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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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8ª Crónica de Alberto Vaz da Silva na Grécia de Sophia

 

S. JOÃO E O APOCALIPSE

 

Longos anos visitei, sem adivinhar o que o destino me reservava, o museu Memling no Hospital de S. João em Bruges.  Era sempre irresistivelmente atraído para o painel da direita do Tríptico de S. João Baptista e S. João Evangelista, chamado Retábulo dos dois S. Joões. Com o seu extraordinário realismo óptico, Memling representou aí a visão apocalíptica da ilha de Patmos.


Sentado numa rocha revestido de ampla túnica encarnada - esse encarnado que apenas e sempre em Memling reaparece - o santo olha em frente, com a pena mergulhada num tinteiro; ergue os olhos para o alto onde visões surgem sobre a água e sobre o céu num espectáculo novo e único para a época.


Deus está sentado num trono rodeado por colunas, um halo esverdeado e um arco-íris,"tendo o aspecto do jaspe e da sardónia" (Apoc. 4:2 - 3). Em redor sete lâmpadas acesas e sete tochas ardentes e relâmpagos que saem do arco-íris (Apoc. 4: 5 - 6). E sentam -se os vinte e quatro anciãos de que treze são visíveis, vestidos de claro e coroas de ouro (Apoc. 4:4), tangendo instrumentos vários. O trono assenta numa superfície líquida onde se reflecte "um mar límpido como cristal" (Apoc. 4:5). Deus está acompanhado por quatro animais recobertos de olhos e com seis asas, semelhantes a um leão, um touro, um homem e uma águia, "os quatro Vivos" (Apoc. 4:6-8). Toda esta visão se inscreve no círculo de um segundo arco-íris, que se reflecte no mar e liga simbolicamente ao santo .


Deus segura na mão direita um livro com sete selos (Apoc. 5:1). Pousado no mais vasto arco-íris um Anjo aponta para o livro e dirige-se a João, "digno de desvendar os selos" (Apoc. 5:2). Um Cordeiro com sete cornos e sete olhos rodeia o livro entre as suas patas (Apoc. 5:6 -7), quebra sucessivamente seis selos, e aparecem os quatro cavaleiros. O primeiro branco montado num cavalo branco a desfechar uma seta, o segundo de armadura negra num cavalo encarnado, o terceiro de longa toga sobre um cavalo preto arvora uma balança e o quarto, a Morte montada num cavalo castanho, é perseguido por uma cabeça de monstro corpulento que tritura corpos humanos contorcidos (o Hades, Apoc. 6:2 - 8).


Ao fundo vemos um eclipse do sol e estrelas cadentes. De costas para o vidente um Anjo incensa Deus, de joelhos em frente de brasas que serão lançadas sobre a terra (Apoc. 8:3 - 5) e provocarão sismos. À direita um Anjo colossal de pernas de fogo, rosto ardente como o sol, rodeado pelo arco-íris, um livro na mão (Apoc. 10: 1 - 2).


No alto do céu a Virgem e o Menino que escapará ao ataque do dragão de fogo com sete cabeças graças à intervenção de um Anjo. A cauda do dragão varre estrelas cadentes e estas por seu lado prenunciam novas catástrofes.


Toda a obra de Memling exprime misticismo e devoção, uma nova organização aberta e límpida do espaço, a cristalização perfeccionista do retrato na procura de uma beleza platónica.


Depois do desembarque, ao sair da gruta onde se desenrolava uma cerimónia religiosa segundo o rito ortodoxo, olhei em frente e deparei com o cenário do Apocalipse. O mesmo mar translúcido, os mesmos ilhéus e enseadas, a vegetação variada. Não duvidei por um instante que o santo que sobrevivera à tortura do azeite escaldante e ficara incólume ao beber uma taça de veneno se sentara sobre aquela mesmíssima rocha enquanto ouvia o  que o pintor flamengo transcreveu.


Patmos é um desses lugares em que céu e terra se interpenetram com tal intensidade que a evolução do mundo acontece num refinamento que os séculos vindouros decifrarão.


Das preciosidades, os maravilhosos ícones, um "Ecce Homo" do Greco, os códices púrpura e as bulas douradas do Santo Mosteiro falaremos mais tarde, dissipada que seja a magia desta vivência que apenas talvez computadores quânticos pudessem abordar.


Mas falta o Minotauro, não ficou em Creta. A guia, no seu genuíno inglês de Oxford, implorava que não nos dispersássemos, pois o acesso ao coração da ilha passa por uma estrutura de inextricáveis labirintos, protecção contra os piratas. Repetiu vezes sem conta a palavra "maze".

 

 


Chegados ao cimo, na praça, deparo com um hermético edifício de estrutura vetusta e janelas assimétricas, portadas azuis cerradas, encimado por nichos de pedra cegos. Fita- me como colosso pronto a investir. Pergunto quem é. Sabe e não sabe. Ali acaba o Labirinto.