaque também para autores portugueses, e designadamente Ramada Curto.


É evidente que tão longa permanência em cena implicou necessariamente desigualdades de atuação e assimetrias no conjunto da obra cultural exigível a uma companhia oficial. E isso envolve tanto os aspetos de repertório como de elenco. Mas hoje não restarão duvidas acerca da qualidade global dos sucessivos elencos da Empresa Rey Colaço – Robles Monteiro e da relevância que, tantas e tantas vezes assumiu na revelação e atualização de repertório – e isto, tanto no âmbito da dramaturgia portuguesa como da dramaturgia universal.


Amélia estreou-se em 1917 no então chamado Teatro Republica, (São Luiz), com uma peça então relevante, “Marianela” do dramaturgo espanhol Benito Pérez Galdós. Gloria Bastos e Ana Isabel P. T. de Vasconcelos situam o sucesso no contexto do espetáculo teatral da época:


“Mas talvez a revelação mais significativa tenha sido a de Amélia Rey Colaço, cuja estreia no Republica com a peça Marianela foi desde logo saudada calorosamente pelo público e pela crítica”.  E remetem para Vitor Pavão dos Santos: “demonstrou ser uma atriz diferente de todas as outras, aliando a um talento e cultura invulgares, métodos de representação verdadeiramente modernos” (cfr. G. Bastos e A.I .Vasconcelos in  “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira República” ed. MNT 2004 pag.146: V. P. Santos in “A Companhia Rey-Colaço – Robles Monteiro” ed. MNT 1987 pág. 4).


A companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, constituída como tal em 1923, instala-se pois no D. Maria II em 1929 como companhia oficial e lá se mantem-se até 1964, quando o incendio que quase destruiu o teatro (e que neste momento é invocado numa exposição de fotografias no próprio D. Maria II) remeteu a companhia para o Teatro Avenida. E em 1967 o Avenida arde! A companhia passa então para o Capitólio até 1970, depois para o Trindade e por muito pouco tempo, para o São Luiz. Extingue-se em 1974.


O repertório clássico teve momentos muito altos. Recordo, entre tantos mais, um “Tartufo”, um inolvidável “Romeu e Julieta”, ou o “Macbeth” que estava em cena na noite o incendio e foi reposto no Avenida, mas antes apresentado num espetáculo no Coliseu, em que toda a classe profissional e intelectual da época se reuniu no palco.  


Mas importa agora referir a qualidade do repertório moderno, ao longo de todos estes anos, e particularmente, a sucessiva atualização que foi praticado, tarefa por vezes complicada, dada a época e as circunstâncias.


Se reportarmos a 1934 encontramos o escândalo de publico que foi a estreia dos “Gladiadores” de Alfredo Cortez, peça iniciática de um certo expressionismo ainda hoje escasso na história do teatro português. E nessa linha de modernidade, encontramos estreias -  mais ou menos compreendidas e aplaudidas - de toda uma época e de uma geração que vai de Carlos Selvagem a Ramada Curto, ambos com dezenas de peças, de Virgínia Vitorino a Romeu Correia e José Régio, a Bernardo Santareno e Luis Francisco Rebello entre tantos mais. Encontramos também Pirandello (estreia mundial de “A Volupia da Honra” com a presença do autor), Lorca, Eugene O’Neill mas também Albert Camus, Marcel Pagnol, Ionesco, Cocteau, Harold Pinter (“Feliz Aniversário”), Durrenmatt (“Visita da Velha Senhora”), Edward Albee (“Equilíbrio Instável”) ou Slamowir  Mrozeck (“Tango”). E em muitas delas, Amélia marcou o seu talento de atriz.


E finalmente: a concessão do teatro nacional obrigava à programação de clássicos portugueses. Nem sempre esta clausula contratual atingia objetivos de atualização das encenações e dos espetáculos em si: mas eram sempre de grande qualidade e garantiam, sobretudo a um púbico escolar, o contacto com os clássicos portugueses em cena, que é onde eles devem ser vistos e estudados…


Não entramos na lista de atores que trabalharam na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ou dos cenógrafos e figurinistas, com destaque aqui para Almada. Mas referimos apenas Mariana Rey Monteiro, filha de Amélia e de Robles – e ela própria grande atriz.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 14.01.15 neste blogue.
   

