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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


De 22 a 28 de julho de 2013

«Peregrinações em Lisboa» de Norberto de Araújo (Quinze fascículos, s. d., 1938-1939, Parceria António Maria Pereira), com direção artística de Jaime Martins Barata, é uma preciosidade ainda nos dias de hoje. Dir-se-á que a cidade mudou muito, alargou-se, modernizou-se, perdeu elementos castiços, os seus quintais, as suas hortas, como tem dito com persistência Gonçalo Ribeiro Telles. A verdade é que ao lermos hoje Norberto Araújo (1885-1952), peregrinando connosco, seus diletos, reencontramos a história, as personagens, a memória, as raízes e compreendemos melhor Lisboa.

 


 
ESTE PENSAMENTO DE PEREGRINAR
«Este pensamento de peregrinar pela cidade do passado, dentro da Lisboa do presente, não passa de um deleite de espírito do autor, que dá o braço a quem quer que o acompanhe, prazenteiro destas jornadas, membro da mesma comunidade, freire da mesma ordem cuja regra tem apenas um único capítulo: querer bem; amar a cidade» - assim começa Norberto Araújo. De facto, pega-nos pelo braço e toca de palmilhar as ruas e as vielas, os becos e as quitandas, os lugares, as tascas e as lojas. Assim conheci eu Lisboa. Já tinha morrido Araújo, mas meu avô, que guardava religiosamente as «Peregrinações», fez comigo as suas, e as nossas peregrinações, que depois fui completando, lendo estas, ouvindo outras, escutando eruditos, como Luís Oliveira Guimarães ou Hernâni Cidade, descobrindo almocreves, galegos, varinas e varinos, faias, gente da Ribeira, a levantar-se todo o ano às quatro da manhã, para iniciar às cinco, mas também chorando sítios perdidos, como o Pátio do Gil, onde nasceu Herculano, refazendo a história no Príncipe Real com Agostinho da Silva, conhecendo o Campo de Ourique antigo, dos quarteis, da revolta do 4 de Infantaria, do largo da Páscoa, de S. João dos Bem-casados, ou ajudando a restaurar o velho prédio da Calçada dos Caetanos, e anotando ano a ano a data em que florescem os jacarandás (este ano mais tardios), e notando solitariamente a semana de outubro em que eles recordam a primavera do hemisfério sul com uma falsa floração…

