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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O TEATRO DE FERNANDO AMADO: EDUCAÇÃO E EMIGRAÇÃO/IMIGRAÇÃO


António Manuel Couto Viana

 

A evocação de Fernando Amado, como escritor, como doutrinário interveniente na vida pública e cultural do seu tempo e como homem completo de teatro - dramaturgo,  encenador, diretor de companhia, professor - tem  aqui sido feita no também no quadro das comemorações dos 120 anos de Almada: aliás, o CNC esteve diretamente ligado à colaboração recíproca de ambos, como temos recordado.

 

Ora, importa assinalar aspetos pouco conhecidos da obra de Fernando Amado. Já referi a sua ação pedagógica no Conservatório, de que muito beneficiei. Mas esse sentido pedagógico e essa notável vocação educativa surge em muitas outras e por vezes inesperadas áreas. Uma delas, hoje esquecida, foi a colaboração, como dramaturgo, na Campanha Nacional de Educação de Adultos que, nos anos, 50, desenvolveu uma notória ação de alfabetização, sobretudo no grande interior e nos meios rurais, á época mais do que carenciados.

Para essa Campanha Fernando Amado escreveu, em 1953, duas peças em que concilia o sentido didático com a simplicidade poética da escrita. Logo os nomes são esclarecedores: “O Livro” e “O Aldrabão”, nada menos. Ambas encenadas por António Manuel Couto Viana, percorreram, sobretudo a primeira, o país, representadas por atores profissionais.

 

São textos de grande sentido teatral e perfeição literária, como tudo o que Fernando Amado produziu. Mas mais do que isso: a propósito e a partir do temário pedagógico da educação de adultos, Fernando Amado refere outra importante questão da sociedade portuguesa - a saber, a emigração/imigração.

 

Senão, vejamos. Em “O Livro”, o protagonista, Gil, num longo monólogo inicial, está feliz porque estudou: “ganhei a aprovação nos exames de leitura e escrita graças ao senhor prior. Já não sou analfabeto e por conseguinte posso embarcar… Dito e feito. Se bem o pensei, melhor o fiz”… e ei-lo de partida para Luanda, chamado pelo amigo Tomé das Bouças. Certo que naquele tempo Luanda não era propriamente emigração, mas talvez já fosse imigração…

 

E a peça desenvolve-se numa sucessão de diálogos com amigos, habitantes da aldeia, um escrivão, um caixeiro-viajante, num registo de fé cristã e apologia da alfabetização e do livro simbólico, que o Gil enviará ao seu amigo Cristóvão.

 

E em “O Aldrabão” o protagonista “Xico, o aldrabão, trepado sobre uma pedra, fala a um grupo de aldeões” a quem lê as cartas por eles recebidas e que eles não conseguem ler… Mas afinal, o Xico é tão analfabeto como eles: não lê, inventa as correspondências recebidas. E por isso mesmo, só por milagre ele próprio, porque não leu a convocatória, não faltou à incorporação no serviço militar, o que lhe daria uma pena de prisão.

O Xico assume a sua “aldrabice” e confessa-a ao amigo Manuel. “ Xico - É verdade Manuel. Não sei ler. O Xico Vaqueiro, o leitor encartado, o rival da senhora professora, olha para um livro ou para um jornal como boi para palácio…”  E a solução, para evitar ser preso como desertor (“são capazes de pregar comigo numa enxovia a pão e água!”) é emigrar: “estou resolvido a fugir, a passar a fronteira” !

Afinal, não precisa: ainda está tempo de se apresentar no quartel!

 

Repito: ambas as peças de Fernando Amado, cada uma a seu modo, apontam para a emigração/imigração, como solução e modo de vida ou como recurso; e em qualquer caso, revelam a mesma opção: partir pra outras terras.

 

Mas sobretudo, ambas provam, diretamente ou a contrário, a absoluta prioridade da leitura, da alfabetização - e a partir daí, da educação e da cultura!...

 

Duarte Ivo Cruz