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


166. PRIMAZIA LEGAL E MORTE MORAL COMO JUSTIFICAÇÃO


1. Professor - As sociedades pensam que se regem por uma coisa chamada “moral”, mas não é verdade. 
Regem-se por uma coisa chamada “lei”.
Não se é culpado só por ter trabalhado em Auschwitz. Oito mil pessoas trabalharam em Auschwitz. Dessas oito mil, apenas 19 foram condenadas e apenas 6 por homicídio. Para provar um homicídio temos de provar intenção. É a lei.    
Aluno - A questão nunca é se foi errado, mas se era legal e segundo as nossas leis?     
P - Não. Segundo as leis da época.   
A - Mas não é redutor?     
P - Sim. A lei é redutora.   
A - Por outro lado, suspeito que as pessoas que matam outras pessoas tendem a estar conscientes de que é errado (excerto do filme “The Reader”/“O Leitor”).  


Bruno Day (BD), guarda das SS da Alemanha nazi, no campo de concentração de Stutthof, foi condenado, aos 93 anos, por ter colaborado no assassinato de 5230 pessoas alegando, em seu benefício, só ter, à data, 17, sendo menor e um membro inócuo de um sistema legal autoritário e burocrático a que devia obediência. A sua defesa recorreu ao argumento de Adolf Eichman (AE), no julgamento em Jerusalém, ao invocar a obediência hierárquica inserida numa estrutura administrativa de hierarquização rígida e de dependência acrítica, que anulava o espírito crítico, a ética e a moral, pelo que ambos teriam sido vítimas duma autolimitação ou remoção da sua capacidade de livre arbítrio. 


A centralidade biográfica e histórica do Holocausto começou por ter como tema as vítimas, uma espécie de compensação que não correspondia à realidade, ao não priorizar os perpetradores. Entre estes estavam os que tinham o poder, mandando executar ordens, que eram cumpridas pelos que obedeciam. Existia a convicção de que Hitler e os seguidores diretos eram monstros psicopatas, a que os seus subordinados hierárquicos e o povo alemão em geral tinham obrigatoriamente de obedecer, contribuindo para a desculpabilização da sociedade germânica. 


A rutura com essa análise sucedeu com o julgamento de Eichmann, com a sua transmissão e os relatos feitos por Hannah Arendt ao introduzir o conceito de “banalidade do mal”, do burocrata que não se sentia responsável, porque reduzido à mera dimensão de uma peça irrelevante de uma engrenagem e máquina burocrática que o asfixiava e remetia para um estatuto sub-humano, o que lhe permitia justificar a sua participação em atos criminosos. Se assim era com funcionários burocratas dependentes hierarquicamente e mais bem posicionados para conhecer a solução final judaica dos seus superiores nazis, por maioria de razão para o povo alemão que, em princípio, teria um menor ou nenhum conhecimento, dada a sua maior distância do núcleo central decisor.    


2.
A defesa da tese de que AE e BD, entre outros, naquele tempo e naquelas circunstâncias, por razões excecionais, foram as primeiras vítimas do sistema legal e da estrutura administrativa vigente, foi contestada pela acusação ao alegar que o ser humano nunca pode invocar a sua morte ética e moral como justificação para a colaboração em atos criminosos.   


Fritz Bauer, procurador alemão que lidou com processos relativos a Auschwitz, afirmou: “Este sistema monstruoso só funcionava porque todos participavam nele. Bastava uma só pessoa, um só funcionário, contrariar uma ordem e todo o sistema poderia ter sido afetado. É por isso que aqueles que habitualmente eram apelidados de pequenos foram indispensáveis e, como tal, devem ser penalmente responsabilizados”. Nos julgamentos de Nuremberga, pretendeu-se provar que todos e cada um dos acusados sabiam da existência dos campos de concentração, que o horror, o medo e o terror abominável a eles associados eram instrumentos através dos quais mantinham o seu poder e baniam a oposição às suas políticas. 


O que nos levou à terrífica constatação de que os crimes contra a humanidade não são apenas obra de uma minoria de pessoas facínoras ou malignas que detêm o poder, mas de milhares de seres humanos tidos como “comuns”, com a cumplicidade de milhares ou milhões, numa ambiência de indiferença generalizada (o que é diferente duma culpa coletiva).   


