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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

 
 

A VIDA DOS LIVROS
De 31 de Agosto  a 7 de Setembro de 2009

Leszec Kolakowski (1927-2009) é um dos autores do século XX cuja obra crítica se confunde com os acontecimentos que viveu e em que participou. Ao escrever “Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution” (Oxford University Press, 1978; vol. 1, The Founders, vol. 2, The Golden Age; vol. 3, The Breakdown) procedeu a uma análise brilhante e serena que nos permite compreender como a teoria marxista nasceu e se desenvolveu, até ao colapso, que já se anunciava em 1978, dez anos antes da queda do muro de Berlim (no mesmo ano em que o Cardeal Karol Wojtila foi eleito Papa, com os efeitos conhecidos). Para o filósofo havia contradições internas e pressupostos insanáveis na teoria formulada por Karl Marx que foram acentuadas no modo como foram pensadas e postas em prática, em especial a partir da Revolução Russa de 1917. Nascido na Polónia, entusiasmado num primeiro momento por Marx, cedo pôde perceber que a liberdade crítica entrava em choque com a ideia de construir um homem novo. Por isso, teve de sair do seu País e foi acolhido na Universidade de Oxford, onde exerceu o seu magistério.

UMA VIDA DE ESTUDO
Filho de um economista e ensaísta, morto pela Gestapo no início da guerra, nascido em Radom (Polónia), Kolakowski teve uma formação perturbada pela guerra, o que o obrigou a uma formação doméstica e à frequência de escolas clandestinas. Depois da Guerra estudou Filosofia na Universidade de Lodz, tendo-se doutorado em 1953 pela Universidade de Varsóvia com uma tese sobre Espinosa. De 1959 a 1968 foi Professor de Filosofia e História na Universidade de Varsóvia. Foi membro do Partido Unificado dos Trabalhadores Polacos de 1947 a 1966, sendo considerado desde cedo uma boa promessa. Visitou a União Soviética e esse contacto com o estalinismo determinou uma visão crescentemente crítica da sua parte sobre o curso dos acontecimentos, tornando-se um marxista heterodoxo, preocupado com uma leitura humanista de Karl Marx. Esse afastamento determinaria a sua expulsão do Partido. São de 1956 as suas reflexões críticas sobre o determinismo marxista (publicadas em Nowa Kultura), onde está já implícita a ideia de que o fenómeno totalitário do estalinismo não constituía uma aberração, antes decorrendo da lógica final do marxismo, do determinismo e da ideia de uma sociedade terminal supostamente perfeita. Como dirá mais tarde: “as classes médias, em vez de se afundarem ou desaparecerem como proclamava a profecia marxista, cresceram mais e mais; o mercado, em vez de um obstáculo ao progresso tecnológico, revelou-se o seu mais poderoso estímulo; a pauperização relativa ou absoluta da classe trabalhadora também não aconteceu; a taxa decrescente de lucro, que causaria o colapso do capitalismo, foi outra esperança vã; a revolução proletária, a revolução resultante do conflito entre os trabalhadores da indústria e os capitalistas, nunca aconteceu”. Segundo uma sua expressão que se tornou consagrada: foi a “grande fantasia” nosso tempo, que começou com a promessa libertadora de Prometeu e acabou no terror estalinista. Neste período sentir-se-á cada vez mais atraído pelo papel do cristianismo na cultura, em especial pela valorização da liberdade na procura da verdade e do bem. A procura da transcendência exigiria a liberdade, abrindo caminho à dúvida, à crítica e ao reconhecimento da importância da imperfeição. Daí o contraste com a ideia de caminho necessário para uma sociedade perfeita pela imposição uma “verdade” política. Em 1968, parte para o Canadá, onde será Professor visitante na Universidade McGill (Montreal), em 1969 exerce idênticas funções na Universidade de Califórnia (Berkeley) e em 1970 já se encontra em Oxford, no All Souls College. Aí ficará até ao fim da vida, com breves interrupções, para leccionar em Yale e em Chicago. Nesse período inicial, os seus ensaios e intervenções foram banidos na Polónia, passando no entanto a circular clandestinamente nos meios da resistência. Um texto de 1971 intitulado “Teses sobre a Esperança e a Desesperança” servirá de inspiração aos grupos da sociedade civil que levarão à criação do “Solidariedade”. São reflexões muito práticas, mas com sólida fundamentação intelectual, sobre a necessidade da criação de movimentos espontâneos baseados na solidariedade voluntária. Kolakowki pôde, assim, ser, a um tempo, um intelectual muito influente na procura de novos caminhos de reflexão crítica, mas também um cidadão activo, permanente apoiante do processo de democratização da Polónia e da sua abertura à Europa e ao Mundo. Num texto célebre (“Idolatria da Política”, 1986) afirmou: “Aprendemos História não com vista a viver ou a ter sucesso, mas para sabermos quem somos”. Esta foi uma das suas preocupações permanentes, que suscitou críticas e perplexidades, uma vez que as suas reflexões críticas basearam-se sempre na ideia de que a liberdade obriga a trilhar os caminhos mais difíceis e inóspitos, sem medo dos destinos a que podem conduzir. Com uma grande admiração pelo modo de estar, de pensar e de agir de Kolakowki, um outro resistente célebre Adam Michnik disse dele que é “um dos mais proeminentes criadores da cultura polaca contemporânea”. A sua heterodoxia, o seu sentido crítico, a procura da compreensão da complexidade, tudo isso constitui o método que usou no sentido de abrir horizontes para uma sociedade aberta, cosmopolita, mas ciente da importância da diversidade cultural. Timothy Garton Ash, num texto recente associava a invocação de três personalidades marcantes, recentemente desaparecidas: Bronislaw Geremek, Ralf Dahrendorf e Leszec Kolakowski (Guardian, 22.7.09). Apesar das diferenças, salientava haver preocupações comuns a todos eles, relacionadas com o primado da dignidade da pessoa humana, com o respeito radical pela liberdade e com a salvaguarda dos direitos e deveres universais e das diferenças culturais. No fundo, o que os unia a todos era a liberdade de espírito e a consciência de que as pessoas são os verdadeiros actores da História.

UM ESPÍRITO BRILHANTE
“É o conflito de valores, mais do que a sua harmonia que mantém a cultura viva” – costumava dizer, e aí baseava o seu sentido crítico, que a dura experiência da vida lhe ensinara. Para o filósofo não seria possível nem desejável encontrar uma síntese harmoniosa dos diversos elementos contraditórios de que se faz a história humana. Ao ofício de pensar não cabe o acto de construir a verdade, mas sim criar um espírito de verdade. Essa era a sua preocupação fundamental. Essa procura exigente obriga a trilhar caminhos inesperados. Daí a necessidade de exercer sempre um magistério crítico, começando por desconfiar de nós mesmos. E a preocupação de Kolakowki com a História levou-o a demarcar-se das interpretações historicistas, antes preferindo partir dos acontecimentos, procurando aí exercitar o “espírito de verdade”: “Precisamos de defender e apoiar métodos tradicionais de investigação, elaborados ao longo dos séculos, para estabelecer o encadeamento dos factos históricos e separá-los de fantasias, ainda que possa acontecer alimentar tais fantasias. A doutrina segundo a qual não há factos, mas sim interpretações, deve ser rejeitada por ser obscurantista. E temos de preservar a nossa tradicional crença em que a história da humanidade, a história das coisas que realmente aconteceram, criadas por inúmeros acidentes únicos, é a história de cada um de nós, sujeitos humanos; uma vez que a crença nas leis históricas é produto da imaginação. O conhecimento histórico é crucial para cada um de nós; para as crianças da escola e os estudantes, para novos e velhos. Devemos absorver a história como algo que nos é próprio, com todos os seus horrores e monstruosidades, com a sua beleza e o seu esplendor, as suas crueldades e perseguições, assim como todos os magníficos trabalhos da mente ou da mão humanas; devemos agir desse modo, se queremos saber o nosso próprio lugar no universo; se queremos saber quem somos e o que fazer” (What Past is For”, Nov. 2003).

Guilherme d'Oliveira Martins

AGOSTO AZUL EM ARZILA.