O EXEMPLO DO BAIRRO ALTO
Para recordar e homenagear Norberto Araújo, mestre do jornalismo, partilho algumas notas sobre o Bairro Alto. Aí a cidade rompeu com os limites do século XIV, ultrapassou a muralha fernandina e desenvolveu-se no tempo áureo em que se tornou capital atlântica dos descobrimentos. A origem do Bairro Alto vem dos chãos e terras dos Andrades, num sítio arruado que a gente do mar habitava, subindo da Boavista e chegando à Ermida de S. Roque, erguida para livrar a cidade da peste. Pescadores e carpinteiros de machado, comerciantes, carvoeiros e almocreves, nobres e burgueses, eis o que foi nascendo nos séculos XVI e XVII. O velho Bairro Alto foi aberto há 500 anos, em 1513, e comporta trinta e duas serventias entre ruas e travessas desenhadas em talhões na Vila Nova de Andrade. Depois, instalou-se a Casa Professa dos Jesuítas em 1553. Para além das portas de Santa Catarina e da cerca de D. Fernando a cidade cresceu. Aqui tinham acampado as tropas castelhanas no cerco de Lisboa de D. Juan de Castela, tendo elas feito uma célebre queimada, antes de desarvorarem perante a ameaça da peste. Ou seriam estas as terras de Ana Queimada? Era o bairro de Santa Catarina de Alexandria ou o Bairro Novo do Alto que ia até Campolide (hoje o caminho da Escola Politécnica e do Rato) – com o plano ortogonal centrado na Rua da Rosa, até à Rua Larga de S. Roque, passando pela Atalaia, pelos Calafates e pela Queimada. E se falamos de casas, referimos o Convento dos teatinos (o Conservatório Nacional, em S. Caetano), o Palácio do Conde da Ericeira (com o inconfundível cunhal das bolas), a Academia dos Ilustrados e, na Rua Formosa, o Palácio dos Carvalhos, onde nasceu Sebastião José, na hoje Rua do Século. Há ainda a Academia Real das Ciências, nascida no Calhariz (hoje no Convento de Jesus), e o Palácio Lançada, que depois veio a albergar o jornal «O Século». Aqui se cantava: «Eu venho do Bairro Alto cosidinho de facadas». Por aqui nasceu, sob o impulso de Eduardo Coelho, o «Diário de Notícias», o primeiro periódico popular de grande divulgação – e depois este tornou-se o bairro de todos os jornais e de onde partiam os ardinas a apregoá-los. E os arruamentos? A Travessa do Guarda-Mor ou do Grémio Lusitano, a Travessa da Água da Flor, com o Palácio Lumiares e a tal quinta dos Andrades, centro do Bairro, a taberna do Tacão, o Palácio Ludovice com frontaria para S. Pedro de Alcântara, a Rua dos Mouros, o Palácio dos Galvão Mexia, a Travessa de S. Pedro, a casa onde viveu e morreu Luísa Todi, favorita de Catarina II, em S. Petersburgo, e ainda os lugares castiços do Conde de Soure e da Vinha. Até ao século XVIII, havia aqui terra de semeadura, mas também o teatro, onde António José da Silva, o Judeu, levou à cena as «Guerras do Alecrim e Manjerona». E se falámos da Vinha, lembramos ainda o Loureiro e as Parreiras, tudo lugares a recordar a atividade agrícola na extrema da urbanização. E não se esqueça o Pátio do Tijolo, onde está a casa de Anselmo José Braancamp, que foi arrendada a Fontes Pereira de Melo, e onde morreram dois Primeiros-Ministros.

TANTAS INVOCAÇÕES… 
Como já se disse, o Convento dos Caetanos (entre tantas casas religiosas: inglesinhos, Mercês…) alberga o Conservatório Nacional, criado por Garrett e Bontempo. Em frente, na hoje Rua João Pereira da Rosa, a velha Calçada dos Caetanos, está a casa mais celebrada de Lisboa, onde moraram Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Ferro, Fernanda de Castro, Bernardo Marques, Ofélia Marques, José Gomes Ferreira e António Quadros. Na outra ponta do Bairro, na Travessa André Valente, próximo do Calhariz e das casas do Correio-Mor, da igreja dos Paulistas, invoco a memória de Bocage, que ali morou, e de outro poeta seu amigo, Nicolau Tolentino. A Rua da Rosa é a rua direita do bairro. E há o Poço da Cidade, e a esquina com a Rua da Atalaia com um dos prédios mais pitorescos do bairro, desenhado em extratexto no livro que seguimos. E depois vamos à Rua da Misericórdia, Rua Larga de S. Roque (que foi Rua do Mundo), onde está o Tavares rico, a recordar os «vencidos da vida» e as grandes tertúlias com gastronomia qualificada, mas também há a memória do Tavares pobre, aqui próximo, hoje lembrado no Farta-Brutos… E quantas outras memórias: o jornal «República», a Livraria Guimarães (hoje do grupo Babel) e daqui é um pulo à Trindade e daí ao Carmo – destruídos no terramoto grande. E o povo disse: «Caiu o Carmo e a Trindade». E em S. Roque ia-se pôr tapete para ouvir os Sermões do Padre António Vieira, num tempo em que os fiéis se sentavam no chão ou na laje para ouvir o orador fantástico. O passeio mágico continua: «pelas Mercês, que mudou para Jesus, e pelo Poço da Cidade, que não se sabe ao certo onde é, e diz-se “que foi aqui”, e pela Atalaia, que é uma Avenida de pitoresco, e pela Rosa das Partilhas, cujas partilhas acabaram, sem nunca se chegar a saber quem foi a Rosa». Dileto, continuemos em busca da cidade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins