JERUSALEM, JERUSALEM…
Minha Princesa de mim:
Escreveu Paul Claudel sobre a sua conversão: «Tel était le malheureux enfant qui, le 25 décembre 1886, se rendit à Notre-Dame de Paris pour y suivre les offices de Nöel». Começava então a escrever e pensava que nas cerimónias católicas, consideradas com superior diletantismo, eu encontraria um excitante apropriado e matéria para alguns exercícios decadentes. Assim disposto, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com medíocre prazer, à missa solene. Depois,como nada mais tinha para fazer, voltei para as "vésperas". Os meninos do coro, vestidos de branco, e os alunos do Seminário Menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, que assistiam, cantavam o que, mais tarde, soube ser o Magnificat. Eu mesmo estava de pé, no meio da multidão, junto do segundo pilar, à entrada do coro, do lado direito da sacristia. E foi então que se produziu o acontecimento que domina toda a minha vida. Num instante o meu coração foi tocado e EU ACREDITEI. Acreditei, com tal força de adesão, com tal comoção de todo o meu ser, com tão poderosa convicção, com certeza tal que não deixava lugar a qualquer dúvida, ao ponto de, desde então, todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, não puderam abalar a minha fé, nem, na verdade, lhe tocarem sequer". Isto tem algo de paulino. No livro dos Atos dos Apóstolos, regista-se uma arenga de S.Paulo aos judeus de Jerusalém, em que, a dado passo, o fariseu de Tarso narra a sua conversão à "Via": "Estava a caminho e aproximava-me de Damasco, quando, de repente, cerca do meio-dia, uma grande luz vinda do céu me envolveu com o seu brilho. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ´Saúl, Saúl, porque me persegues?´ Respondi: ´Quem és tu, Senhor?´ E ele então disse-me: ´Sou Jesus Nazareno, que tu persegues´." E o mesmo Paulo escreverá na sua carta aos Gálatas: "Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Se ainda vivo dependente de uma natureza carnal, vivo animado pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Não quero tornar inútil a graça de Deus, porque se a justificação viesse por meio da Lei, então Cristo teria morrido em vão". Nestes e noutros testemunhos, a conversão irrompe no duplo sentido que a palavra latina "ruptura" em línguas latinas significa: a rutura que nos chegou por via erudita e quer dizer cisão, separação; e a rotura, adveniente por via popular, com que dizemos corte interno, golpe, ferida. O convertido rompe com o seu passado, crenças e pertenças antigas. Mas também sente que, no fundo de si, uma ferida se abriu, que o mantém alerta e ele não deverá deixar sarar. A vocação de Deus à transformação dessa criatura num "homem novo", cega pelo brilho da luz da revelação. Quando reabrir os olhos e sentir a dor profunda de uma alegria nova, verá tudo com outro olhar e saberá que nada poderá fazer com que estremeça a fidelidade interior ao destino que então descobriu. Outras conversões houve e há que seguiram um percurso mais lento, estudioso até: as dos Maritain, Jacques e Raïssa, e de Vera, irmã desta; a de Edith Stein. E outras que nunca se manifestaram em confirmações públicas, mas não terão, por isso, sido menos profundas, como a "Attente de Dieu" de Simone Weil. As Escrituras não dizem se Saúl de Tarso ia a cavalo no caminho para Damasco. Mas tombando de um cavalo o foi representando a arte europeia, talvez para realçar a nobreza da personagem, a violência do acontecimento, o efeito da força que vem de cima. Miguel Ângelo pintou a cena numa parede da Capela Paulina, no Vaticano: seguindo o relato de S. Lucas, representa Cristo nas alturas, rodeado de anjos guardiões sem asas, desferindo o relâmpago