Por Guilherme d’Oliveira Martins

Era de madrugada quando passei a mítica porta de armas da velha Praça de Arzila. Eram praticamente três da manhã. Os voos tardios para Casablanca (a aura de Ingrid Bergman estava lá) e depois para Tânger atrasaram-se. E não há hospitalidade, por melhor que seja, como de facto foi, que dispense as burocracias das fronteiras, os passaportes, as polícias, os carimbos. Enquanto uma parte da delegação portuguesa ao Festival de Asilah (Arzila) ficou em Tânger, tive o privilégio de ficar na cidade histórica. A noite límpida de Agosto dominava a cidade, que se aquietara havia muito pouco. Atravessei de automóvel as ruas estreitas, num dédalo apertado e labiríntico, e depressa cheguei à muralha fronteira ao oceano. Quando entrei no Palácio Raisouli (hoje da Cultura), o silêncio apenas foi interrompido pelo som dos passos nos corredores semi-obscurecidos e no pátio central revestido de azulejos, coberto por uma clarabóia de quatro águas e decorado com estuques e madeiras. Ao nosso encontro vieram prestáveis camareiras, que não disfarçavam, apesar da simpatia, terem sido acordadas a desoras. Em poucos minutos, depois de uma breve hesitação na escolha do quarto, já estava acomodado em instalações amplas, com leve toque arábico e todas as benesses ocidentais.

Abri as venezianas e olhei o que se avistava da janela. Estava no coração da Medina, a iluminação deixava ver as casas brancas de cal imaculada debruadas a azul, as açoteias, o encadeado de construções, um pequeno jardim em frente, e, debruçando-me apoiado no parapeito, deparei à esquerda com o negrume do Atlântico sob o céu estrelado de uma noite de lua cheia e senti o marulhar, a cadência regular das ondas, plácidas e serenas. O cansaço da viagem adormeceu-me rapidamente. E só fui acordado pelos primeiros raios intensos da aurora. A manhã começava, e o jardim em frente acolhia-me com um magnífico caramanchão de buganvílias, que me recordaram o zelo de minha avó Ana com as suas flores algarvias. E lembrei o “Agosto Azul” de Teixeira Gomes: “por cima dos alcantis da costa progride a alvorada; cinge-se o céu de faixas de oiro cor de limão golpeadas a carmim”… Recordei o Algarve, ali tão próximo. E, ao ouvir o bater regular das ondas, senti-me em casa, como se as lembranças de menino viessem num instante. Mas era muito cedo e a cidade estava ainda em silêncio. Adormeci de novo e a luz intensa do sol invadia o quarto. Os primeiros dias de Agosto diziam: “… e o mar dilata-se infinitamente quando rebenta a luz do Sol, jorrando fogo como se por detrás do céu tudo fosse metal fundido”.

Pouco depois das nove estava na sala de refeições daquele amplíssimo palácio, reconstruído graças à determinação de Mohamed Benaïssa, antigo Ministro da Cultura e actual Presidente da autarquia. Contam-se muitas histórias sobre esse corsário dos tempos modernos que construiu aquele majestoso edifício no centro da Medida com amplos janelões para o Mar. Raisouli foi um temível guerrilheiro tribal que chegou a vencer o governador de Tânger no final do século XIX, tornando-se-se paxá da cidade de Arzila em 1906. Por ali há fantasmas desse tempo, de uma história de pouco mais de cem anos. O certo é que até há poucas décadas aquela mole imponente estava em ruínas, sem nunca ter chegado a ter uma utilização efectiva. Só a recuperação histórica da cidade dos últimos anos permitiu que o edifício tivesse sido reconstruído e adaptado para acolher convidados, artistas, escritores, governantes… Gozei o bom pequeno almoço e a vista magnífica sobre o Atlântico – e percebi que o recife de que falaram Duarte Pacheco Pereira e os nossos navegadores há muito deixou de existir.

O dia estava límpido e os azuis deslumbrantes. Percorri as ruas de Asilah, fruindo o ambiente da cidade que acordava e que começava o intenso bulício. Turistas misturavam-se com a gente da terra, os trajes informais dos estrangeiros contrastavam com as vestes tradicionais, as túnicas, os lenços das mulheres, o ritmo lento da abertura do comércio, os bazares cheios de artesanato, cerâmicas, cobres e recordações. Próximo da torre de menagem deparo-me com uma parede pintada por artistas portugueses. As silhuetas de vários visitantes saúdam uma jovem com vestes tradicionais, de rosto velado, onde apenas se adivinham os olhos, posta numa janela autêntica artificiosamente pintada. Muita gente fotografa o cenário, assinado com o nome de Portugal e uma pequena bandeira. Mais adiante vejo a placa deixada por Helena Vaz da Silva e pelo CNC em 1987 “os portugueses ao encontro de Marrocos”. A torre foi recuperada pela Fundação Gulbenkian e alberga no festival deste ano a exposição sobre o património português recuperado graças àquela instituição. É imponente, encimada por um “telhado de cobre de quatro águas, com quatro guaritas ligadas pelo caminho da ronda protegido por merlões”. No guia editado pelo CNC “Portugal e o Mundo, o futuro do passado” dedicado a Marrocos (Lisboa, 2003), Rui Rasquilho diz-nos mais: “a torre terá sido desenhada por Boytaca e por ele reconstruída conjuntamente com as muralhas no início do século XVI”. Lembre-se que D. Afonso V e seu filho D. João conquistaram Arzila em 24 de Agosto de 1471, e foi a partir daqui que Tânger foi tomada. Em 1550, por decisão de D. João III, Portugal abandonou esta praça, retomada em 1577 por D. Sebastião, a pensar nas novas conquistas marroquinas. Até que, em 1589, Filipe I decide deixar Arzila… A torre desta cidade e o Castelo do Mar em Safi, ao sul de Marrocos, são as únicas torres de traça medieval de origem portuguesa que ainda subsistem em África. Diz a tradição que foi no largo fronteiro à torre que D. Sebastião acampou com as suas tropas antes de partir para o desastre de Alcácer-Quibir. Depois do reconhecimento da Medina, regressei ao Palácio da Cultura para visitar os ateliês dos artistas.

Havia um movimento e um ambiente extraordinários. David Almeida, de há muito um dos entusiastas do festival, entregava-se à sua arte de exímio gravador, ensinando, desde o modo de tornar operacional uma prensa teimosa até à transmissão da difícil técnica de imprimir no papel o resultado do talento. José Emídio não escondia o orgulho de trazer a Cooperativa Árvore àquele lugar de tantos mitos. E ia pintando uma alegoria aos amores de D. Sebastião (naquele dia 3 de Agosto, véspera da partida funesta) conversando animadamente sobre arte, sobre a pátria e sobre tudo. Carlos Dias juntou-se à conversa, também ele (ou seria Alberto Terrível?) às voltas com a representação do mito sebástico, mas sobretudo empenhado em demonstrar que a memória que interessa viver é a da cultura, da arte e das aprendizagens. Bela Silva dirigia o ateliê de escultura. Carlos Reis, Luísa Gonçalves, Fernanda Costa afadigavam-se no entusiasmo de criar e de exprimir o gosto de estarem ali. Era emocionante entrar naquele lugar, a qualquer hora do dia. Muito mais do que invocações históricas o fundamental é transformar a memória em cultura de paz. Como diria no dia seguinte: “Em Asilah há uma vida cultural onde o património não se pode situar nem compreender sem uma ligação actual à contemporaneidade. A história e a actualidade cruzam-se, naturalmente”.

A ideia do festival é extraordinária de possibilidades. Encontramos o património e a vida, a história e a actualidade. Na manhã seguinte, numa volta exterior às muralhas, descubro uma pequena multidão de comerciantes com os seus burros com albardas, cilhas, cabrestos, gorpelhas e cangalhas como há muito não via. Lembrei-me dos nossos almocreves moçárabes, a comerciarem legumes frescos e de tudo um pouco. Afinal, os berberes marroquinos são nossos primos muito próximos, indo-europeus que circularam ao longo dos séculos no Mediterrâneo. E foi por entre uma pequena e pacífica algazarra de mercadores que visitei detidamente as portas tradicionais de Asilah: Bab Homar, de terra, virada a nascente, que ostenta ainda as armas portuguesas, algo apagadas; Bab El Bahar, próximo da torre de menagem e a de Casbá, virada a norte fronteira à avenida marginal.

À noite ao jantar, antes do espectáculo de fado de Raquel Tavares, em casa de Mohamed Benaïssa, num ambiente muito acolhedor e requintado, na Medina, foi possível rememorar mentalmente a estada única. No fundo, “há uma ideia nova de descoberta que temos de prosseguir e desenvolver, como respeito e partilha, como hospitalidade e dom. A cultura é um factor de riqueza, de mobilidade, de conhecimento, de informação. Não é possível falar de desenvolvimento humano, no sentido moderno, sem uma forte valorização do fenómeno cultural”.


