Os Lusíadas em Português e Mirandês contados em BD por José Ruy
A VIDA DOS LIVROS |
Acaba de ser publicada a edição comemorativa dos vinte cinco anos de “Os Lusíadas” em Banda Desenhada, da autoria de José Ruy (Âncora Editora, 2009). Simultaneamente, foram dadas à estampa as edições da tradução da mesma obra em mirandês (“Ls Lusíadas”) e do livro, também da autoria de José Ruy, “Mirandês – Stória dua Lhéngua e dun Pobo an BZ” (em português e mirandês). Trata-se de iniciativas que merecem uma especial atenção, uma vez que estamos perante o reconhecimento da importância da língua mirandesa, em diálogo com a língua e a cultura portuguesas, causa que tem contado com o trabalho denodado e persistente de Amadeu Ferreira (que o Centro Nacional de Cultura tem acolhido gostosamente, através da publicação dos seus textos) e da Associaçon de Lhéngua Mirandesa.
UM DESENHADOR DE REFERÊNCIA
José Ruy (1930) é um dos mais prolíferos e talentosos desenhadores de banda desenhada em Portugal, tendo colaborado desde muito cedo (com apenas 14 anos de idade) na revista “Papagaio” (de Adolfo Simões Muller, 1909-1989). Formado na Escola António Arroio como desenhador litógrafo, onde foi discípulo de Rodrigues Alves, destacou-se desde os nove anos de idade como um desenhador muito talentoso. Dos cerca de setenta álbuns ilustrados de que é autor, quatro dezenas são de Histórias de Quadradinhos (HQ), tendo-se tornado uma referência, ao lado dos nomes maiores da banda desenhada portuguesa. Na revista “O Mosquito” (criada em 1936) trabalha como gráfico logo na década de quarenta, mas só em 1952, um ano antes do fim da 1ª série, publicará a sua primeira história, “O Reino Proibido”. Nos anos cinquenta, no “Cavaleiro Andante” (1952-1962), ombreia com nomes fundamentais de HQ como Fernando Bento (1910-1996), Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005) e o seu colega José Garcês (1928). Aí publica “O Bobo”, “Ubirajara”, “Fernão Mendes Pinto”, “Gutemberg”, “A Mensagem”. Será director da 2ª série de “O Mosquito” (1960-61) e colabora no “Camarada” e “Mundo de Aventuras”. Publica em 1960 o álbum “Infante D. Henrique”, colabora na série “Grandes Portugueses” (1962). Encontramos ainda colaboração sua em “Tintin”, “Spirou”, “Jornal da BD”, “Selecções da BD” etc. Ao longo dos últimos anos realizou um vasto conjunto de trabalhos, com forte pendor pedagógico e didáctico, podendo dizer-se que, ao contrário do que parece resultar de uma apreciação superficial, José Ruy colocou a sua arte ao serviço da divulgação histórica e de uma função educativa, devendo colocar-se muitos dos seus álbuns ao nível do que melhor existe nas HQ. Se é certo que não teve uma carreira internacional (apesar da publicação no exterior de alguns dos seus trabalhos), não é menos verdade que a sua produção merece uma atenção muito especial, considerando o carácter da sua criação e o modo como desenvolveu o seu talento.
