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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 17 a 23 de Outubro 2011


Em «O Essencial sobre Eduardo Lourenço» (INCM, 2003) de Miguel Real, o autor lembra que «do ponto de vista de Portugal, a mola real da lusofonia residirá sempre na suprema constatação de que não só “os outros não a sonharão como nós”, como ser espaço de língua não significa ser espaço de cultura una». Por outro lado, «está a acontecer hoje à Europa o que acontecera a Portugal há quatrocentos anos – a auto-imagem da Europa é superior relativamente ao que ela verdadeiramente é».

 

 



Eduardo Lourenço por Leonel Moura


 

PORTUGAL COMO DESTINO
Na sua análise de Portugal como Destino, Eduardo Lourenço afirma que Garrett e Herculano refundaram a pátria porque, «pela primeira vez e de uma maneira mais radical do que acontecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa história de nação independente, o país esteve em sérios riscos de perecer». E a verdade é que aparte a revolução liberal de 1834 não houve outra em Portugal. «Inconscientemente» levámos séculos a afastar-nos da “fatalidade” europeia e do seu jogo de forças, mas tivemos de assumir-nos na balança da Europa. De facto, «o tráfico africano, o comércio do Oriente, o açúcar e depois, miraculosamente, o ouro do Brasil» permitiram-nos ter o nosso caminho, enquanto a Espanha esteve a braços com os seus “deveres de potência europeia”. Precisámos, porém, da Europa (França e Inglaterra) para preservar a independência, mas pudemos separar as águas. No entanto, foram faltando as riquezas perenes. Não por acaso, Lourenço fala de fanatismo, e da sua presença entre nós. Recorda a expulsão dos judeus, a sua conversão forçada e a longa presença da Inquisição – contudo acrescenta: «o povo português não é o único a merecer o ápodo de ‘fanático’, se essas generalizações são aceitáveis. Como o bom senso cartesiano, o fanatismo é a coisa mais bem partilhada do mundo». Todavia, não é certo que uma religião se possa definir pela intolerância e pela exclusão, até porque, em todo o caso, «não é essa a essência do cristianismo. Religião, por excelência da não etnicidade, exclui por definição, toda a incitação ao fanatismo». Alimentámos, contudo, no nosso interior dois Portugais – o Portugal velho e o Portugal novo -, numa divisão menos dramática do que a das duas Espanhas. Na busca de uma síntese, Eduardo Lourenço não esquece que fomos, durante muitos séculos, nação-cruzada, mas, apesar disso mesmo, pudemos sabiamente ter uma vivência religiosa flexível, que Oliveira Martins liga ao «imanente paganismo» e Jaime Cortesão ao naturalismo, bem evidente na plasticidade franciscana.

 

SOB O SIGNO DA LIBERDADE
Se fizemos tudo «coletivamente» até aos Descobrimentos, a verdade é que o Romantismo pôs a tónica no indivíduo – e daí também o sentido refundador de Garrett e Herculano. Se João de Barros, Camões ou Vieira inscreveram Portugal numa esfera de conteúdo transcendente, Herculano pôs a ênfase na liberdade - «um Portugal que, de armas na mão, se conquistou com liberdade. E é o passado dessa liberdade – quando na sua perspetiva mereceu esse nome – que ele exuma e exalta». E assim o historiador compreendeu o elo entre os dois Portugais, procurando conciliar liberalismo com cristianismo. E fê-lo «não por oportunismo, como a cultura oficial do constitucionalismo o fará, mas porque tal era a sua visão da história e a exigência do seu individualismo ético». E Garrett completa esta perspetiva ao pôr Camões no centro da «nova mitologia pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria de canto, de cultura, sem as quais a memória deles não existe». Mas não há «qualquer profecia com garantia providencial», o que existe, sim, é vontade e capacidade de regressar ao passado como se fosse presente, relendo os acontecimentos de glórias e viajando na nossa terra, de modo a projetar o futuro. Em vez de D. Sebastião, surge Camões, com os seus sentidos lírico e épico. Em «Frei Luís de Sousa», o sebastianismo torna-se camoniano. «A saudade é gosto amargo do bem passado, “delicioso pungir de acerbo espinho”, mas igualmente penhor de ressurreição do que, por excesso de vida, não pode morrer». É, assim, o corpo e a sombra da alma portuguesa, ligada à liberdade e à vontade, não fado sem horizonte – sendo a nossa primeira «mitologia sem transcendência», que exige um tempo de descoberta das «coisas nossas», para usar a expressão de Régio. E se os românticos iniciais deram esse impulso, Camilo e Júlio Dinis retratam um Portugal inquieto, mas segundo o que é e como está. Mais importante do que um desígnio ou do que um destino, procura compreender-se quem somos – de Simão Botelho a Teresa, do Conselheiro Manuel Bernardo ao Joãozinho das Perdizes… Mas esta visão momentânea, consequência de um encontro inédito de realidades diferentes que coexistiam, culminará numa grande rutura – a da Geração de 70, numa singularíssima encruzilhada emancipadora, capaz de sair, ao menos em imaginação, «do pequeno Portugal com a ideia de lhe abrir o espaço confinado e o desprovincializar». Antero de Quental e os seus companheiros serão a primeira expressão de uma intelectualidade pensante, assim assumida, na esteira da «primavera dos povos» e antecipando o «caso Dreyfus», que pega no tema da decadência, não apenas na perspetiva portuguesa, mas peninsular e universal.