É mais fácil racionalizar as coisas no decurso da guerra, por patriotismo e ideias similares (ignorando tudo o resto), do que evitar delitos contra a humanidade e violações do Direito Internacional, em que o vencedor tende a ser o “juiz” e o acusado o “vencido”, sendo titubeante o progresso alcançado (por vezes regressivo), neste contexto, sempre algemado por interesses geoestratégicos das grandes potências, o que não implica desistir de expurgar a duplicidade de critérios que sobressai em temáticas que deveriam ser universalmente consensuais e exequíveis.


A relevância deste tema ultrapassa as fronteiras da Alemanha. Interpela toda a Humanidade. Aconteceu com o totalitarismo nazi, o soviético e outros, com ramificações diferenciadoras e comuns no presente. Acreditou-se, erroneamente, que tínhamos atingido um estádio de civilização tão evoluído, uma sociedade de bem-estar tão permanente, que a guerra e as crises não regressariam, tendo como adquirido um ilusório crescimento perpétuo a todos os níveis. O que nos interroga sobre a natureza da condição humana e quão longínqua está a materialização da Paz Perpétua de Kant, uma utopia, que pode e deve ser repensada, para que se criem alternativas com maior aderência à realidade e o seu máximo de viabilidade.          


15.03.24
Joaquim M. M. Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

O FUTURO DE TUDO (3) 

  


A linguagem empobrecida, empobreceu o pensamento que com ela adquire e exprime significação, e por entre este vazio nasceu e cresceu o pasmo dos deslumbrados.

A linguagem sofreu mutações e a capacidade da sua apropriação por parte dos seres já dominados inibe que dessa metamorfoseada realidade se possam dar conta.

Há um novo tempo e há um novo espaço de plurissignificações que em si muito contém a mercadoria do mundo ilusório.

A barbárie do simulacro antecedeu tanta inverdade que os seres confundidos e anestesiados se têm mostrado incapazes do exercício do questionar.

As migalhas que se foram aceitando do poder e da intectualidade que com ele privaram e privam, constituíram a primeira prova da mansuetude cerebral dos múltiplos inquilinos dominados neste sistema.

Até a IA chegou em grande parte pela mão de uma informação de botox, provocadora de paralisia aos estímulos neuronais, de modo que se confundissem as inevitabilidades concordantes e discordantes, num rodopio sem significação.

Tudo o que vai chegando a um mundo sem sonho, e consequentemente sem a grande força da insubmissão, instala-se como fatalidade, já que a condição inquieta do homem se deixou subtrair da sua vida, permitindo o poder titânico que parece ter feito desmoronar o pensamento perscrutador.

E tudo ficou destinado a ficar impune. Até quem muito amedrontou com o esplendor da IA, experimentou o uso de um poder sobre uma civilização que afinal pretendia anular.

O poder incontrolado das novas realidades é tema do qual se desertou sem enfrentar, e a insatisfação absolutamente anémica, perdeu posto e não constitui doença.

O que acontece hoje será meramente pitoresco daqui a um ano, e não se estranha não compreender o agora neste imenso potencial transformador.

Navegar de um lado para o outro pode ser o mesmo que não sair do sítio de não-partida.

A capacidade analítica sobre os inúmeros dados potenciadores de um estilo de aprendizagem e desempenho que a IA transporta com a maior capacidade de sucesso, situa-se no polo oposto do não-questionamento de uma cultura simplificadamente adormecida.

Apesar de todas as possibilidades fantásticas, fascinantes e promissoras que a IA oferece, as preocupações em torno do seu uso, nomeadamente o expor uma notícia falsa indistinguível da realidade, terá consequências críticas para a sociedade, ou a tensão entre a palavra e a essência não fosse o grande poder do mundo simulado e enfim, do caos da vida.

Será que todos acham que ainda é cedo para que esta preocupação tenha raízes?

Não é fundamental que os que desenvolvem a IA e os seus usuários sejam responsáveis pelo seu uso e considerem as implicações éticas das suas criações?

A maior ferramenta da IA é a confiança, caso o abaixamento do pensar e do sentir, não tenham chegado à subcave da passagem por aqui dos seres humanos.

Que os fios poderosos que envolvem os homens não os façam acreditar num doravante de otimismo de consumo que os sacia.

A IA é agora uma eficiência se orientada, e o bule cujo conteúdo é mar, nele se não confina.


