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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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RECORDAÇÕES MUSICAIS E UMA PRINCESA…

 

Três edições discográficas recentes e um livro que recebi ainda com cheiro a tinta trazem-me à memória uma pessoa querida de mim, logo direi quem.  Os discos são recordações de géneros musicais (e não só) diferentes (graças a Deus!): um, que me chegou de Londres, dá pelo título de "18th-century Portuguese Love Songs"; o segundo reúne várias gravações de música do sec.XVI sob o tema do "Elogio da Loucura" de Erasmus van Rotterdam; o terceiro é uma interesante e sentida achega ao fado, não só enquanto expressão musical, mas como tradição de sensibilidades culturais e seu encontro. Também já veremos como. A pessoa recordada por mim foi  - e é-me  -  muito próxima: pelo seu nome (incompleto) de baptismo era meu homónimo: Camilo Maria, 15º marquês de Sarolea, nascido em 1900 e falecido em 1979. Confiou-me um perturbante espólio de cartas e apontamentos vários, alguns dos quais se referem às obras ou temas que acima invoquei.Os textos respectivos foram redigidos em várias línguas: francês, alemão, algum inglês, castelhano, italiano e português. Por vezes recheados de citações e trechos em latim e grego. Confesso que, muitas vezes, me inspirei neles para o que, ao sabor do gosto de dizer ou da necessidade íntima de fazê-lo, eu mesmo escrevi autenticamente meu. Hesitei em rever essa herança interior, por receio ao espelho. E mais ainda receei manifestá-lo, porque o pudor deverá ser discreto. Mas nem sempre resistimos à tentação de comunicar o que temos por indizível. Ao escrever estas linhas (quantas serão?), move-me um como reconhecimento da brevidade da vida, e o assentimento de que há um coração dos homens cuja idade não sabemos, talvez por ser na eternidade. Numa carta escrita a uma princesa que não ouso identificar, Camilo Maria cita estes versos de "modinhas" portuguesas de fins de setecentos ou princípio de oitocentos, as tais de que William Beckford dizia que "os que nunca as escutaram nunca conhecerão a música mais voluptuosa e feiticeira que existiu desde os Sibaritas. "Foi por mim, foi pela sorte /minha desgraça tecida/sou, ó céus, bem desgraçada / nem morro nem tenho vida!" Ou ainda: "Amor vem manso, mansinho, / no coração habitar. / E depois de estar de dentro, quer só ele as regras dar... / Ai amor, amor, amor / vocês zombam com amor / e não é para zombar..." Vêm as citações na sequência de uma referência circunstancial: "Achei-te triste e fechada esta manhã, eu que te estava (e estou!) tão grato por me teres visitado. Talvez depois da tua partida, pela tarde, o dia entristeceu e se fechou. Mas rezo e penso que as nuvens tão baixas nos trazem para perto o céu... e que esta chuva miudinha vai encharcando os campos de frutas e flores, de sombras futuras e benignas, e de cores, tantas cores, que ainda não vemos! Tudo afinal se cria no escuro silencioso do mistério, nesta promessa ininteligível do Deus que esperamos... É bom contemplar, neste despojamento húmido e incolor do inverno, o Ser que é e está além das aparências. Na saudade, que se exprime sempre em português, estás comigo, dou-te a mão e olho. E o que vejo é uma paisagem que se despe com um misterioso pudor, lento e manso, verde, amarelo, castanho, cinzento, melancólico e frio... tão cheio da graça que emprenha a terra e nos torna sublimes de esperança! Bem hajas!" Nenhuma correspondência entre Sarolea e a Princesa (de …)  é datada. Tampouco achei nela indicação de lugar ou destino. Mesmo a simples alusão a efemérides ou a tempos circunstanciais não me permitem datá-la ou localizá-la. Como se tudo se situasse fora do tempo e do espaço. Ou como se a actualidade de coisas passadas reclamasse a constância de algum modo de ser... Talvez o ser tenha, para além do ser-se, uma consistência própria. Uma densidade ignota, entre a gravidade e a graça, na alma de cada ser humano. Somos, como diz  Ortega y Gasset, que tanto gosto de citar, trânsfugas da natureza...Mas seremos também, acredito, trânsfugas de nós mesmos. Há um qualquer território da nossa alma, dessa parte de nós que inconscientemente, por vezes, definimos arriscando dizer "sou eu mas não sei explicar"... há, em cada um de nós, esse território ou terra de ninguém. Onde Jacob lutará com o anjo. Ou onde, talvez, infelizmente, já não haja luta alguma. A ideia da condição humana como batalha, o desgosto do mundo a par da insatisfação com o silêncio de Deus, tudo isto marca a pessoa e os escritos de Camilo Maria que tantas vezes usava uma tradução italiana dum seu apelido alemão, apresentando-se como Vecchio Borgo. Veremos, se for eu capaz de os traduzir, outros passos de textos em que ele quis dizer um percurso espiritual que, todavia, para quem o conheceu "em sociedade", era insuspeitado. Estava simplesmente no lado de lá,  no lado do silêncio. Transcrevo, de uma das cartas (de amor?) que sou tentado a revelar, este trecho: "Alheio, mudo, indiferente,/ nos leva o tempo o momento,/ o dia, a hora, a vida toda.../ na roda desse vento acordamos e sabemos/ a manhã que já foi ou já se irá embora!/ Peregrinos hoje e sempre.../ Em qualquer hora!

Camilo Martins de Oliveira