 

 
 

A VIDA DOS LIVROS
De 24 a 30 de Agosto de 2009

«Europes – De l’Antiquité au XXème Siècle – Anthologie Critique et Commentée» de Yves Hersant e Fabienne Durand-Bogaert (Robert Laffont, 2000) é um instrumento fundamental para a compreensão do evoluir da ideia europeia. A Europa é um continente complexo nas suas raízes e influências. Muitas vezes se discutem as suas raízes, havendo a tentação ou de simplificar ou de esquecê-las. Lugar de conflitos e de trágicas disputas, a Europa foi-se afirmando através de sinais contraditórios, ora como lugar das liberdades e da dignidade humana, ora como sede de dominações e fonte de injustiças. No entanto, a Europa foi-se tornando um lugar de esperança e de razão, onde a democracia e os direitos fundamentais nasceram. E quando, nos dias de hoje, falamos de construção de um projecto europeu, centrado na União Europeia, temos de apostar na reflexão, na cultura e nas ideias, uma vez que um projecto de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural tem de criar condições para uma convergência activa de Estado e Povos livres e soberanos.

  
Matisse, L’enlévement d’Europe, 1927, National Gallery of Austrália, Canberra.

A IDEIA DE EUROPA
Edgar Morin em “Pensar a Europa” afirmou terem sido “interacções entre povos, culturas, classes, Estados, que teceram uma unidade, ela própria plural e contraditória”. Estamos perante uma concentração extraordinária de influências e potencialidades. E não é possível falar e compreender as culturas europeias a não ser analisando o que os europeus criaram dentro e fora da Europa. Há, por isso, uma tensão e uma dialéctica entre a Europa na Europa e a Europa fora da Europa. Os europeus começaram por ter diversas origens e raízes, com um peso muito especial para a Ásia, de que a Europa é uma extensão natural. Daí a importância da cultura indo-europeia e do diálogo na Antiguidade Oriental e Clássica entre ocidente e oriente, desde o Crescente Fértil ao Mediterrâneo Oriental. A Europa que herdámos nasceu em volta do Mediterrâneo e depois continentalizou-se ao longo dos séculos. As guerras civis europeias do século XX, com projecção mundial e resultados trágicos, levaram a que, sobretudo depois de 1945, tenha havido um forte movimento pan-europeu, que o Congresso de Haia de 1948 procurou projectar e desenvolver como sobressalto cívico e factor preventivo da guerra e dos conflitos desregulados. Denis de Rougemont, designadamente no Centro Europeu de Cultura, de Genebra, foi um dos principais protagonistas dessa acção intelectual, que passou pela procura e descoberta de autores e correntes de pensamento europeístas.

UMA IDENTIDADE COMPLEXA E PLURAL
Milan Kundera disse um dia que o europeu poderia ser definido como aquele que tem nostalgia da Europa. Tendo afirmado que na Idade Média a unidade europeia era baseada na religião e que na Idade Moderna na cultura, perguntava qual seria o factor actual de unidade? A técnica? O mercado? É, no entanto, difícil responder ou mesmo falar de uma identidade europeia. As raízes são múltiplas e até contraditórias. Uma identidade homogénea não existe. Não há uma nação europeia, mas um caleidoscópio heterogéneo, pleno de complementaridades. No entanto, vista de fora, a Europa tem uma personalidade, que muitas vezes é olhada com desconfiança, por causa da tentação eurocêntrica. Na célebre conferência de Genebra de Setembro de 1946, Karl Jaspers procurou dar respostas a este intrincado problema. O pensador falou-nos de Liberdade, de História e de Ciência como marcas dessa personalidade europeia. “Se queremos citar nomes, a Europa é a Bíblia e a Antiguidade. A Europa é Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, é Fidias, é Platão e Aristóteles e Plotino, é Virgílio e Horácio, é Dante e Shakespeare, é Goethe, Cervantes, Racine e Molière, é Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo, Rembrandt, Velásquez, é Bach, Mozart, Beethoven, é Agostinho, Anselmo, Tomás, Nicolau de Cusa, Espinosa, Pascal, Rousseau, Kant, Hegel, é Cícero, Erasmo, Voltaire. A Europa está nas suas catedrais, nos seus palácios, nas suas ruínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos suíços e dos holandeses, dos anglo-saxões…” E nós teremos de acrescentar António de Lisboa, Vasco da Gama, Camões, Vieira, Coimbra, Lisboa… A Liberdade (para Jaspers) significa inquietude e agitação, vitória da vontade sobre o arbitrário. A consciência trágica liga-se à esperança cristã, e o diálogo entre culturas torna-se mais do que adaptação, transformando-se em busca de uma consciência de si. A História é a lógica sequência da Liberdade – situando o que é real e o que é possível, a partir da pessoa humana, num caminho sem fim. A Ciência, por fim, parte da ideia de que o saber nos torna mais livres, pelo sentido crítico, pela experiência, pelo uso equilibrado da razão.

O MISTÉRIO DE UMA DESIGNAÇÃO
A Europa foi baptizada pelos gregos, mas as razões da designação perdem-se nos tempos. O adjectivo “Eurôpos” significa o que é largo e espaçoso. Como pessoa, “Eurôpé” quer significar aquela que tem grandes olhos – que permitem ver longe. A palavra tem afinidades evidentes com Eurídice. O rapto da formosa Europa por Zeus, transformado em touro, é a alusão mítica que deve ser referenciada quando falamos de Europa. Uma princesa da Ásia é trazida para a Grécia, ligando a civilização fenícia à cretense. As raízes mediterrânicas estão bem em evidência. Para designar um continente, encontramos pela primeira vez uma referência à Europa no Hino a Apolo de Homero (590 a.C.) opondo Delos a Delfos, as ilhas e o continente. Para Hesíodo, Europa é uma das três mil Oceaninas. Para Heródoto, a Europa é um dos três continentes conhecidos pelos gregos, com a Líbia e a Ásia. Horácio, nas Odes, fala da Europa mítica e dá-lhe um sentido moral. Hipócrates fala dos europeus e das condicionantes físicas e climáticas. Aristóteles opõe a liberdade cultivada pelos europeus e a tirania suportada pelos asiáticos, falando do meio justo praticado pelos gregos, tudo sob a influência do clima, na linha de Hipócrates. Longe do eurocentrismo, Isidoro de Sevilha representa o mundo como convergência de diversas influências (Ásia, Europa e África). Como afirma Jacques Le Goff, a grande novidade da Idade Média europeia é a afirmação do cristianismo: latino a ocidente e grego a oriente. Plena de diferenças e contradições, a Europa medieval vai abrir portas à inovação técnica, científica e artística, ao espírito de aventura e de iniciativa, às mudanças religiosas e de mentalidades e à expansão mediterrânica e depois atlântica. A ideia de “cristandade” vai afirmar-se, sobretudo até à colonização da América. A partir de então, a liberdade de consciência defendida pelos inconformistas que partiram para o Novo Continente vai desenvolver o pluralismo, passando a falar-se muito mais de Europa do que de cristandade. Enea Sílvio Piccolimini (futuro papa Pio II) defende uma Europa de valores culturais comuns, de uma república das letras, que chega ao oriente cristão. O fidalgo checo Georges Podiébrad, em 1462, fala, de modo pioneiro, na necessidade de se criar uma Confederação de nações que pudesse fazer renascer (e superá-la) a antiga Respublica Christiana. Camões liga a Europa ao momento único de dar “novos mundos ao mundo”: “Eis aqui quase cume da cabeça / de Europa toda, o Reino Lusitano, / onde a terra se acaba e o mar começa…”. E os movimentos de futuro começam a nascer: o Abade de Saint Pierre propõe (1713) a criação da paz perpétua, Leibniz considera-a plausível, mas Rousseau, sem pôr em causa a boa intenção de Saint Pierre, considera o projecto imediato como absurdo, por ausência de condições políticas. Montesquieu fala de uma “monarquia universal na Europa”. Voltaire refere a Europa moderna, para pôr em xeque a Europa antiga. Mas os românticos, tendo à cabeça Novalis, vão regressar à ideia europeia, como sinónimo de sentimento e de razão, envolvendo De Maistre, Saint Simon, Guizot, Mazzini e Victor Hugo. O nosso Almeida Garrett fala de “Portugal na Balança da Europa”. O romantismo da Primavera dos Povos (1848) gera um desejo de unidade e de paz, mas também a liberdade política e a independência de jovens nações. Se, por um lado, começaram a nascer os projectos pan-europeus, também emergiram os nacionalismos proteccionistas. As contradições do século XX têm a ver com isso mesmo, uma visão idílica deu lugar à tragédia, por ausência de um movimento cívico enraizado – tendo como objectivo uma Europa de paz e de democracia… 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 


MORREU ISABEL ALVES COSTA
 

 

Isabel Alves Costa (1946-2009), a primeira e última directora artística do Rivoli Teatro Municipal, no Porto, morreu na sua casa de férias, em Monção, vítima de doença súbita. Filha de Henrique Alves Costa, histórico director do Cineclube do Porto e figura determinante na divulgação do cinema em Portugal entre as décadas de 50 e 70, e irmã do arquitecto Alexandre Alves Costa, Isabel Alves Costa teve um papel fundamental na estruturação da vida cultural do Porto durante a década de 90 e foi uma das programadoras mais activas do Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, como responsável pela área das artes do palco.