Teresa Bracinha Vieira

"O VENTO ASSOBIANDO NAS GRUAS"

  


Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.


Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a  compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.


“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda. 


GOM

EXPERIÊNCIAS NEGATIVAS DE CONTRASTE, ÉTICA E RELIGIÃO

  


Numa história de mistura enigmática de bem e de mal, de alegria e de desgraça, de beleza e de terror, de sentido e de absurdo, o ser humano é convocado para o espanto, positivo e negativo. O ponto de arranque para a reflexão será sempre o assombro,  positivo e negativo, sendo este provocado concretamente pela massa incrível do sofrimento humano, e, mais imediatamente, pela memória irrecusável da dor infinda das vítimas inocentes. O Homem quer ser feliz e é infeliz. No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma humanidade boa, solidária e verdadeira. Toda a filosofia e teologia que recusem reduzir-se a um mero exercício académico, repetitivo e inútil, hão-de referir-se sempre à reflexão crítica sobre as condições de possibilidade, objectivas e subjectivas, dessa esperança do  advento de uma humanidade finalmente reconciliada e livre.


Perante um mundo onde 1.200 milhões de pessoas sobrevivem com 1 dólar por dia, outras 925 milhões passam fome, 114 milhões de crianças em idade escolar não têm escola (63 milhões são meninas), onde anualmente perdem a vida 11 milhões de menores de cinco anos com doenças tratáveis, onde milhões de pessoas têm de deixar a sua terra e deslocar-se por causa das alterações climáticas (secas e inundações catastróficas) e os horrores de guerras em curso, onde o fosso entre os escandalosamente ricos  e os pobres é cavado cada vez mais fundo, onde o aquecimento global e o armamento nuclear põem em perigo a própria sobrevivência  da Humanidade, onde a cultura tecnocrática reduz o Homem à unidimensionalidade, onde continua a discriminação da mulher e das minorias, onde cresce a experiência do niilismo, a consciência ergue-se indignada: o mundo não está em ordem e não pode continuar tal como está!


É concretamente nas experiências negativas de contraste que se aprende a distinção entre bem e mal e o que significa dignidade humana.   Como escreveu o célebre teólogo Edward Schillebeeckx, “o que experienciamos como realidade, o que diariamente, através da televisão e outros meios de comunicação social, vemos e ouvimos acerca desta realidade não está de modo nenhum ‘em ordem’; há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência humana de sofrimento, maldade e infelicidade é fundamento e fonte de um Não fundamental, que as pessoas pronunciam sobre a facticidade do seu ser-no-mundo.” Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso Sim. Podemos designá-lo como um consentimento 'no desconhecido’, no que nem sequer é determinável com conteúdo positivo: um outro mundo melhor, que ainda não existe em parte alguma. Por outras palavras: na pura aceitação da possibilidade de melhorar o nosso mundo; abertura ao desconhecido e melhor”. Por um lado, um Não indestrutível, um veto radical ao mal; por outro, um Sim aberto a um mundo digno do Homem, um Sim que é mais forte do que o Não, pois é a condição de possibilidade da revolta e indignação contra a indignidade.


Estas experiências negativas de contraste constituem o núcleo da experiência ética, comum a crentes e não-crentes, e base para um esforço solidário na luta contra a injustiça e na construção de um mundo com rosto humano. Mas  “aqueles que acreditam em Deus preenchem religiosamente esta experiência fundamental, que é una, embora com dupla face. Então, o ‘Sim aberto’ recebe mais orientação e perfil. O fundamento disso não é tanto, pelo menos não imediatamente, a Transcendência do ‘divino’ (que é inexprimível, por assim dizer, anónimo, não-articulável) como (pelo menos para os cristãos) o rosto humano reconhecível dessa Transcendência, manifestada entre nós no homem Jesus, confessado como Cristo e Filho de Deus. Deste modo, para os cristãos, o lamento radical da Humanidade transforma-se numa esperança fundada. No núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus. É assim a história dos cristãos”.