da graça que fere S. Paulo e o deita ao chão, cego de luz... O tema da graça foi muito discutido antes e durante o Concílio de Trento, cujo papa foi Paulo III, que encomendou o fresco, iniciado por Miguel Ângelo em 1542. O grande artista regressou muitas vezes a ele, incluindo em poemas que compôs no fim da vida. Os exemplos das conversões repentinas e estrondosas parecem sustentar as teses da predestinação, de Calvino aos jansenistas: a graça de Deus opera independentemente da vontade dos homens... No quadro de Caravaggio - que também vimos juntos em Roma,lembras-te? - Cristo inclina-se, suspenso no ar por um anjo que parece transportá-lo, para estender a mão direita a Paulo derrubado, gritando de dor, com ambas as mãos postas sobre os olhos que a súbita iluminação cerrou, e que só voltarão a ver depois da revelação interior lhe ter transformado o olhar. Um soldado tapa os ouvidos, não quer ouvir a voz que fala a Paulo, e não vê a luz,como no relato de S. Lucas; outro, mais idoso, nada ouve, mas a luz tira-lhe a vista e ele aponta para cima, contra quem não pode ver, a lança que manipula. A graça de Deus escolhe? Ou será como a Palavra na parábola da semente lançada à terra,cujo destino dependerá do solo em que for cair? Estou no meu antro, nem pássaros já cantam no jardim. Todos dormem por estas longitudes. Vem ainda longe a manhã. Vou ao sermão 71 do "meu" Mestre Eckhart: "Surrexit autem Saulus de terra apertisque oculis nihi videbat". O místico dominicano alemão,que ainda viveu no século de Petrarca e foi condenado em Avignon (fala-se hoje em canonizá-lo!), cita da "Vulgata" latina este passo dos "Atos" de S. Lucas, que diz: Paulo levantou-se do chão e, de olhos abertos, não viu nada. E comenta: "Não poderia ver o que é Uno. Nada viu, era Deus. Deus é um nada e Deus é um algo. O que é algo, isso também é nada. O que Deus é, é-o plenamente. Por isso Dinis, o luminoso, diz, quando escreve sobre Deus: Ele é para além ser, para além vida, para além luz; não lhe atribui nem isto nem aquilo, e quer dizer que Ele é não se sabe o quê que é tão longe para além. Alguém vê qualquer coisa, ou qualquer coisa cai no teu conhecimento, não é Deus; não o é pela simples razão de que Ele não é isto nem aquilo. Aquele que diz que Deus está aqui ou ali, não acrediteis nele. A luz que Deus é, brilha nas trevas. Deus é uma verdadeira luz; aquele que deve vê-la tem de ser cego e deverá manter Deus à parte de toda qualquer coisa. Diz um mestre (Santo Agostinho): aquele que fala de Deus por qualquer comparação, fala d´Ele de um modo que não é límpido. Quanto ao que fala de Deus por nada, esse fala d´Ele de modo apropriado. Quando a alma chega ao Uno e entra num límpido despojamento de si mesma, então ela encontra Deus como num nada. Pareceu a um homem, como em sonho - era um sonho acordado - que ele estava prenho de nada como uma mulher com um menino, e no nada nasceu Deus. Ele era o fruto do nada. Deus nasceu do nada. Por isso ele diz: ´Levantou-se do chão e,de olhos abertos,não viu nada´... Aquele sonho acordado teve-o Mestre Eckhart. A linguagem dos místicos é sempre um pouco difícil para nós, sobretudo por vivermos no mundo confuso das imagens. Ela é simplíssima, magra, não se perde em pietismos ou devoções sentimentalmente antropomórficas. Procura comunicar a experiência íntima de evidências que só no silêncio se descobrem e só na disciplina interior do silêncio podem ser partilhadas. Ao ser derrubado e cego, S. Paulo apenas pergunta: ´Quem és tu,Senhor?´ E só isso faz sentido." O marquês de Sarolea tinha dois mundos: o da sua circunstância, onde folgadamente se movia, e o do seu mistério interior, a que pertencia.
Camilo Martins de Oliveira