O Governo francês atribuiu-lhe a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres em 2006 - foi estudar para Paris em 1963 e regressou em 1997 à Sorbonne para se doutorar em estudos teatrais. O Rivoli, que dirigiu desde a reabertura como teatro municipal, em 1993, até à entrega do equipamento a Filipe La Féria por iniciativa de Rui Rio, em 2007, foi a sua grande aventura pública e pessoal. Durante os anos em que esteve à frente do teatro, Isabel Alves Costa transformou-o na sala de espectáculos de referência da cidade, sobretudo nas áreas da dança e do novo circo.

O processo que terminou com a concessão do Rivoli a um privado (e que Alves Costa descreve minuciosamente em "Rivoli 1989-2006", o livro com que pôs um ponto final nesse capítulo) debilitou-a profundamente, mesmo a nível físico.

Foi virar essas páginas ali ao lado, como directora do Festival Internacional de Marionetas do Porto, que ela própria fundou em 1989 e que nos últimos anos se realizou mesmo em frente ao Rivoli, na Praça D. João I, e também para o Alto Minho, onde em 2005 assumiu o acompanhamento artístico da companhia de teatro Comédias do Minho, um projecto único no país pela sua relação de igual para igual com o território. 

A ex-vereadora da Cultura do PS, Manuela de Melo, que a chamou para dirigir o Rivoli e pivotar a reconstrução de uma política cultural para a cidade, sublinha ainda o modo como o seu projecto de programação para o espaço serviu de modelo para outros teatros municipais do país. "Fazia muito da profissão a sua própria vida", resume.

O Centro Nacional de Cultura homenageia a memória de Isabel Alves Costa.

(Adaptado do “Público”)
Imagem: NFACTOS/Fernando Veludo (Arquivo)
 

 


 

"Entre a Selva e a Corte – Novos Olhares sobre Vieira"
 

A VIDA DOS LIVROS
De 17 a 23 de Agosto de 2009

“Entre a Selva e a Corte – Novos Olhares sobre Vieira” (Esfera do Caos, 2009), coordenado por José Eduardo Franco é uma reunião de ensaios que procuram analisar a vida e a obra do Padre António Vieira sob várias perspectivas com o objectivo de permitir uma visão alargada não só do pensamento (bastante complexo) do orador sagrado, mas também da inserção da sua figura extraordinária na história portuguesa e europeia, com destaque para as posições audaciosas e precursoras que assumiu, em especial no tocante aos direitos humanos. Em complemento da vasta bibliografia produzida nos últimos anos sobre o Padre Vieira, temos um conjunto de textos, bastante abrangente, que permite ao leitor comum apreender o essencial dos resultados recentes das investigações sobre o prolífico autor da “História do Futuro”.

 

PERSONALIDADE MULTIFACETADA
Estamos perante dezasseis ensaios em que a figura do Padre António Vieira é tema, o que permite compreender melhor o nosso século XVII, a partir de uma personalidade fascinante, indiscutivelmente das mais ricas do seu tempo. Os textos são da autoria de Luís Machado de Abreu (“Moldura para um Retrato de Vieira”), Carlota Urbano (“O P.A.V. e a Companhia de Jesus”), Fernando Cristóvão (“A grandeza de um imperador”), Alcir Pécora (“O Bom Selvagem e o Boçal: Argumentos de V.), João Francisco Marques (“A crítica sócio-política na parénese quaresmal dos sermões dos pretendentes”), Leonel Ribeiro dos Santos (“Da Verdade e do Tempo: A.V. e a ‘Controvérsia dos Antigos e dos Modernos’”), Miguel Real (“A Arquitectónica do Quinto Império na carta ‘Esperanças de Portugal’ (1659)”, Pedro Calafate (“A Escolástica Peninsular no Pensamento Antropológico de A.V.”), José Eduardo Franco (“Uma Utopia Católica sob suspeita: Censura Romana a Clavis Prophetarum”), Luís Filipe Silvério Lima («“Ainda ressuscitados são cadáveres” – os Sermoens de V. enquanto fonte para o historiador»), Paulo Assunção (“O Pensamento Económico de A.V.: um mar de pensamentos na busca de soluções para Portugal”), Valmir Francisco Muraro (“As Cinco Pedras da funda de Davi: Sermões italianos do P.A.V.”), Helena de Castro (“A problemática dos Direitos Humanos na crítica de V. à Inquisição”), Patrícia Santos Shermann (“V. lido no Sudão. O P.A.V. e os jesuítas no imaginário missionário católico face ao colonialismo britânico em África”), Annabela Rita (“V. num sermão entre luz e sombra”) e Manuel J. Gandra (“P.A.V.: paralelo da sua vida e obra com o providencialismo, o milenarismo e o messianismo coetâneos”; além de um pósfacio de Paulo Mendes Pinto. Ao longo destes textos, podemos verificar que a vida do Padre Vieira e a sua inteligência pródiga permitem-nos compreender que o pensamento teológico e religioso do orador sagrado associa-se permanentemente à sua reflexão estratégica sobre o futuro de Portugal. Daí a ideia de “segundo povo eleito” aplicada aos portugueses e a tentativa de reconstituir um império universal que pudesse superar as fragilidades sentidas no século XVI e que tinham conduzido dos “fumos da Índia” à decadência. Como bem recorda Miguel Real, num texto muito interessante e exaustivo de análise à carta “Esperanças de Portugal” (1659): “o Quinto Império consiste no estado perfeito realizado ou consumado do reino de Cristo em todo o mundo; é o reino em que todos os Príncipes e nações e povos viverão em paz e segurança, cessarão todas as guerras, as comunidades serão boas observantes da lei divina, sendo Cristo adorado e obedecido por todos; pressupõe-se que a justiça seja universal, o bem estar pleno e todas as qualidades humanas negativas desaparecerão”. Vieira associa, assim, o discurso profético a um objectivo político, de que seriam artífices o Sumo Pontífice como imperador espiritual e o Rei de Portugal, D. João IV, o Desejado, como imperador temporal. E do encontro que do jesuíta, em Amesterdão, com Menasseh ben Israel resultará uma síntese judaico-cristã - a ideia de que a leitura profética que fizera da História de Portugal (em 1642) teria de ser unida à leitura profética judaica e, cruzadas as interpretações, deveriam formar no corpo da teoria do Quinto Império, sendo o misterioso ano de 1666 (MDCLXVI) alvo de intensas especulações cabalísticas.  

 

UMA IDEIA DE PROGRESSO ASCENDENTE
Como recorda José Eduardo Franco, a propósito da “Clavis Prophetarum” (onde a dimensão teológica é mais forte do que as preocupações com Portugal), devido à visão “de um progresso ascendente da história em direcção à cosmicização do cristianismo e da transfiguração dos tempos em Cristo pelo influxo da graça crística, chamou Margarida Vieira Mendes ao Padre António Vieira um Teilhard de Chardin avant-la-lettre”. Há, deste modo, uma curiosa articulação entre uma concepção do mundo e da humanidade, prenunciando o humanismo universalista, e o delineamento da missão de Portugal. Como afirmou Vieira em Roma no Sermão de Santo António (dos anos setenta), a condição ontológica de Portugal determina um papel na Europa e no mundo, que não pode ater-se à missão imperial secular. Daí dever “ter ofício de luz (lux mundi) e ser tecelão da unidade perdida no seu continente, na velha cristandade e até no mundo aberto aos olhos europeus. Mundo esse então desordenado em termos de relações entre povos, pois em permanente conflito e disputa” (p. 12). As diligências junto da comunidade sefardita de Amesterdão são muito significativas. Do que se tratava era de tentar fixar riqueza e recuperar o capital humano e os meios perdidos com “o mito obsessivo da limpeza de sangue e da religião” e de ousar propor reformas no Santo Ofício em nome de uma perspectiva mais humana e até de uma maior eficiência económica. Aliás, Paulo de Assunção na sua interessante análise do pensamento económico de Vieira, em que contrapõe os pensamentos de Bodin e Althusius, referindo ainda a obra de António de Freitas Africano, “Primores e Regalias do Nosso Rei” (1641), afirma: “o elemento judeu era um aliado para Portugal e não um inimigo, pois ele é que permitiria que o reino retomasse o passado glorioso. Vieira é defensor de uma política de equilíbrio e neste sentido demonstra ser um verdadeiro jesuíta. (…) Na lógica do seu discurso o que define a acção era a busca de equilíbrio”. No fim de contas, se os mercadores judeus eram súbditos de outros príncipes por que não também relativamente ao monarca português. Nota-se, assim, um pensamento integrado por parte de Vieira, que o insere no grupo dos espíritos mais lúcidos do seu tempo, preocupados com a independência estratégica do reino.