No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão. Mas a finitude é ineliminável, e precisamente devido à finitude insuperável, a religiosidade surgirá sempre de novo na história. Outra vez  E. Schillebeeckx: “Para a fé, a finitude não-divina é precisamente o lugar em que o finito e o Infinito se tocam no mais fundo e é neste contacto profundo que se acende toda a religiosidade”. Por outro lado, o compromisso com o ser humano, na vivência mundana, é, concretamente na tradição cristã, não apenas ético, pois tem uma dimensão teológica. O cristianismo vê na luta pela humanidade do Homem uma profunda dimensão religiosa latente, “que tem essencialmente a ver com a compreensão de fé de que a finitude não é abandonada à sua solidão, mas transportada pela presença absoluta e salvífica do Deus vivo.” O cristianismo contém em si um potencial inesgotável de libertação. Se historicamente também foi causa de opressão e alienação, isso deveu-se a uma traição a si mesmo.


No confronto entre a ética e a esperança, pensando nas vítimas inocentes, Deus virá sempre à ideia, como viu a Escola Crítica de Frankfurt. Onde está a ética?, onde está Deus?, gritam as vítimas. 


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 de março de 2024

A VIDA DOS LIVROS

 


De 11 a 17 de março de 2024


Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes
(Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, da autoria de António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola.


DISCURSO DIRETO
Ao aproximarmo-nos do cinquentenário da revolução de Abril, importa reunir reflexões e testemunhos que nos permitam compreender a génese e o desenvolvimento dos acontecimentos históricos, não numa perspetiva comemorativa, mas num sentido que permita compreendermos a democracia como processo dinâmico, numa lógica prospetiva, de modo que o Estado e a sociedade civil se reforcem, através de instituições mobilizadoras e participativas, que permitam mediações que assegurem a vitalidade e a permanência do Estado de Direito, como sistema de valores baseado no primado da lei, na legitimidade do voto e do exercício e numa cidadania ativa. O melhor método neste sentido deve basear-se no testemunho e no exemplo de quantos se entregaram ao serviço público com inteligência e generosidade. Só o exemplo e a experiência podem ajudar no sentido das mediações eficazes, suscetíveis de impedir as tentações providencialistas que enfraquecem e destroem as democracias. Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes (Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, no qual os autores, António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola, conduziram entrevistas realizadas ao longo de vários meses, que permitiram um relato na primeira pessoa de um percurso de alguém que teve uma intervenção privilegiada na transição entre o final do Estado Novo e o alvor da democracia. Seguimos assim, desde a contestação ao regime anterior, em especial no meio universitário nos anos sessenta, a guerra colonial, a criação da SEDES, o fracasso da chamada “primavera marcelista”, a ocorrência do movimento de 25 de abril e os primeiros anos de institucionalização da democracia, em que Emílio Rui Vilar exerceu funções governativas em três Governos Provisórios e no Primeiro Governo Constitucional. 


UM DOCUMENTO FUNDAMENTAL
A leitura da obra é extremamente agradável e útil, acompanhando num ritmo vivo não apenas as raízes familiares do protagonista, mas também a progressiva entrada do jovem na vida social e cultural do seu tempo, avultando o facto de na Universidade de Coimbra ter sido fundador do Círculo de Artes Plásticas, organismo autónomo da Associação Académica, no qual convidou diversas personalidades, com grande sucesso, entre as quais a então surpreendente Maria de Lourdes Modesto, para falar sobre o Olfato e o Gosto, o que lhe valeu surpreendente reprimenda do reitor de então. Contudo, o teatro no CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) viria a ser um dos grandes motivos de afirmação do jovem Emílio Rui, enquanto presidente ativo e inovador, com uma militância cultural muito apreciada. Miguel Torga, Paulo Quintela, António Pedro, ou os jovens Eliana Gersão e António Barreto encontramo-los nesta imersão teatral que tão boas recordações deixou, apesar dos naturais dissabores com a censura, que impediu a representação de “O Crime na Catedral” de T. S. Eliot. O carro da queima das fitas desenhado por Vilar, apesar da admiração que este tinha por Camus, chamava-se “Les Mains Sales” em homenagem à peça de Sartre, levando os melhores alunos de orientações políticas diversas, mercê de uma camaradagem tolerante.


