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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MORREU JOSÉ ENES (1924-2013)

 

Professor José Enes

 

Morreu esta quinta-feira em Lisboa José Enes, o primeiro reitor da Universidade dos Açores (UAç).
 
José Enes Pereira Cardoso tinha 89 anos e era natural das Lajes do Pico. Era considerado um grande pensador açoriano e um dos mais importantes filósofos portugueses do Século XX.

A vida pública e a obra escrita de José Enes – o mais importante pensador açoriano posterior a Antero de Quental e Teófilo Braga e um dos mais importantes filósofos portugueses do século XX, de formação em escolástica tomista na Universidade Gregoriana de Roma (1945-1950 e 1964-1966), professor da Universidade Católica Portuguesa entre 1968 e 1973, e, a partir de 1976, professor e primeiro reitor da Universidade dos Açores, jubilando-se como vice-reitor da Universidade Aberta (1992-1994) – têm sido atravessadas por três explícitas paixões: a Poesia, os Açores e a Filosofia.

Das três, a Poesia, no campo da prática versatória, esgotou-se em 1960, com a publicação de Água do Céu e do Mar, seu único livro de poemas, e, no campo da crítica literária e da teoria da arte, em 1964/65, com a publicação de A Autonomia da Arte. Neste mesmo ano, José Enes troca os Açores, onde, desde 1953, fora professor no Seminário Episcopal de Angra do Heroísmo, por Lisboa, partindo depois para «Roma a preparar a tese de doutoramento», investigando na «Itália, Canadá e Estados Unidos». Em 1969, publica a tese de doutoramento, intitulada À Porta do Ser, defendida no ano anterior e agraciada com medalha de ouro e distinção Summa cum laude. José Enes publicou sete livros em cerca de meio século de escrita – a média de um livro de sete em sete anos. Se considerarmos exclusivamente os livros de filosofia, o primeiro de 1965, A Autonomia da Arte, o último de 1999, Noeticidade e Ontologia, reduzem-se a cinco, uma média de um livro por década. Com exclusão do primeiro livro de filosofia, versando sobre a Arte e a Moral, os restantes quatro, no seu todo e na sua essência, podem ser reduzidos a um só, À Porta do Ser, de 1969. Deste modo, se excluirmos A Autonomia da Arte, livro em que, devido à metodologia historicista empregue, certamente o autor não se reconhecerá hoje, José Enes é o único autor português do século XX cujo pensamento se reduz a um só livro – e livro que revolucionou radicalmente o pensamento filosófico religioso institucional português, fortemente centrado, até à década de 60, ora num tomismo puro e duro, ora num tomismo beijado pela fenomenologia, ora num tateamento teórico de procura de novos horizontes sem assunção de teoria substituta. Neste sentido, À Porta do Ser estatui-se como a tese de doutoramento mais importante do século XX no campo da filosofia, tanto revolucionando a linguagem tomista quanto mantendo-se-lhe fiel, culminando-se assim, em 1969, com a sua publicação, a deriva teórica desta corrente filosófica em Portugal ao longo das décadas de 50 e 60. Efeito da sua sombra poderosa, desde então nenhum livro importante de filosofia tomista foi publicado em Portugal por autor português.

Face ao pensamento português do século XX como um todo, os estudos de José Enes – ainda que fortemente individualizados, prosseguidos entre os Açores, Lisboa e Roma – devem ser integrados na revitalização do pensamento tomista, desde a sua refundação por Martins Capela, Fernandes Santana e os padres fundadores da Brotéria em 1902. À Porta do Ser corresponde à e culmina a primeira crise desta doutrina filosófica após a fundação da Revista Portuguesa de Filosofia, em 1945, pressionada, ao longo da década de 50, seja pelas ontologias existenciais e personalistas, seja pela fenomenologia husserliana. Publicado em 1969, cruzando e sintetizando estas duas últimas inspirações com a ossatura sistemática do tomismo, À Porta do Ser emerge como o cúmulo desta tradição de quase 100 anos, refundando o tomismo através da abertura a um novo horizonte interrogativo, para o qual muito contribuiu a inspiração da hermenêutica do «segundo» Heidegger.

Miguel Real