 

CULTOR DA MATURIDADE DA LÍNGUA
A leitura dos diferentes ensaios vai-nos revelando novas e inesperadas facetas do orador sagrado, do teólogo, do pensador, do diplomata e do visionário. É fascinante ver como os mais diversos temas são abordados, sempre com rigor e com a preocupação de cultivar um estilo persuasivo e mobilizador. Sabemos, porém, que as vicissitudes políticas não permitiram que obtivesse pleno sucesso. No entanto o seu pensamento e a sua palavra projectam-se ainda para os dias de hoje com especial força. Como afirma Fernando Cristóvão: “com os seus escritos, a língua portuguesa tornou-se mais dúctil e plástica, e a nossa cultura, sobretudo na sua expressão literária, ganhou dimensões de universalidade. E tão cuidadoso foi, que no fim da vida, retocou e aprimorou os seus sermões, consciente também da sua missão de escritor”. Segundo a inspiração barroca, Vieira procurou, porém libertar-se dos excessos maneiristas, antes procurando um estilo “fácil e natural” que pudesse fixar a atenção dos ouvintes, na sua diversidade. A eloquência ligava-se ao uso impecável das figuras de estilo (silogismos, paradoxos, hipérboles, apóstrofes) segundo uma preocupação de ensinar e de deleitar. E basta dar os exemplos do “Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda” (1640) e do “Sermão de Santo António aos Peixes” (1654) para percebermos como Vieira soube ligar com única mestria esses objectivos.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CULTURA COMO VIDA

À memória de Raul Solnado.

 

Há algumas semanas, quando tive a alegria de saber que a Cidade Velha na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, tinha sido integrada na lista do património mundial da UNESCO, lembrei-me imediatamente de que, se estivesse connosco, o António Alçada Baptista teria sentido um enorme júbilo, não tanto pela decisão formal, mas pela homenagem a um povo extraordinário e pelo reconhecimento de um símbolo fundamental da identidade cabo-verdiana. A lista da UNESCO é longa, mas a Ribeira Grande é irrepetível, e ali ainda estão vivos os ecos dos sermões do Padre Vieira, mas também sentimos a memória de livres e escravos e a ligação fecunda entre as várias culturas do Atlântico. E falar de Cabo Verde é referir-nos a uma cultura de afectos (e a palavra não pode banalizar-se, apela à economia das trocas e dos dons), à “cultura da morabeza” (palavra doce e misteriosa que significa apenas “amabilidade”), encruzilhada riquíssima de uma lembrança histórica comum feita de encontros e desencontros, mas sobretudo de disponibilidade, de emancipação, da capacidade de encontrar a dignidade das pessoas. E recordamo-nos do “Chiquinho” de Baltazar Lopes da Silva, protagonista maior do movimento “Claridade”, símbolo das diversas dúvidas e esperanças que se desenham nas idiossincrasias das vidas e das personagens do romance… E quem cita o grupo dos “claridosos” (e a sua vontade de autonomia e de diferenciação) tem de chegar a uma longa e rica história de emancipação, que chega à moderna literatura de Germano de Almeida, de Corsino Fortes ou de Arménio Vieira.

 

Mas, se é verdade que poderia continuar a falar das letras cabo-verdianas, partindo para o luso-tropicalismo moderno da Bahia ou de Pernambuco, o certo é que comecei a escrever a pensar nas “peregrinações interiores” do António Alçada e no facto delas conduzirem invariavelmente às amizades, aos longos passeios, ás conversas intermináveis. Éramos chamados a reviver a epopeia de Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado.

 

A vida tem sempre muito que se lhe diga, e é preciso dispor-nos a vivê-la, com sentido de humanidade. E penso no Raul Solnado e no culto da amizade. “Façam favor de ser felizes!”. Esperávamos tudo dele. E estava sempre disponível para nos dar o melhor de si, da sua sabedoria, do seu gosto pela vida. Era um conversador incansável. Gostava do convívio e de contar histórias. Era um deleite a sua companhia. Disse-se por estes dias muito (e muito justamente) sobre o extraordinário humorista e actor. Foi muito mais do que isso. Recordo a sua inteligência e o seu elevadíssimo sentido da responsabilidade e do civismo. Não nos deixavam indiferentes os seus retratos humorísticos sobre os diversos tipos inesquecíveis, que poderíamos encontrar a cada passo no nosso dia-a-dia (desde a celebérrima Guerra de 1908 ao Zip-Zip, até muitas e muitas intervenções geniais no teatro e na via cívica, como “O Valente Soldado Schweick”, de Hasek, no Maria Matos). A ironia e o humor são sempre o melhor antídoto contra a desesperança e o fatalismo. E nunca esqueço a história, que me contou, sobre o modo como salvou perante a censura o seu número sobre a “ida à guerra” de Miguel Gila. Lembrou-se de fazer uma leitura muito rápida, inexpressiva, pouco perceptível. Cumpriu-o escrupulosamente e isso valeu-lhe um comentário compungido do coronel censor de serviço, prognosticando um tremendo fiasco para aquele número (e era pena para um actor que tanto prometia). Imagine-se o que não terá pensado o coronel depois do sucesso do Raul perante centenas de plateias entusiasmadas.

 

Raul Solnado foi, com o seu humor inteligente e moderno, além do mais, um benemérito da língua portuguesa e das culturas da língua portuguesa. Mais do que um actor popular (que sempre soube ser) foi um homem de cultura, no melhor sentido da palavra.

 

Que mais dizer?... Raul, António, Portugal, Cabo Verde, Bahia – que saudades do futuro.

 

Até à vista!

 

Guilherme d’Oliveira Martins

 

PRINCESAS DE GELO, PRINCESAS DE FOGO

 
por João Benárd da Costa

 