Em 1962, é mobilizado para o serviço militar e vai para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no mesmo ano de Cavaco Silva e José Vera Jardim. Parte para Angola como Alferes miliciano, regressando três anos depois. “A situação militar em meados de 1965 era de razoável controlo dos itinerários – explica-nos. Fora dos itinerários principais havia o risco das minas e de emboscadas”. Contudo ainda não havia zonas de conflito fora do Norte, porque o MPLA ainda não tinha iniciado atividade militar. Com o regresso à vida civil, volta para o estágio de advogado no Porto, mas depressa vai trabalhar na Administração, nos setores das Comunicações e Transportes e na Educação, até que lhe chega o convite de Vasco Vieira de Almeida para o Banco Português do Atlântico de Cupertino de Miranda. A experiência da gestão bancária torna-se essencial, permitindo alargar horizontes. O ano 1969 será especialmente profícuo, uma vez que as economias portuguesa e internacional conhecem profundas alterações, ligadas à internacionalização. António Champalimaud lança uma ofensiva junto do BPA, dando sinal de que o tecido económico se movimenta.


OS SINAIS DE MUDANÇA
Perante os sinais de mudança, considera que estes deviam ser aproveitados para a abertura e a fundação da SEDES será um momento fundamental. Vilar é eleito o primeiro presidente da Associação, por ter uma posição equidistante. A SEDES é o resultado de um “caldo de circunstâncias” e da “confluência de outras linhas de força” – “um conjunto de ideias e preocupações que, num grupo muito plural e com trajetos diversos, tinham o denominador comum da consciência de que era preciso encontrar uma saída, que a guerra não podia continuar eternamente”. A nova Associação junta “os católicos pós-concilares, os tecnocratas com o sentimento comum de que era preciso ultrapassar o bloqueio que existia no país”. O método dos cenários é adotado no exercício “Portugal, para onde Vais?”. Trata-se, no fundo de procurar caminhos visando a democracia. No entanto, 1972 é o ano da perda total das esperanças, com a reeleição de Américo Tomás. Francisco Sá Carneiro ainda faz uma tentativa de convencer o General Spínola a candidatar-se. Miller Guerra e Sá Carneiro renunciam aos lugares na Assembleia Nacional e ocorre a vigília da Capela do Rato. Apesar da perda de ilusões, a SEDES lança uma importante iniciativa cívica na Defesa do Consumidor, que leva à constituição da DECO. A experiência da SEDES será, no entanto, muito importante para Emílio Rui Vilar, e em 25 de Abril, torna-se um símbolo, quer ao surgir entre os primeiros responsáveis políticos a ter voz na RTP, quer ao ser chamado para os Governos Provisórios. A sua independência partidária é essencial.


Os pormenores na descrição da vida política no tempo dos governos provisórios têm um interesse indiscutível. Sentem-se as tensões e as contradições, os choques entre o poder militar e o poder civil, e a posição moderada de Rui Vilar é alvo de desconfianças. É importante a sua participação, no início de 1975, na feitura do Programa de Política Económica e Social, sob a coordenação de Ernesto Melo Antunes. “Dentro do grupo havia um razoável consenso. Claro que havia um bloco mais teórico e académico, constituído pelo Vítor Constâncio e o Silva Lopes. A Maria de Lourdes era a mais idealista. E depois havia um terra-a-terra, que era eu, que procurava que as coisas tivessem alguma aderência à realidade e a alguma viabilidade”. Tudo se precipita, porém, depois dos acontecimentos de 11 de março de 1975, finalizando a tentativa de realismo. A unicidade sindical, as nacionalizações, a radicalização do MFA, um difícil pacto para garantir as eleições da Assembleia Constituinte, a um ritmo alucinante. E.R. Vilar conhece o desemprego, mas em outubro de 1975 regressa como vice-governador do Banco de Portugal, e depois de 25 de novembro haverá uma Constituição democrática em 1976 e será Ministro dos Transportes no I Governo de Mário Soares. É um relato fascinante em que emergem o bom senso, a inteligência e a determinação.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE NUNO BRITO 

  