 

PERANTE A IDEIA DE DECADÊNCIA
A tomada de consciência da decadência deve-se ao facto, detetado por Eduardo Lourenço, melhor do que ninguém , de: «em todos os domínios, o regresso à casa lusitana, o confronto connosco próprios, que só por mediação alheia íamos tendo, era vivido sem meio-termo, com deceção ou regeneradora descoberta do nacional, do castiço. Decididamente, a Europa do último quartel do século, essa Europa de onde esperávamos o messias, em vez de nos estimular, melancolizava-nos ou humilhava-nos simbolicamente. O pior de tudo é que isto nada tinha que ver, em geral, com a Europa efetiva, no positivo e no negativo dela, mas com o psicodrama puramente onírico que nós vivíamos a sós connosco e que a dita Europa nem imaginava». Ora, a Geração de 70 personificou dramaticamente este desafio, e fê-lo com sentido profético como Quental assumiu na conferência de 1871 sobre «As Causas da Decadência», sabendo interpretar os ecos que condicionaram Nietzsche, como nosso primeiro pensador não nacionalista, falando em termos europeus e universais. Eduardo Lourenço deixa-se fascinar por essa aura, como aconteceu com Unamuno, que colocou Antero entre as catorze grandes referências sobre o «sentimento trágico da vida». Pioneiro da reflexão sobre a «morte de Deus», buscando aí os mistérios mais fundos do sentido da existência, «Antero foi o primeiro e, até hoje inultrapassável encenador de um drama que antes dele só por intermitência filtrava do fluir tranquilo da nossa cultura (Camões, Garrett) e desde então passou a haver, como Pascoais e Pessoa diversamente o mostraram». Deste modo, o ensaísta de «O Labirinto da Saudade», parte da herança de Herculano e de Garrett, centrando-se na exigência emancipatória da Geração de 70, vista não como um qualquer «vencidismo», mas como o culto determinado da crítica enquanto fator de liberdade e progresso. Daí a necessidade de compreensão dos mitos – que permitem ir da vontade à evolução. E não se diga que o Eça de «A Ilustre Casa» é o símbolo de uma desistência melancólica. Não se confunda com a realidade a «desleitura» ou um «adoçamento» injusto e ilegítimo dessa obra e desse tempo. De facto, para Eduardo Lourenço, a Geração de 70 demarcou-se da religiosidade tradicional, e buscou um sentimento universal, notado em Fradique Mendes e depois na galáxia Fernando Pessoa e no modernismo. E é nesta ligação que Eduardo Lourenço assume uma grande originalidade, ao articular as Conferências Democráticas e o Orpheu, os séculos XIX e XX. «A história e o destino de Portugal nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora. Pela primeira vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até a ser visto pelos outros, como um povo insolentemente feliz». Estava-se em 1998, tempo de otimismo. Lourenço falava de «maravilhosa imperfeição». Mas de que contentamento falava? Ou era desconcerto? E hoje perante as nuvens negras da crise? Volta a ciclotimia antiga. Mas o tema de Portugal como Destino está de pé. É só dele que se fala, apesar da míngua de respostas. Voltam a ser urgentes liberdade e vontade!

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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