1 - Hoje, para mim que escrevo ontem, ontem para o leitor que me lê hoje, ocorre uma efeméride em que os chamados acasos da vida, das leituras e das audições me fizeram reparar e de que certamente raríssima gente se lembrou: a 12 de Fevereiro de 1954 - há cinquenta anos - estreou-se em S. Carlos a "Elektra" de Richard Strauss, sobre libreto de Hugo von Hofmannsthal. Estreada em Dresden a 25 de Janeiro de 1909, a ópera demorou quase outro meio século a chegar a Portugal. Aliás, é curioso, e reflector, estudar o progressivo desfasamento de passo entre o nosso teatro de ópera (Real, desde a sua inauguração a 29 de Abril de 1793, meses depois de a cabeça de Luís XVI ter rolado no cadafalso, Nacional desde a proclamação da República) e as principais cenas líricas do mundo. Até 1870, mais coisa menos coisa, o que se via e ouvia em S. Carlos era o que se via e ouvia na Europa, salvaguardando as versões nacionalistas, ou seja, o lugar dado por cada país aos compositores locais. Dos Cimarosas e Paisiellos iniciais, ainda no século XVIII, seguimos para os Bellinis, os Donizettis ou os Rossinis da primeira metade do século XIX, um ano ou dois após as respectivas estreias mundiais. Pense-se, por exemplo, no caso de Donizetti, de quem, até ao "revival" dos anos 70 do século XX, só ficaram no reportório quatro ou cinco óperas (a "Lucia", o "Elisir", a "Favorita", o "Dom Pasquale", "La Fille du Régiment"). Das óperas compostas pelo homem de Bérgamo, entre 1818 e 1843, as 35 mais significativas estrearam-se, todas, em Lisboa no mesmo período, voltando, ano após ano, com pendular regularidade. Se nos virarmos para Verdi, das 26 óperas compostas entre 1842 e 1893 (ano da estreia do "Falstaff"), 23 foram representadas em Lisboa, sendo as excepções "Il Corsaro", "La Bataglia di Legnano" e "Stiffelio". Esta última, a maior lacuna, vai ser cantada este ano, graças a Paolo Pinamonte, para mim, indubitavelmente, o que de melhor aconteceu à cultura em Portugal nestes sinistros anos iniciais do novo século. O "Nabucco", primeira ópera de Verdi ouvida em Lisboa, estreou-se em S. Carlos a 29 de Outubro de 1843, um ano e meio depois da sua "prima", no Scala, a 9 de Março de 1842. Na temporada seguinte, já surgiram "I Lombardi" e "Ernani", praticamente "em cima" das respectivas estreias mundiais. E assim sucessivamente. Mesma constância, depois, com a obra de Puccini, à excepção das últimas óperas, posteriores a 1910, no ano negro em que a República quis dar cabo de um teatro que tresandava a Braganças e a sangue azul. Mas o costumeiro "despassamento" nacional começou muito antes, quando a "ópera alemã" se impôs contra a ópera italiana. A "revolução" de Wagner, nesses mesmos anos 40 em que a Lisboa de S. Carlos trauteava o coro do "Nabucco", demorou décadas a chegar e só chegou, sintomaticamente, com o "Lohengrin". Estreado, por iniciativa de Liszt (esse mesmo Liszt que S. Carlos aplaudiu em delírio em 1845, no ano II de Verdi) em 1850, o "Lohengrin" só chegou a S. Carlos em 1883, no ano da morte de Wagner. "O Novo Fantasma" (1841) e o "Tannhäuser" (1845) só aqui arribaram em 1893 (já estávamos no fatídico meio século de atraso). Para assistir à estreia do "Tristão" (1865) avançou D. Carlos o seu regresso de Vila Viçosa, no dia 1 de Fevereiro de 1908. Não houve ópera (só estreou a 10) houve regicídio. Quanto ao "Parsifal" (1882), teve de se esperar por 1921 para o ouvir em Lisboa, em récitas acompanhados por manifestações de extrema-direita, já esta havia julgado aprender que Wagner era o precursor das "novas ordens". Mas o mesmo sucedeu com a ópera russa e com Debussy: estreia do "Boris" em 1923: do "Pelléas" em 1925. Quanto a Strauss - para voltar ao princípio - só a "Salomé" teve "première" relativamente civilizada (em 1909, quatro anos depois da estreia mundial), mas desapareceu depois durante 44 anos. "O Cavaleiro da Rosa" (1911) apareceu em 1924. De resto, mais nada, absolutamente mais nada, até aos anos 50 do século sepulto.

 

2 - Para o que me havia de dar? Pois é, ainda mal me conhecem. O doce fel das estatísticas, o acre prazer das intermináveis listas, tentaram-me ainda antes dos bancos da escola, desde os reis e príncipes de Portugal até às filmografias iranianas e filipinas. E tive sorte. Acordei para a ópera em anos em que às tradicionais "temporadas italianas" se acrescentaram (a partir de 1952) "temporadas alemãs". E eu vi, ainda "teen ager", as primeiras apresentações em Portugal da "Flauta" e do "Rapto" de Mozart (em 1953), as segundas da "Salomé" e do "Fidelio" (mesmo ano), a segunda do "Cavaleiro" (1954), a segunda de "Le Nozze di Fígaro" de Mozart (incrivelmente cantada, pela primeira vez em Portugal, em Maio de 1945) e a tal estreia da "Elektra" que me levou a isto tudo. Ainda nos mesmos anos 50, as estreias da "Iphigènie en Tauride" de Gluck, da "Arabella" de Strauss, da "Euryanthe" de Weber, da "Alceste" de Gluck, do "Kovanchtchina" de Mussorgsky, do "Così" de Mozart, do "Wozzeck" de Alban Berg, da "Dama de Espadas" de Tchaikovsky, na mesma década em que a Callas e a Stich-Randall, o Gobbi e o Boris Christoph cantaram pela primeira vez em Portugal. Ainda na mesma década em que a "Turandot" (cantada no Coliseu em 1929) teve a segunda apresentação em Portugal, com Inge Borkh na protagonista.

 

3 - "Wie schön ist die Prinzessin Salome heute nacht!" ("Como está bela, hoje à noite, a Princesa Salomé") Se eu quisesse resumir tudo o que a ópera é para mim, tudo o que para mim é ópera, numa só frase, escolheria muito provavelmente, ao som da música de Strauss, a frase do pobre Narrabot com que abre a "Salomé", na tradução alemã de Hedwig Lachmann do texto original da peça de Oscar Wilde, escrito em francês. As razões são muito minhas e têm que ver com muitas descobertas simultâneas dessa noite, então toda mágica, de 21 de Fevereiro de 1953. Salomé era Inge Borkh, que apareceu em Lisboa, pela primeira vez, na temporada anterior, a cantar a Senta do "Navio". Mas, em 1952, a minha vida dessas ainda não tinha começado. Biblicamente, em todos os sentidos (não é a Salomé uma figura bíblica?), conheci-a pois naquela noite em que estava mais bela e luarenta do que nunca. Pedro de Freitas Branco dirigiu. Se a memória me não falha, Margaret Kenney, que fez de Herodíades na "Salomé", cantou antes as "Quatro Últimas Canções", também em primeira audição em Portugal. A música de Strauss é como uma doença. Ou se é imune, ou se pega. Eu sou dos últimos e contagiado fiquei para toda a vida.
Duas vezes cantou a "Salomé" em São Carlos (53 e 56) mas uma só cantou a "Elektra", nessa récita inaugural de 54, igualmente regida por Pedro de Freitas Branco. Ouvi-a em várias outras óperas, mas só em 59, quando fez terceira e bem diversa princesa (a Turandot de Puccini), a magia foi igual. Para mim, ela é tanto a "principessa di morte, principessa di gelo" da ópera em que a mão de Puccini caiu antes do fim que não conseguiu resolver (o que eu me lembrei dela, ouvindo, outro dia, a emocionante voz de Alessandra Marc na "Turandot" desta temporada!), como a princesa de fogo da "Elektra" ou a princesa de sangue da "Salomé". Graças a Deus, dois discos divinos ma trazem sempre: a "Salomé", dirigida por Mitropoulos, no Met, em 58 com ela e com Vinay (Ramon Vinay no "Otello" de Verdi é outra memória imperecível dos anos 50) e a "Turandot", com Renata Tebaldi e Mario del Monaco, dirigida por Alberto Erede. E, agora que nisto atento, penso que nessas três operas estão eventualmente as respostas aos três enigmas e à morte única da cena mais célebre da "Turandot". A esperança, esse "fantasma" que "sparisse coll'aurora per rinascere nel cuore" é, apesar de tudo, a "principessa altera" de Puccini. O sangue que "avvampa, avvampa" é a "Salomé", "opera d'avvampare" e também ópera do langor ("avvampa e insieme langue"). O nome, "gelo che ti dá foco / e del tuo foco / piu gelo prende" é a "Elektra". Não é a "Elektra", desde o assombroso acorde inicial (o mais fulminante início de qualquer ópera) a ópera do nome, o nome de Agamémnon, protagonista sempre presente, protagonista sempre ausente, já que vingar a sua morte é a tragédia de Elektra?
Dessa ópera, tão próxima e tão distante de "Salomé", em que a dança tem um papel nos antípodas do que lhe cabe na outra, e em que Hofmannstahl, num dos seus mais belos textos, longinquamente se baseou em Sófocles, "o único dos trágicos gregos que pintou os protagonistas como doentes mentais", ficou-me para sempre, na voz de Borkh, o "allein! Weh ganz allein" ("Sozinha! Ai de mim, tão toda sozinha!") com que se inicia o primeiro dos dois grandes solos da protagonista. E sozinha ela está sempre, mesmo quando tenta convencer a irmã à cumplicidade a que esta se recusa, mesmo quando reconhece Orestes, aquele que os cães conheceram e a irmã não conheceu. Ela, que dissera antes que, mais do que do próprio sangue de Agamémnon e de Orestes, "era" o sangue de Agamémnon e de Orestes ("ich bin dies Blut! ich bin / das hündisch vergossene Blut des Königs Agamemnon" e se não sabem alemão, eu também não sei) não reconheceu o sangue de qualquer deles e fica "off" quando é derramado o sangue da mãe e do padrasto, à porta, sempre, nesse palácio sem portas. Ela que dá à mãe o remédio para os sonhos ("Quanto mais velhos, mais sonhamos") é a que fica sempre acordada na vigília de um nome.
"Allein! Ganz allein!" está finalmente na dança irremediável do final: "Quem pode viver sem amor?" pergunta-lhe a irmã. E Elektra responde: "Ah, o amor mata! Mas ninguém pode morrer sem ter conhecido o amor." E no fim, é o fogo, o sangue e o gelo. Princesa de todos, princesa de nenhum.