Os três pastorinhos búlgaros


Nossa Senhora não se esquece da Bulgária,
Depois da escola os três pastorinhos vão lanchar
Pães com manteiga molhados no café com leite
Leite quente – faz frio – na montanha
Muito frio na montanha BRRHh
Nossa Senhora não se esquece do povo búlgaro,
Dá-lhes frio quando é preciso e sol quando é preciso,
Quando é preciso os búlgaros também têm neve,
As ovelhas sobem a montanha seguindo os passos dos
Três pastorinhos – sobem as ovelhas,
descem as ovelhas,
descem a montanha, as pessoas e as ovelhas
Nossa senhora não se esquece da Bulgária
Aparece sempre bela e provocante aos búlgaros
no seu vestido de seda vermelha,
braços macios, não feitos de luz, mas de carne humana
ajoelham-se diante dela á sombra duma oliveira
Os três pastorinhos búlgaros


in Delírio Húngaro, 2009


The three little Bulgarian shepherds


Our Lady doesn’t forget Bulgaria,
After school the three little shepherds will have tea
Bread and butter dunked in milky coffee
Hot milk – it’s cold – on the mountain
Very cold on the mountain BRRHh
Our Lady doesn’t forget the people of Bulgaria,
She gives them cold when it’s needed and sun when it’s needed,
When it’s needed the Bulgarians also have snow,
The sheep climb the mountain following in the footsteps of the
Three little shepherds – the sheep go up,
the sheep come down,
they come down the mountain, people and sheep
Our lady doesn’t forget Bulgaria
She always appears beautiful and sexy to the Bulgarians
in her red satin dress,
soft arms, not made of light, but of flesh and blood
they kneel before her in the shade of an olive tree
The three little Bulgarian shepherds


© Translated by Ana Hudson, 2011
in Poems from the Portuguese

ANTOLOGIA

  


UMA QUESTÃO DE TÁXIS…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa:


Estou desde domingo em Lisboa, vim passar a semana com o Alberto e a tua irmã. Cheguei cansado da viagem, não parei naqueles quinze dias de Japão, e a paragem em Paris não chegou para me desvanecer o "jet-lag". Imagina que esta noite tive um sonho estranho. Estava em Tokyo, apanhei um táxi na Aoyama-dori, ia jantar com os Sakai, ali para as bandas de Jiyugaoka. Conheço o percurso, pois a rua, como tantas em Tokyo, não tem nome, mas sei desembrulhar algum japonês para explicar ao taxista por onde seguir: "masugu", "hidari ni magaté kudasai", "ano... aré migi desu!". Mas, repentinamente, ao chegarmos a Omoté-Sandô, já não estávamos na Aoyama-dori: íamos pela avenida de Roma fora, já perto da praça de Londres, em Lisboa! O bom do motorista entra em pânico, vendo todos os carros a circular pela direita e só ele pela esquerda. E eu mergulho em angústia quando, por detrás da igreja de S. João de Deus, o táxi pára num beco que termina numa capoeira. O sonho acaba comigo, interdito, imóvel, a ver o motorista pegar num saco de grãos de milho e ir lançá-los às galinhas, cacarejando como elas. Ocorreu-me Pascal: "Je ne sais qui m’a mis au monde, ni ce que c’est que le monde, ni que moi-même; je suis dans une ignorance terrible de toutes choses; je ne sais ce que c´est que mon corps, que mes sens, que mon âme et que cette partie même de moi qui pense ce que je dis, qui fait réflexion sur tout et sur elle-même, et ne se connaît non plus que tout le reste"...  Jean Guitton cita este texto para afirmar, numa nota biográfica introdutória a uma edição das "Pensées" de Pascal: "Toda a vida dele é uma tentativa desesperada, até à morte, para tentar compreender". O facto de sofrer de um mal congénito - que recorrentemente lhe trazia tremuras e perturbações intestinais e, quando criança, fobias histéricas (à água ou à aproximação dos pais um do outro) tê-lo-á empurrado para esse desespero de querer tudo entender... É curioso observar como Pascal, desde pequeno, se interessou pela geometria e pela aritmética, pela física e pela matemática. Deixou-nos ensaios sobre os corpos cónicos, o triângulo aritmético, o vácuo, o equilíbrio dos licores ou a gravidade da massa do ar. Foi considerado, por Leibniz, "um dos melhores espíritos do século". A investigação científica, que nunca abandonou, não o desviou, todavia, do recurso ao que estimava serem, pelo percurso da sua conversão religiosa, outros meios de acesso ao conhecimento. 


