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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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LÍDIA JORGE

              
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lídia Jorge. A compreensão reside na continuada interpretação. 
De Teresa Vieira

 

Escolhi esta fotografia da Lídia Jorge já que para mim exprime uma cândida e conhecida sabedoria de interrogação, como quem perdoa à condição humana que nos desafia gritando três mil anos numa só voz, e nos faz correr num pranto de viajante escrita. E a isto tudo se vincula Lídia num só retrato. Num só enigma.

 

Acedo à amizade que partilhamos numa substancial eternidade do dito e do que fica por dizer, quando sabemos de cor como se tocam as ilusões ou se guardam as realidades que nos espreitam clarividentes, em passado e futuro, pois que no presente disseminamos silêncios viventes, troianos, pontuais, numa arte de hermenêutica de ilimitada abordagem.

 

Em 1981 quando li O Dia dos Prodígios percepcionei o quanto a Lídia poderia fazer dos livros sobre os livros, o quanto esta magnifica escritora poderia vir a ser considerada como aquela que age nas palavras num todo significante raramente encontrado.

 

E aguardei.

 

Aguardei ganhando coragem para ler outro e outro livro da Lídia Jorge num contexto de paz entre o significado e a compreensão. Numa circunstância de corpo-recepção, de ouvido cumulativo à mão cheia de mundo, mas nunca à descodificação, pois que a obra não era, nem nunca fora, nem é efémera ou vulgar.

 

Sim Lídia, hoje entendo a promessa que fazemos à felicidade e a outros núcleos de histórias íntimas, e tudo de tal forma força que, de facto, só é menor a violência exterior das mulheres na forma de exercer o poder, tal como afirma na sua entrevista em Maio deste ano à revista Ler, mas atamos realmente as relações de um jeito muito perverso, remetendo para o lado masculino o vencer a todo o preço.

 

Querida Lídia, eu também digo muitas vezes o quanto somos muito próximos nos comportamentos de outros que julgamos não assumir, e o quanto somos muito distantes daqueles que não vendem a alma por um punhado de palavras que acresça ao futuro e à hora de cada um.

 

Acresce mesmo dizer, e a propósito da minha leitura do seu magnífico livro A Noite das Mulheres Cantoras, que me falta a tolerância à ganga ética dos tristes que de si se enamoram e cegam, numa mão cheia de incongruências que, afinal, só alguma amizade dá pretexto a que se resista.

 

Afinal como não sabermos andar cinco centímetros acima do chão? para amar, suspender, espantar, seduzir, ouvir, rever, herdar, inovar, pintar, numa experiência pessoal que é processo de mosaico?

 

A Ilíada e a Odisseia têm-me acompanhado toda a vida numa intuição amante. Fausto é para mim uma questão de fúria e até Nadime Gordimer me prova o quanto julgo interpretar o cerco que faz na história de cada um dos seus livros.

 

Contudo, queridíssima Amiga Lídia Jorge, o que bem melhor do que eu sabe, é que a filologia é um somatório de amor e logos, mas sem amálgama alguma, é sim, a escultura da palavra, a figuração explicativa de significados que de modo tão exclusivo sabe a Lídia concretizar.

 

Maestrina ao longo da sua obra exprime o sentido fonte como um espelho que olha para outro espelho, trocando luz. Assim O Cais das Merendas, assim e numa variedade responsiva o Combateremos a Sombra, livro de encontro e colisão entre a consciência e a forma significante, livro só da Lídia  enquanto escritora.

 

Permito-me acrescentar sem pretender ser exaustiva, o quanto O Belo Adormecido englobando os contos do desejo, ou de um desejo, tem a morosidade bastante à revelação da natureza do ser enquanto pessoas afinadas ou não pela música que nos possui. Ingrediente da própria intriga do ser? Não o interpretei assim, mas antes um nenúfar sobre as nossas paixões, nunca demasiadamente enigmáticas e no entanto, plenas de concatenações de antenas estritamente privadas e que, por vezes, até escapam ao nosso entendimento. Diria que aqui e além o romance de Lídia Jorge, O Grande Gatão é uma história tão plena das aventuras pelas noites de luar quanto o é, de muitas formas, o empenho da mulher insubmissa que reside pelo livro A Maçon, e também nos Invernos em que se digladiou para a libertação, uma mulher face a um marido que a queria na dimensão do bico do seu lápis, e que vem a ter personagem no livro de Lídia Jorge, O Marido e Outros Contos. Toda esta escrita de Lídia Jorge é de uma extraordinária limpidez e inquietação seminal. Tem a escrita de Lídia o privilégio de exigir a sua leitura de lápis na mão, e o privilégio de gerar réplica no leitor. Fazê-lo pensar também como a mãe das Musas. No meu interpretar, a obra de Lídia é uma experiência que modifica a consciência. Devido ao seu carácter desinteressado é amiúde inesperada a proposta que nos é feita, que, no campo estético é poderosa e é igualmente literariamente arrebatadora, possuidora de voz, humor, desígnios, aflições, consolos e tão aguarela de Cézanne que a paisagem das nossas percepções tem a frescura das tempestades após a calmaria. Imperceptivelmente ou não, o encontro com os textos de Lídia é feito numa compulsiva liberdade. A maturidade desta escrita implica que a compreensão resida na continuada interpretação, corolário recorrente do sumo de um reino. Afinal, regresso a casa, mas a uma casa como a vida.

 

27.08.11 - Lisboa

Sec.XXI