 

(13 Fevereiro 2004 in Público)

"PORTUGAL E O MUNDO - O FUTURO DO PASSADO"

 

A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de Agosto de 2009

Regressado do Festival de Asilah (Arzila), este ano dedicado a Portugal, lembro o precioso terceiro volume dos Guias “Portugal e o Mundo – O Futuro do Passado” sobre Marrocos, com texto de José Luís de Matos e de Rui Rasquilho (CNC, 2003), sobre o qual Helena Vaz da Silva disse: “Marrocos, tão perto e tão longe. Apesar de perto do nosso sul, tanto em distância como, em parte, no clima e no território, os portugueses sempre partiram para Marrocos como quem parte para um mundo distante”.
Recordando essa relação, a propósito da lusofonia, publico hoje as palavras que proferi em Asilah, no dia 4, em nome do Centro Nacional de Cultura.





CULTURA COMO MEMÓRIA E CRIAÇÃO
«Quando falamos de cultura devemos compreendê-la como um lugar de criação, de aprendizagem e de memória. É a nossa relação criadora com a natureza que está em causa. Quando na UNESCO ou no Conselho da Europa se fala hoje de património cultural como herança e como encruzilhada de referências materiais e imateriais, falamos de uma cultura viva. A obra de arte pode ser usada como metáfora, pois é um exemplo de experiência e de futuro – mas é preciso compreender que o fenómeno cultural envolve sempre as ideias de herança ou de tradição e de inovação ou de ruptura. Asilah é um exemplo. E devo homenagear o Presidente Mohamed Benaissa pela determinação e pela iniciativa no sentido de tornar esta cidade uma referência cultural. E com que emoção visitei nestes dias os ateliês de criação artística, onde se sentia o pulsar do afecto e da força criadora. Em Asilah há uma vida cultural onde o património não se pode situar nem compreender sem uma ligação actual à contemporaneidade. A história e a actualidade cruzam-se, naturalmente. E chegamos ao tema da identidade. De facto, é fundamental sabermos o que nos define e o que nos distingue. Mas o tema da identidade é sempre controverso. Há sempre o risco de dar demasiado valor ao que é próprio, em detrimento das diferenças respeitantes aos outros. É preciso, por isso, repensar a identidade como distinção e necessidade de unidade. Distinguir para unir».

 

HUMANIDADE NAÇÃO DE VÁRIAS CULTURAS
«Afinal, temos de entender que a humanidade é uma nação de várias culturas. Por isso o diálogo entre culturas e civilizações deve ser um caminho de descoberta de valores comuns, que se constitua num factor de enriquecimento mútuo e não de harmonização. A nossa relação com a História deve ser uma relação não apenas com o passado mas com a memória, com a compreensão e com a esperança. O importante é obtermos resultados do diálogo presente, não visto como um dialogo formal, mas como um meio que permita uma relação de influências e de enriquecimento. A nossa procura é a da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da entre-ajuda. Daí a importância do conceito de identidade aberta, que exige a compreensão de uma memória sábia. Nesse sentido, quando falamos de lusofonia e de África, devemos deixar claras algumas ideias muito simples, mas fundamentais. As culturas da língua portuguesa são plurais e enriquecem-se mutuamente. Não há uma lusofonia, mas lusofonias. Germano Almeida, Arménio Vieira, Pepetela, Mia Couto, Eduardo Lourenço ou António Cândido indicam-nos caminhos diversos de um sentir comum. É preciso compreender que a cultura, a ciência, a experiência e a aprendizagem são factores essenciais do desenvolvimento moderno. Portugal está na encruzilhada do Atlântico e do Mediterrâneo – cais de partida e de chegada, na expressão de Eduardo Lourenço. A História deve, assim, aproximar-nos. E o respeito e a tolerância fazem-se com o desenvolvimento da capacidade de visão do futuro».

 

UMA IDEIA NOVA DE DESCOBERTA
«Há uma ideia nova de descoberta que temos de prosseguir e desenvolver, como respeito e partilha, como hospitalidade e dom. A cultura é um factor de riqueza, de mobilidade, de conhecimento, de informação. Não é possível falar de desenvolvimento humano, no sentido moderno, sem uma forte valorização do fenómeno cultural. E é a cultura de paz, de que nos falou Federico Mayor na UNESCO que está em causa. Deste modo, a cultura, a partilha de responsabilidades e a justiça são os desafios presentes e necessários da política, da economia e da sociedade. Num mundo que vive a globalização como fenómeno natural e inexorável, é fundamental dizer que esse movimento de mundialização não pode tornar-se sinónimo de uniformização. A sociedade da informação permite-nos saber mais, mas o que falta é um saber e uma informação ao serviço da justiça, da dignidade e do respeito. A indiferença mata a capacidade de compreender. O fanatismo e a intolerância significam a própria incapacidade de compreender. A tentação harmonizadora e uma “cultura de massas” tendem a confundir cosmopolitismo e indiferença. E no entanto precisamos de distinguir a ideia fecunda de abertura da tentação de vazio que a indiferença induz e favorece. Assim, o diálogo entre culturas deve basear-se na compreensão do lugar do outro. Sem nos colocarmos não lugar do outro não poderemos nem compreender nem respeitar. O diálogo não é, deste modo, uma adaptação, é uma permanente descoberta do outro e dos outros, já que o outro é a outra metade de nós mesmos, e nós somos o outro dos outros».

EM NOME DA DIGNIDADE CULTURAL
«A dignidade cultural obriga ao reconhecimento. Reconhecer é descobrir, revisitar, nascer com (con-naître, segundo a expressão clássica de Paul Claudel), respeitar, assumir as diferenças, fazer com que a crítica seja um elemento de emancipação. Sem reconhecimento não há a definição de um lugar para o outro. A diversidade cultural não pode referir-se a lugares que ninguém sinta como verdadeiramente seus. E o certo é que muitas vezes a indiferenciação conduz à criação de “lugares de ninguém” (“no man’s land”) que procuram apagar artificialmente as identidades e as diferenças, com resultados negativos a prazo, uma vez que as identidades e as convicções silenciadas dão lugar a manifestações excessivas e até violentas, geradas na subalternização. O mesmo se diga da memória, uma vez que, como tem dito Tzvetan Todorov, o excesso e a falta dela conduzem ou à violência ou à incompreensão. Daí a referência à memória sábia como natural apanágio da identidade aberta. A memória sábia é equilibrada, recusa a amnésia, cultiva a lembrança, mas recusa o ódio e a vingança. A memória é o tecido vivo de que se forma uma sociedade livre e responsável, onde a capacidade criadora se torna o elemento distintivo da qualidade, da maturidade e da sabedoria. Língua de várias culturas, cultura feita de diferenças e complementaridades, o português assume-se como lugar de procura da dignidade universal da pessoa humana. Daí a importância da procura e da descoberta do outro e do desenvolvimento de uma cultura humanista universalista, encarada como lugar aberto de respeito e de dignidade. Património, herança e memória – pedras mortas dos monumentos e das referências históricas, pedras vivas das tradições, dos costumes, do património imaterial e criação contemporânea – eis o novo entendimento sobre o património cultural, que bem sentimos no “espírito de Asilah” e na força do diálogo da lusofonia. “Os portugueses sempre partiram para Marrocos como quem parte para um mundo distante” Mas agora, numa manifestação de afecto multissecular, sentimo-nos bem em casa».

