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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS


de 21 a 27 de janeiro de 2013


O último número da revista «Didaskalia» da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, dirigida pelo Padre José Tolentino Mendonça (2012, vol. XLII, fascículo II) assinala os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II. Há um conjunto muito relevante de textos, permitindo-me destacar de Geraldo de Mori «O aggiornamento como categoria teológica», «Uma hermenêutica criativa ao serviço da renovação pastoral», de José Eduardo Borges de Pinho, a invocação de Michel de Certeau por Stella Morra, e os ensaios de José Manuel Pereira de Almeida sobre «Percursos da Teologia Moral» e de João Manuel Duque sobre «A condição do crente perante os desafios do futuro».

 

 

O «AGGIORNAMENTO» COMO TEMA
Vale a pena ler com atenção os textos publicados. Comecemos por falar de «O aggiornamento como categoria teológica», de Geraldo de Mori, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. Aí se dá nota do impulso fundamental animado por João XXIII e que explica o papel desempenhado pelo Papa nesse momento crucial da convocatória do Concílio. Para usar as palavras do Sumo Pontífice, tratou-se de abrir de par em par as janelas da Igreja para que o ar puro pudesse circular, sem medo de correntes de ar. O termo «aggiornamento» significou a rejeição do divórcio entre fé cristã e cultura ocidental, intensificado na era moderna, abrindo a Igreja para o diálogo universal com o novo, neste momento da história. No entanto, esse esforço de «pôr em dia» não teria sido possível sem as escolas teológicas do século XX, marcadas pela descoberta das fontes da vida cristã e da teologia e por uma nova atitude diante do presente e do futuro. Os principais autores dessas escolas foram responsáveis pela antecipação dos caminhos que o Concílio trilhou. Lembremo-nos da escola dominicana Le Saulchoir (Chenu, Congar e Schillebeeckx) ou das escolas jesuítas de Lyon-Fourvière (Lubac, Teilhard) e de Innsbruck (Rahner). Apesar de muitas incompreensões, o certo é que uma sólida fundamentação teológica de grandes pensadores levou a que o Concílio correspondesse a uma conjuntura excecionalmente positiva para abrir caminhos novos, no sentido do que, com muita felicidade, João XXIII designou como um novo Pentecostes, «um movimento evangélico dinâmico e uma conversa aberta entre os bispos de todo o mundo sobre como renovar o catolicismo como estilo de vida inevitável e vital». E recordamo-nos da intervenção aberta e modernizadora de bispos portugueses como D. António Ferreira Gomes e D. Sebastião Soares de Resende. Temas cruciais foram: a volta às fontes, os sinais dos tempos e o desenvolvimento. Para o Padre Chenu: «retornar a S. Tomás significava reencontrar o estado de invenção com que o espírito volta, justamente como à fonte sempre fecunda, a pôr os problemas para além das conclusões adquiridas uma vez por todas». E assim «voltar às fontes» corresponderia ao «desejo de redescoberta de elementos ignorados ou pouco explorados das fontes da fé e da tradição que pudessem iluminar o presente». Por outro lado, os «sinais dos tempos» fariam com que a teologia se aproximasse das «mediações a partir das quais (se poderia) pensar a própria fé e sua compreensão nos diferentes contextos». A volta às fontes daria, assim, maior consciência das mudanças ocorridas ao longo da história do cristianismo. A tradição seria mais ampla e maleável do que a lógica retrospetiva. E a atenção aos sinais dos tempos abriria «os teólogos e a Igreja a uma maior solidariedade com o presente dando-lhes igualmente instrumentos que os capacitassem a melhor compreender os diferentes contextos nos quais a fé cristã era anunciada e crida, adquirido assim maior sentido existencial e maior relevância social».

