A loucura é o quarto do esquecimento
O prémio Albert Londres foi atribuído ao primeiro jornalista (repórter da France 2) ocidental morto na Síria desde o início da revolta contra o regime do contestado presidente Bashar al Assad. Assim li a notícia e vi o rosto da viagem longa deste jornalista de investigação que era
Albert, francês, era o jornalista «literário» e o jornalista irrequieto, o jornalista investigativo e que também levara a França a confrontar-se com os seus asilos psiquiátricos, com o trabalho forçado, e a aplaudi-lo de pé quando, em 1932, um mês depois da sua morte, um teatro de Paris esgotou a sala com uma peça extraída de um dos seus livros.
No princípio do século XX Albert Londres era um dos mais notados jornalistas em França. Informou sobre os combates na Sérvia, Turquia, Albânia e nomeadamente descreveu a nascente bolchevique na URSS. Interessou-se analiticamente pelo esforço físico do Tour de France e criticou as regras impostas aos que ele chamou os condenados da estrada e Tour de France, Tour de souffrance.
À sua poesia não quis a crítica de então dar-lhe reconhecimento e aos 40 anos de Albert, ainda se dizia que, a inveja, se esforçava por deixá-lo na sombra das reportagens portadoras da sua estilizada palavra e pertinência temática. Recordo-me de ter falado com o António Alçada sobre Albert, e bem me lembro com que força de tónica na palavra ele então me dissera:
«Ele era imprevisível, Teresa. Ele era imprevisível e todos temiam o embaraço.»
Gilles morre nos dias de uma Síria de hoje, e é meu o embaraço se não recordo Albert Londres, o jornalista que tão bem retratara países transtornados sob grotescas verdades, onde, ao serviço de uma realidade se morre como que deportado por uma luz que também espreita o livro de Albert Londres “COM OS LOUCOS”
Albert também se atreveu a atacar a incompetência do trato nos asilos psiquiátricos.
O nosso dever não é para nos livrar do louco, mas para livrar o louco da sua loucura, escreve.
Era então a conhecida lei 38 a que regia os asilos num autêntico arsenal jurídico que grave punição atribuía ao violador do segredo profissional. Afinal ao violador que gritasse contra a mão que empunhou a granada que matou Gilles, na Síria de hoje.
«Os asilos fabricam loucos.(…)Doutores! Não faltam asilos aos «doentes», faltam cuidados. (…) O Senhor tem razão, (…) façamos uma emenda à Lei de 38!Tornemos o internamento mais cómodo.»
E como quem lê os sulcos do cérebro, Albert escrevia:
«A outra tinha-lhe “pregado a partida” de provar que não estava louca! (…) mas não basta estarmos inocentes; é preciso o nosso vizinho não fazer os outros pensarem que podemos vir a ser criminosos. Em caso de dúvida, todos nos tornamos duvidosos. Os curados continuam a estar como “meio loucos” nos asilos.
Afinal para Albert Londres o escravo não era comprado, nascia. E uma imensa realidade se explicava assim: de braços caídos.
E quando um médico lhe respondeu que aqueles continuavam no asilo porque não conseguiam adaptar-se à vida em sociedade e não tinham preocupações com o seu futuro, Albert acrescentou:
Imagina-se o fenómeno que seria alguém estar fechado desde há seis anos e atrever-se a ter preocupações com o futuro?(…) Este médico-chefe não tem, por certo consciência do que escreveu. Bastaria uma só manhã para eu, com estes mesmos “itens”, internar vinte dos meus melhores amigos.
A chancela da Sistema Solar, em Julho do corrente ano, ajudou a relembrar-nos o quanto um doente do fígado, mal esteja curado sai do hospital e esse é o nosso hábito. Mas nos nossos dias, o louco tem de esperar pela sua hora, pois o louco nasceu cedo demais para ser entendido, e enquanto ao bandido depois de ter cumprido pena, abrem-lhe a porta da prisão, o ex-louco é prisioneiro, não em nome do passado mas em nome do futuro.
Gilles Jacquier, o jornalista que há pouco morreu na Síria, recebeu o prémio Albert Londres: assim a loucura assassina não continue a ser o quarto do esquecimento. De resto, a loucura não é um castigo de Deus, mas antes, tudo o que os homens lhe acrescentam.
Teresa Vieira