Daí a sua crítica de Descartes: "Não posso perdoar a Descartes: ele bem quisera, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus; mas não conseguiu impedir-se de O levar a dar um piparote para pôr o mundo em movimento; desde então, já não sabe o que fazer de Deus...  A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição; mas a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores". Pessoalmente, penso que Pascal esteve mais perto dos jansenistas, afetivamente - até porque a sua irmã Jacqueline, que lhe era tão querida, professara em Port-Royal - do que, teologicamente, do jansenismo. Mas é inegável que "pensassente", na tradição de Sto. Agostinho, de modo próximo do flamengo Jansenius, bispo de Ypres, no seu "Augustinus". A conversão do homem, escravizado pelo prazer, corrompido pela concupiscência, só é possível pela graça agente de Deus que, sem destruir o livre arbítrio humano, não o submete necessariamente. Conhecida por "tese da graça eficaz", opõe-se à "tese da graça suficiente", defendida, na esteira de Molina, pelos jesuítas coevos de Pascal, que afirma a ineficácia da graça sem participação do livre arbítrio. Deixemos a teólogos escolásticos as argumentações de diferenças e oposições. Creio que, em Pascal, a religião é sobretudo um exercício de abertura mística à operação da Graça. Pois que, "se não nos devemos admirar por ver pessoas simples acreditarem sem raciocinarem", também é verdade que "a maior das verdades cristãs é o amor da verdade". São aparentemente muitos os paradoxos em Pascal. Mas são os nossos, os da nossa condição. Os "Pensamentos" são uma obra incompleta, até desligada: Pascal ia-os anotando em folhas de papel, riscava depois uns, corrigia outros...ou, ainda, cortava as folhas em tiras, para separar ideias, e perfurava-as depois, de modo a poder arquivá-las diferentemente ligadas por um cordel. Numa dessas seleções, reunida sob o título "divertimento", escreve: "A nossa natureza está no movimento; o inteiro repouso é a morte... Condição do homem: inconstância, aborrecimento, inquietação... Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto fosse menos divertido, como os santos e Deus... A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e todavia é a maior das nossas misérias. Porque é o que nos impede principalmente de pensar em nós, e o que insensivelmente nos perde. Sem isso estaríamos no aborrecimento, e esse aborrecimento empurrar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento agrada-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.” Este homem, filho da nobreza de toga - não histórica, mas de ciência e cargos remunerados - fez amigos em meios muito diversos, desde a alta nobreza aos intelectuais, dos boémios aos religiosos confessos. Morreu aos trinta e nove anos, deixando obra: para além dos ensaios científicos e dos "Pensamentos", muito disto só postumamente publicado, escreveu em colaboração, ou redigiu a maior parte dos textos que compõem os "Écrits des Curés de Paris" e a "Lettre d’un avocat au Parlement à un de ses amis", que, aliás, dão continuidade às suas "Provinciales", nas polémicas com os jesuítas. As cartas ao provincial dos jesuítas,"Les Provinciales", são assinadas por Louis de Montalgue que, alhures, o próprio Pascal trata como outra pessoa, tal como fará com Amos Detonville que, relativamente aos seus trabalhos matemáticos para o "concours de la roulette, que ele abre, assinará a " Lettre à M. de Carcavy"; o mesmo fará com Salomon de Tultie, autor da "Apologie de la réligion chrétienne". Nenhum deles é simplesmente um pseudónimo: Pascal imagina-os e cria-os como personalidades distintas dele mesmo. São heterónimos, são outras pessoas. Recentemente, na sequência daquela antologia que o Adolfo Casais Monteiro publicou no Brasil - e de que te oferecerei um exemplar, que me fora cedido pelo Alberto - fala-se muito, aqui em Portugal, do poeta Fernando Pessoa e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis Talvez venha a ser uma das maiores revelações literárias do nosso século...Tenho-me interessado por ele, fascina-me esse tal desespero de uma procura de si. Como em Pascal. Por mim, vou-me hoje contentando com a luz acolhedora de Lisboa, que aqui no jardim ilumina as minhas leituras e a procura de ti, que esta carta é. Afinal, sempre procurei, em mim e na minha relação a ti, um caminho para que te sentisses bem... E o amor talvez seja esse querer bem, um caminho com curvas e alguns enganos, mas que segue procurando. Será isso a fidelidade. Esta, tão funda, que até ti me trouxe, num táxi que apanhei em Tokyo, se perdeu em Lisboa, e acabou por embarcar Pascal e Fernando Pessoa".


Desde que li e traduzi esta carta de Camilo Maria, só ando de táxi! 


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 06.09.13 neste blogue.