 

COM OS OLHOS POSTOS NO FUTURO
Longe de um retorno ao passado, a «volta às fontes» seria uma busca de Verdade, enquanto os «sinais dos tempos» não seriam apenas atenção ao presente e ao novo, mas adaptação às necessidades humanas de cada época. No dizer de O’Malley, o longo século XIX chegava ao fim, o que obrigava a encarar frontalmente o tema do desenvolvimento, que implicaria uma ideia de progresso não cumulativo e uma rotura, como aconteceu com a «Declaração sobre a Liberdade Religiosa». Como disse o Papa na abertura do Concílio: «é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo». E assim a tradição torna-se um interlocutor aberto, com que dialogamos para dar «as razões da esperança cristã em seus distintos contextos» sociais e históricos. E a fé afirma-se como «um apelo ao seguimento de Cristo e isso repercute na vida dos cristãos, chamados a um testemunho que se traduz em caridade ativa e inventiva». E, deste modo, o «aggiornamento» torna-se categoria teológica, agindo sobre a leitura da Palavra, da Experiência e da Prática – como regra de amor e de compreensão do «Outro por excelência, que se oferece como dádiva de esperança e de graça».

 

RIQUEZA OFERECIDA, POR RECEBER.
Neste sentido José Eduardo Borges de Pinho fala-nos de uma «hermenêutica criativa como desafio a uma profunda renovação pastoral», a partir do Concílio. A questão fundamental é de saber como faremos hoje um «autêntico e frutuoso acolhimento» desse acontecimento, que se mantém jovem apesar dos cinquenta anos de celebração. Impõe-se uma «tomada de consciência da amplitude e profundidade de alguns desafios que se apresentam e da urgência em definir prioridades na busca de caminhos que interpelem a consciência dos crentes e ajudem a configurar de forma renovada a vida das comunidades cristãs». E o certo é que à «riqueza oferecida» ainda corresponde algo de não devidamente recebido. Impõe-se, assim, dar resposta à consciência cultural dos nossos contemporâneos. Por exemplo, a realidade familiar hoje alterou-se significativamente, mesmo para os cristãos, o que obriga a encontrar novas respostas de acolhimento e de comunhão. É indispensável procurar uma nova disponibilidade para «processos de aprendizagem, de criatividade e de reforma». Há medos que paralisam e inércias que desmoralizam, que devem ser considerados, de modo a abrir caminhos à «ação do Espírito» e aos sinais de Deus. A «pastoralidade» do Concílio não se confunde com relativização doutrinal, antes obriga à consideração do essencial da fé. «Isto exige dar prioridade absoluta e optar com todas as consequências por caminhos que conduzam a um laicado adulto, assente numa atitude crente pessoalmente assumida, disponível para e capaz de novas configurações da existência crente em termos de consciência pessoal, de liberdade responsável, de compromisso (individualmente assumido, mas comunitariamente suportado) ao serviço do mundo». E o certo é que o laicado adulto aponta para uma «colegialidade efetiva» e para a partilha de responsabilidades – dando consequência a uma renovação interior e a uma existência cristã coerente. Neste sentido, Michel de Creteau, não se tendo pronunciado profusamente sobre o Concílio prefere pensar o acontecimento não como tal, mas a partir dele, como revolução do credível que o Concílio reconhece, interpreta e inaugura – procurando «encontrar Deus em todas as coisas». Daí José Manuel Pereira de Almeida fazer uma pergunta que é um autêntico desafio: será a Igreja hoje ainda «eticamente habitável»? A resposta tem muito que se lhe diga, porque depende de nós mesmos. Afinal, ética provém de dois étimos gregos êthos e éthos, que significam, respetivamente, lugar seguro e interioridade, de um lado, e hábito ou forma de agir, de outro. Estamos, assim, a falar de habitabilidade e de hospitalidade. E temos de lembrar que o Concílio provocou uma alteração de paradigma na teologia moral: apresentando a consciência como «instância última da responsabilidade moral da pessoa» (como salienta Vítor Coutinho). E deste modo a liberdade responsável torna-se crucial, como recusa da indiferença e da mera relatividade. No fundo, ser crente cristão é «compreender a existência como ser a partir do outro e ser para o outro» (na expressão de João Manuel Duque), o que faz toda a diferença e apela ao respeito, à dignidade e à difícil diferença.


Guilherme d'Oliveira Martins