“OS LUSÍADAS” COMO EXEMPLO
José Ruy, ao realizar a adaptação de “Os Lusíadas”, colocou as suas qualidades e características ao serviço de um projecto difícil, mas do qual se desempenha com mestria e proficiência, apesar da dificuldade manifesta do projecto. Refira-se que tem sido salientado, com razão, pelos principais estudiosos das HQ que o nosso autor tem uma especial vocação para temas marítimos, o que se encontra patente na série de ficção “Porto Bomvento” (com sete álbuns editados pela Asa) ou na sua obra-prima, “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, publicada, como já se disse, numa primeira versão, no “Cavaleiro Andante” (1957-1959). Lembremo-nos, contudo, do facto de a obra original ter sido publicada com texto explicativo na base de cada quadro, enquanto a versão hoje no mercado em álbum recorrer aos balões. Sente-se, assim, na versão publicada nos anos cinquenta uma ambiguidade entre o ilustrador e o cultor de HQ. A esta luz, a obra hoje em apreço reúne vários elementos, nos quais José Ruy tem provas dadas (desde os motivos aos temas). Em “Os Lusíadas” notam-se algumas das suas principais características, das quais deve referir-se: grande fidelidade aos textos literários; preocupação em fazer os leitores seguirem a narrativa através de sucintas explicações; o uso de uma técnica própria, adequada a um poema épico, não reduzindo as pranchas a uma limitação em espaços fechados e utilizando a capacidade criadora e imaginativa para ligar um relato real às referências da mitologia clássica; o recurso a uma técnica moderna, dotada de uma significativa versatilidade, com um traço ao mesmo tempo seguro e volátil, com uma compreensão exacta do movimento; e, por fim, a preocupação em ligar os diversos registos da narrativa épica em que a memória e a mitologia se misturam e se encontram, permanentemente. Saliente-se que, para auxiliar a leitura, o autor recorre nas aberturas a João Franco Barreto, autor do século XVII, que resumiu em oitavas cada um dos cantos do poema. Por sua vez, o relato de cada canto é antecedido por uma explicitação do argumento. No entanto, nas pranchas, é a própria expressão camoniana expressamente citada, com breves explicações, devidamente assinaladas.
ALGUNS EPISÓDIOS
Para ilustrar o que dizemos (sobre as qualidades e características do autor) daremos três exemplos que nos permitirão fazer realçar as especificidades da criação artística de José Ruy. O primeiro caso é o do Concílio dos Deuses, elemento crucial para a compreensão da trama subjacente ao poema e à história da chegada de Vasco da Gama e dos portugueses à Índia. A introdução do Olimpo no relato conduz a uma alteração de método. Os deuses situam-se fora do curso cronológico dos acontecimentos e o combate entre Vénus e Baco, mediado pelo próprio Júpiter, vai desenrolar-se em termos tais que permite ao leitor ver uma encenação em que o resultado da acção do “deus ex machina” decorre como que atrás de um véu, numa cena que o poeta vai descrevendo e revelando. O segundo exemplo tem a ver com o início do relato de Gama sobre a história pátria. José Ruy procura interpretar os acontecimentos históricos com fidelidade simultânea aos acontecimentos e à construção de uma mitologia imaginária da nação. Estamos diante de um processo de permanente e necessária conciliação entre a referência histórica e o “maravilhoso” que “Os Lusíadas” contêm, na linha da “Odisseia” de Homero e da “Eneida” de Virgílio. Por fim, temos a ilustração do Canto IX do poema de Camões, A Ilha dos Amores. Com grande sobriedade, José Ruy desenha uma ilha quase utópica a que não falta a sensualidade, mas onde a preocupação fundamental é dar um sentido poético à apresentação do tema. Compreendendo bem o sentido e alcance de um episódio como este, José Ruy procura deixar claro aos leitores que o canto IX é o corolário de uma projecção terrena do debate que tem lugar no Concílio dos Deuses. Quem ganha, no fundo, é o Amor através da persistência de Vénus e do apoio que obtém de Júpiter.
A UTILIDADE DA OBRA
À semelhança do que aconteceu na colecção da Sá da Costa, dos clássicos contados às crianças e lembrados ao povo, num registo de narrativa adaptada para a melhor compreensão dos jovens e dos cidadãos em geral (em que a preocupação iconográfica também existe, em termos muito limitados), este “Os Lusíadas” em HQ (ou em BD) tem uma significativa potencialidade pedagógica e didáctica, que não poderemos deixar de referir – compreendendo José Ruy muito bem essa característica. Aliás, constitui um elemento essencial da obra deste autor o facto de ter privilegiado a vertente histórica e didáctica à narração romanesca ou romanceada. De facto, há diversos críticos que salientam o facto de José Ruy ter ficado cá e não ter seguido mais sistematicamente a via romanesca, trilhada pelo mestre Eduardo Teixeira Coelho, o que pode tê-lo prejudicado nas suas possibilidades de maior divulgação no país e no estrangeiro. José Ruy tem tido, porém, um percurso de gradual maturação, com um estilo próprio e uma assinalável capacidade de ligação entre a capacidade técnica e a vitalidade criadora e imaginativa.
Guilherme d'Oliveira Martins