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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

de 15 a 21 de julho 2013

 

A publicação da Obra Completa do Padre António Vieira (Círculo de Leitores) constitui um acontecimento cultural da maior valia. Pode dizer-se que, assim, passamos a dispor, em Portugal, no Brasil e em todo o mundo da língua portuguesa, de um extraordinário acervo literário, estilístico, retórico, histórico, político, diplomático, filosófico, epistolar, religioso e vocabular que constituirá ponto de referência para as culturas da língua portuguesa. Com Vieira atingiu-se a maturidade da nossa língua em prosa em exercícios de uma extrema beleza e arte, mas, mais do que isso, definiu-se em literatura a base do barroco luso-brasileiro, que é vastíssimo e cada vez mais tem de ser estudado como um todo – artes, letras, música, dramaturgia, tudo…

 

 

PARA ALÉM DA SOBREVIVÊNCIA
Estou de acordo com Viriato Soromenho Marques quando afirma que «a lição de Vieira é que Portugal não sobreviverá se a sobrevivência constituir o seu novo e exclusivo desígnio» (Visão, 18.4.13). Vieira desdobrou-se em ações e diligências. D. João IV teve nele o melhor dos diplomatas, porque tinha ideias audaciosas, apesar de todas incertezas. Se fosse para repetir os erros de sessenta anos antes não valeria a pena. Os «fumos da Índia» prevaleceriam e o mito de um «desejado» seria decadente e inútil. É verdade que muito do que desejou não conseguiu, em especial o regresso dos judeus sefarditas e dos cristãos novos, mas a pujança do ciclo americano deveu-se em parte à sua visão larga, que os colonos execraram, a ponto de ter de sair do Maranhão em perigo de vida, depois de fazer o Sermão de Santo António aos Peixes. Significativo é o texto que o Padre enviou a favor dos cristãos-novos ao Príncipe Regente D. Pedro, em 1671, na sequência da promulgação da lei que mandava que fossem «exterminados do reino e suas conquistas todos os que desde o último perdão geral saíram confessos», estando fora do poder pátrio bem como os que abjuraram e seus descendentes. Os que ficassem no reino seriam impedidos de constituir morgados, não podendo suceder nos constituídos por cristãos-velhos, estando proibidos de casar com cristãos-velhos e seus filhos de estudar nas universidades. Tudo isto, originado por um crime de sacrilégio cometido em Odivelas de roubo do Santíssimo Sacramento. Na nota, enviada sem assinatura, o Vieira considera que a lei pecava por injusta, podendo pôr em causa as legítimas pretensões do reino no tocante à recuperação económica e à atração de capitais que permitissem superar as dificuldades inerentes à guerra da Restauração e à legitimação do novo poder real. Não estava em causa a gravidade do crime, mas sim as consequências políticas da decisão legislativa – num antijudaísmo inconveniente, sobretudo tendo em consideração que não se estava perante um ato inédito. O certo é que noutras circunstâncias não tinha havido lugar a uma medida geral tão dura, pressupondo que seriam os judeus os suspeitos, quando tal decorria de um grave preconceito. De um modo sistemático, Vieira analisa cada um dos argumentos invocados, demonstrando logicamente o erro e as suas consequências nefastas. Como justificar uma condenação que atingia sobretudo os filhos dos homens de nação? Além do mais, «quantas almas que vivem catolicamente» ficariam expostas «ao perigo de se perderem». Por outro lado, havia os filhos dos que «abjuraram de veemente» - na linha das decisões nefastas de Carlos V e de Filipe II. Quanto aos morgadios, os castigados eram os instituidores «que faleceram pia e canonicamente», estando ameaçada a confiança dos inocentes parentes. «Sem dúvida serão daqui por diante os juízos, uns manifestos e uns públicos teatros, donde se andarão arguindo e descobrindo as faltas e defeitos das gerações. Pedirá o que não tem defeito, o morgado a quem o tiver, e responderá este, que não tem defeito, e que o tem o que lho pede». E sobre o não poderem os filhos dos cristãos-novos estudar nas universidades do reino, a medida serviria apenas para «abater e aniquilar aos cristãos-novos, para que por seu idiotismo vivam humildes e desestimados». E o resultado seria, apenas, impedi-los de «aprender os mistérios da nossa fé, e os fundamentos que a hão de defender…».