NOTA. – A título de curiosidade cito Duarte Pacheco Pereira: “E no recife de Arzila se não deve entrar sem piloto de terra, ou pelos sinais que daquela entrada são postos, dois mastros em terra que estão dentro do canal por onde os navios devem entrar (…) E dentro do arrecife podem pousar navios pequenos até trinta e cinco tonéis mas amarrem-se bem do vento noroeste que é ali travessão e mete dentro grande ressaca que lançam os navios a perder”. O recife já lá não está. Mas é o ambiente antigo que se sente na cidade muralhada, dominada pela torre de menagem (recém-reconstruída), onde a lenda diz que pernoitou D. Sebastião na noite funesta de 3 de Agosto de 1578.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

"O MUNDO SEM REGRAS", de AMIN MAALOUF

A VIDA DOS LIVROS
De 3 a 9 de Agosto de 2009

 

"O Mundo sem Regras” (Difel, 2009) de Amin Maalouf é uma obra que resulta de uma longa e cuidada reflexão do escritor de origem libanesa que esteve entre nós há pouco para apresentar o seu livro e o seu pensamento. O tema das identidades há muito preocupa Maalouf, tendo escrito “Identidades Assassinas” (1998), que constituiu um alerta premonitório, a que infelizmente muita gente não deu ouvidos. A indiferença, o isolamento, a auto-suficiência, os egoísmos nacionais e tribais, a ilusão uniformizadora, o vazio de valores – tudo isso faz parte do actual caldo de cultura, que caracteriza a sociedade contemporânea e que serviu de ponto de partida para a análise serena e lúcida, mas também algo desencantada deste autor.
 

 

QUE AUSÊNCIA DE REGRAS?
O mundo do século XXI apresenta sinais de desregramento. Mas de que desregramento nos fala Maalouf? De um desregramento intelectual, que corresponde ao excesso de afirmações identitárias, o que dificulta uma coexistência harmoniosa entre pessoas e comunidades. Por outro lado, o desregramento económico e financeiro leva o planeta até às perturbações e conflitos que actualmente se vivem e que terão consequências imprevisíveis. Mas ainda há o desregramento climático e ambiental, que decorre de uma irresponsabilidade generalizada. No entanto, a pergunta fundamental de Amin Maalouf é a de saber se a humanidade atingiu o limiar da incompetência moral. Como se chegou a esta situação e como poderemos sair dela? Não se trata, porém, de algo que se possa simplificar num diagnóstico ou numa análise mais ou menos catastrofista, o que importa é entender que não basta falar de choque civilizações ou de guerra. Assistimos a um certo esgotamento das civilizações – e Maalouf não ilude o tema e aponta o seu dedo acusador às civilizações ocidental e do mundo árabe. Se no ocidente temos a perda progressiva de fidelidade a valores fundacionais, no mundo árabe deparamo-nos com um impasse histórico. Há responsabilidades generalizadas e partilhadas – e nada pior do que tentar iludi-las, julgando que o mal está sempre na casa do vizinho. Esse raciocínio é erróneo e enganoso. O que importa é perceber que as diferenças culturais e sociais e o seu reconhecimento exigem sempre diálogo, troca, respeito e capacidade criadora. A análise de Maalouf é, sem dúvida, perturbadora, porque realista, mas apresenta pistas e saídas que merecem especial cuidado e atenção. Daí dar-nos sinais de esperança e de saída, depois de fazer uma crítica severa à sociedade e às mentalidades que permitiram chegarmos onde chegámos. Há motivos para preocupações e razões de alerta. “Somos todos uma nação e não podemos resolver problemas se não nos virmos assim: uma nação de muitas culturas. Quando começarmos a pensar dessa forma entramos no que chamo o verdadeiro princípio da história” (Público, 10.7.09).

 

QUE DIÁLOGO ENTRE CULTURAS?
Hans Küng há muito que vem dizendo que não há diálogo entre culturas se não houver capacidade para conhecer e para pôr em contacto as diferentes religiões. Maalouf, numa perspectiva complementar, diz-nos que «a influência dos povos sobre as religiões é maior do que a influência das religiões sobre os povos». Temos, por isso, de entender na sua complexidade os fenómenos sociais, assumindo que há uma dimensão universal da dignidade humana que deve ser mais forte do que todos os particularismos. E se temos de compreender que a sociedade humana deve encontrar o equilíbrio entre o universalismo e as diferenças, não podemos deixar de ouvir o nosso autor proclamar que “o Ocidente precisa de sair do excesso de confiança em si mesmo, enquanto o mundo árabe precisa de sair do poço histórico em que caiu”. Afinal, o desregramento tem a ver com as ilusões sobre as imagens que cada um faz de si mesmo, deixando na penumbra o lugar do outro, como a metade que nos falta e que nos completa. “As civilizações que mais proclamam a sua diferença em relação às outras são as que mais se sentem ameaçadas”. E é muito natural que assim seja, uma vez que o cosmopolitismo e o universalismo não podem afirmar-se se não houver uma permanente integração do que é próprio e irrepetível. Maalouf afirmou, por isso, que “o problema não está nos textos sagrados mas nas interpretações que a partir deles são feitas. Na Bíblia, como no Corão, por cada frase que apela à tolerância há uma outra que incita ao uso da espada”. São muitas vezes as interpretações literais e a falta de sentido crítico que levam ao absolutismo, que, por sua vez, no seu excesso, induz o relativismo. Amin Maalouf nasceu e vive entre dois mundos, entre duas civilizações. A sua obra parte dessa experiência. Como nos diz, “estou entre dois mundos que não se compreendem e nem sequer são capazes de se ouvir um ao outro. Criar pontes entre estes dois mundos é uma tarefa de Sísifo”. No entanto, essa tarefa constitui um desafio urgente e necessário, não para minimizar as diferenças culturais, mas para as integrar numa dimensão de respeito, de complementaridade e de criação de pontes duráveis, que temos de estar sempre disponíveis para recomeçar e para reconstruir. Daí que a memória deva ser compreendida como sinal de sabedoria, e não como factor de intolerância ou de vingança. Os preconceitos antigos e ancestrais devem dar lugar à hospitalidade e aos lugares de encontro. Poderemos esquecer o que Samuel Huntington lembrou – “o ocidente dominou o mundo não pelo conhecimento, mas pela superioridade militar?”. E se “é pela cultura, e sobretudo pela literatura, que os povos se revelam, com todos os seus medos e frustrações”, temos de entender que também na cultura poderemos encontrar caminhos de emancipação, de valorização da humanidade plural e de compreensão dos outros. Daí os sinais de esperança que Amin Maalouf apresenta. A crise pode levar-nos a procurar uma visão adulta das nossas crenças, das nossas diferenças e de um destino comum do planeta. Os desafios culturais, científicos, ambientais constituem oportunidades a que não poderemos deixar de responder.

 

UM MUNDO EM BUSCA DA DIGNIDADE HUMANA.
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No fundo, percebemos, ao ler esta obra, que a globalização não pode ceder lugar à uniformização. O mundo está mais pequeno e mais próximo formalmente. A sociedade de informação permite-nos saber mais, mas falta a capacidade de tornar esse saber e essa informação factores de dignidade e de respeito. A indiferença relativamente às diferenças culturais mata a capacidade de compreender. A tentação harmonizadora e a cultura de massas fazem confundir cosmopolitismo e indiferença. No entanto, o cosmopolitismo obriga a partir da dimensão universal pelo ser irrepetível que é a pessoa humana. O diálogo entre culturas tem, por isso, de basear-se no entendimento do lugar do outro. Não se trata de falar de um diálogo formal e distante, mas de tornar a diversidade cultural um factor de enriquecimento mútuo. Longe de descaracterizar as identidades (ou de apenas considerar a capacidade de adaptação) do que se trata é de partir de identidades abertas e disponíveis para o reconhecimento da liberdade igual, da igualdade livre e da responsabilidade. Deve haver insistência no conhecimento e respeito de outras culturas e línguas. A dignidade cultural obriga ao reconhecimento. A diversidade cultural não pode levar, assim, à criação de um lugar onde ninguém se encontre, mas à procura de uma encruzilhada onde memórias e convicções se completem e respeitem. A tentação de iludir as diferenças leva ao empobrecimento pessoal e cívico. Uma sociedade amnésica tende a perder-se. A memória é o tecido vivo de uma sociedade livre e responsável, na qual a capacidade criadora se torna o factor distintivo da qualidade, da maturidade e da sabedoria. Para haver compreensão mútua tem de haver conhecimento e capacidade de todos nos colocarmos no lugar do outro, como cidadãos activos e responsáveis. Por isso, o vazio cultural e religioso (bem como o excesso identitário, porque os extremos se tocam) leva à incompreensão das raízes e da razão de ser das coisas. Compreensão, respeito, conhecimento, disponibilidade, compromisso e cuidado são, assim, atitudes exigidas para uma sociedade que faça da cultura (património, herança, memória e criação) um factor de emancipação e de desenvolvimento, de justiça e de coesão. Chegamos a um ponto – diz Maalouf - em que morremos juntos ou nos salvamos juntos. O século XXI será da cultura ou não será!

 

Guilherme d'Oliveira Martins