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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A MÚSICA ENTRE MUITAS ROTAS

S. Francisco Xavier – A Rota do Oriente

Num texto introdutório a "S. Francisco Xavier - A Rota do Oriente", produzido por Jordi Savall, escreveu Rui Vieira Néry: "Como reagiram todas essas diferentes culturas ao impacto da música ocidental, e como reagiram os músicos peninsulares aos sons desconhecidos das tradições locais? As vihuelas e as guitarras que iam a bordo estabeleceram contacto com outros instrumentos de corda dedilhada como o sarod indiano ou a biwa japonesa. Os tambores europeus encontraram-se com a ampla gama de virtuosísticas percussões africanas e a sofisticada tradição da tabla indiana. A flauta e a flauta doce, que podem ter acompanhado facilmente os marinheiros peninsulares, descobriram a atmosfera poética do shakuhachi japonês." Que resultou daqui?” - continua Néry: "Eis o desafio deste disco: seguir os passos de Francisco Xavier e visitar os diversos mundos musicais que ele atravessou: canto e polifonia sacra, canções e danças populares da Península, o reportório profano cosmopolita dos principais centros urbanos europeus, os sons da música africana, indiana, japonesa e chinesa, assim como o entrelaçamento musical de tudo isso, na base de um diálogo entre músicos de diferentes tradições culturais."

No seu "Tratado em que se contêm muito sucinta e abreviadamente algumas contradições e diferenças de costumes entre a gente da Europa e esta província do Japão", o jesuíta Padre Luís Froes (sec.XVI) considera que a música japonesa "é a mais horrenda que se pode dar", mas também reconhece que "todos os nossos instrumentos lhes são insuaves e desgostosos"... Já o dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu "Tratado das cousas da China" que, publicado em Évora em 1570, é a primeira monografia sobre a China a ser impressa na Europa, escreve: "Os instrumentos que usam para tanger são umas violas como as nossas, ainda que não tão bem feitas, com as suas caravelhas para as temperarem, e há umas de feição de guitarras que são mais pequenas, e outras à feição de viola de arco que são menores. Usam também de doçairias e de rabecas, e de uma maneira de charamelas que quase arremedam as de nosso uso. Usam de uma maneira de cravos que têm muitas cordas de fio de latão; tangem-nos com as unhas que para isso criam; soam muito e fazem mui boa harmonia. Tangem muitas vezes muitos instrumentos juntos concertados em quatro vozes que fazem muito boa consonância." Um século depois da publicação do "Tratado" de Frei Gaspar, um jesuíta português, o Padre Tomás Pereira, era pessoa notável em Pequim, e muito estimado pelo imperador Kangxi. Um jesuíta belga, o Pe. Verbiest, escrevia em 1680: "Construímos um carrilhão numa torre da igreja e noutra colocámos um órgão fabricado com tubos de estanho conforme as regras da música. Todos querem visitá-lo e creio que, no Oriente inteiro, não há um de tamanha grandeza. Estas duas obras de arte, devidas à habilidade e engenho do Pe. Pereira, músico muito habilidoso, são de uma perfeição acabada"... E em 1735, o Pe. Du Halde escrevia: "A facilidade com que, por meio das notas, retemos uma ária logo à primeira audição, surpreendeu o falecido imperador Kangxi. No ano de 1679, mandou que viessem ao seu palácio os Padres Grimaldi e Pereira, para tocarem um órgão e um cravo que outrora lhe tinham oferecido. Saboreou as nossas árias da Europa e pareceu ter gosto nisso. Em seguida mandou que os seus músicos tocassem uma ária da China num dos seus instrumentos, e ele mesmo o tocou com muita graça. O Padre Pereira tomou nota da ária inteira enquanto os músicos a cantavam. Quando terminaram, o Padre repetiu-a sem falhar um tom, e como se há muito já conhecesse. O Imperador ficou muito surpreendido, custou-lhe a crer. Teceu grandes louvores à precisão, à beleza e à facilidade da música da Europa. Admirou sobretudo como o Padre em tão curto tempo aprendera uma ária que tanto lhe havia custado a ele e aos seus músicos..."


Ocorrem-me duas reflexões: A primeira sobre o modo como, em tempos passados, de guerra conquista, ganância e exploração, sempre surgiram os que procuraram transmitir a ciência que tinham e também conhecer a dos outros. Houve, para além do proselitismo religioso, o desejo de dialogar: teriam esses missionários dos séculos XVI e XVII menos razões para crer, apesar da fé inabalável nas verdades da sua própria religião, na superioridade da sua cultura? Não seria, afinal, a vocação de comunicar mais forte do que a aparente necessidade de impor modelos? E, perante as sevícias impostas pelos senhores da guerra e do dinheiro a gentes estranhas, quantos missionários protestaram em defesa do valor divino do humano... A segunda sobre o valor universal e redentor da música: o "Quarteto para o fim do tempo", que Messiaen compôs em 1940 num campo de prisioneiros de guerra, onde foi estreado em instrumentos de fortuna, e que é ainda hoje tocado por violino, clarinete, violoncelo e piano, é um exemplo superior da arte do compositor francês; ou o concerto para a mão esquerda, que Ravel escreveu para o pianista austríaco Wittgenstein que, amputado da mão direita, o tocou em Viena em 1931; ou Lorin Maazel a dirigir a New York Philarmonic na Coreia do Norte; ou o concerto dado em Ramalah pela orquestra Divan, composta por palestinianos e israelitas, dirigida por Daniel Barenboim... Em 1975, José António Abreu, um luso-descendente, jesuíta, famoso professor de música e economia, ensaiou com jovens de bairros da lata da Venezuela, o primeiro concerto de uma nova orquestra, numa garagem abandonada de Caracas. Hoje, 370 mil crianças pobres da Venezuela já aprendem, tocam e ensinam música... Entre elas, já nasceram "estrelas" como a Orquestra Simon Bolivar e o seu maestro Gustavo Dudamel, que atuam nas mais afamadas salas do mundo!


A fechar este passeio por memórias, lembro a minha emoção quando, há 20 anos(?), vivi o silêncio de inúmeros japoneses que, no Suntory Hall, em Tóquio, escutavam Maria João Pires tocar Mozart, ou sinto ainda Carlos Paredes em Nova Iorque e Osaka, Fernando Alvim com Mário Pacheco ou Zina Torre do Valle em Tokyo e Seul. E nunca esquecerei o Coro Gregoriano de Lisboa, com a saudosa maestrina Maria Helena Pires de Matos, em Kobe, no bairro mais devastado pelo terramoto de 1995, e também num cântico pela paz, com monges da ordem Shingon, no mosteiro budista de Tere Dera... Tal como sempre guardarei no coração esse ceguinho desconhecido que tangia uma guitarra, na rua do Salitre, debaixo das janelas das salas de aula do Colégio de Clenardo». 


Camilo Martins de Oliveira