 

ARGUMENTOS DE INTELIGÊNCIA E SENSO
Vieira usa inteligentemente o argumento de que a condenação à ignorância é absurdo e injusto. «E viverão com tal ignorância, como vivem os muito rúticos, de cuja salvação duvidam muitas vezes os varões doutos, pela notável ignorância dos mistérios que reciprocamente devem saber». E acrescenta logo outro argumento prático, conhecendo bem a «gente de nação» e os cristãos-novos: sendo estes «separados do estado vil e de ofícios mecânicos» perder-se-ia o seu contributo, pois não aprenderiam os ditos ofícios, deixando de participar para a riqueza da pátria. Assim, este género de castigo teria a mesma «deformidade», de ser contra inocentes; «porque os filhos de homens de nação, de sete ou oito anos, e ainda de dez ou doze, não têm uso de razão para haverem de pecar nas matérias de fé». E os casamentos? A proibição apenas serviria para alcançar o objetivo contrário ao pretendido, se o fim seria extinguir nos homens de nação o judaísmo: «a experiência mostra que o meio mais proporcionado para o intento é o de se misturarem em casamentos com cristãos-velhos». Afinal, o Padre António Vieira vem dizer que uma lei nova como esta conduz a resultados nefandos. E encontramos uma defesa que hoje qualificaríamos de institucionalista. «Em todas ou quase todas as coisas é sempre melhor seguir as constituições antigas, as quais todas as vezes que se mudam, se pioram; porque ainda quando a mudança aproveitar, perturba, e por isso se deve evitar, na opinião de Santo Agostinho, pois ordinariamente, posto que seja para melhor estado da república, costuma ser causa de maiores males dela…». Para S. Gregório Nazianzeno: «tanto tem de bem e louvável mudar o parecer e a resolução menos acertada e conveniente, quanto mais de torpe o perseverar nela».

 

A EXIGÊNCIA DA EQUIDADE
Usando exaustivamente argumentos de racionalidade, o Padre António Vieira demonstra com meridiana clareza que a medida é errada, para além das razões de elementar justiça, em virtude das más consequências que suscita. E assim, «os cristãos descendentes do sangue hebreu não pedem nem pretendem perdão geral, porque o perdão é remetido para culpados e eles querem só remédio para inocentes; e assim suplicam, e só querem, que o sumo pontífice oiça as claríssimas razões dos gravames que apresentaram, e os mande examinar juntamente com todas as razões em contrário, papeis e requerimentos do Santo Ofício de Portugal, e que depois de ouvidas ambas as partes, julgue Sua Santidade o que for mais conveniente à fé e à justiça, e aplique remédio eficaz para que em Portugal padeçam os culpados sem gravame dos inocentes…». Vieira é especialmente enfático neste desígnio e sabendo nós as suas preocupações fundamentais, percebemos que a enumeração dos argumentos visa sensibilizar os interlocutores sobre a correção das suas ideias. O método usado nos «Sermões», visando persuadir os fiéis, é transposto para os memoriais, as notas ou as cartas. E o certo é que a visão de conjunto que começamos a ter da obra de Vieira demonstra que muito mais do que o jogo admirável de imagens, de palavras e de figuras de estilo, o autor revela uma inteligência informada e argumentativa, com um pensamento próprio, com ideias claras e distintas, não confundíveis com qualquer formalismo. E o cavalo de batalha de Vieira é a exigência de não proceder a generalizações iníquas. E por isso recorda a lembrança intolerável e tremenda de um falso acusado levado a confessar um crime que não fizera com medo de perder a própria vida. 


Guilherme d'Oliveira Martins