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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

 
 

A VIDA DOS LIVROS
De 31 de Agosto  a 7 de Setembro de 2009

Leszec Kolakowski (1927-2009) é um dos autores do século XX cuja obra crítica se confunde com os acontecimentos que viveu e em que participou. Ao escrever “Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution” (Oxford University Press, 1978; vol. 1, The Founders, vol. 2, The Golden Age; vol. 3, The Breakdown) procedeu a uma análise brilhante e serena que nos permite compreender como a teoria marxista nasceu e se desenvolveu, até ao colapso, que já se anunciava em 1978, dez anos antes da queda do muro de Berlim (no mesmo ano em que o Cardeal Karol Wojtila foi eleito Papa, com os efeitos conhecidos). Para o filósofo havia contradições internas e pressupostos insanáveis na teoria formulada por Karl Marx que foram acentuadas no modo como foram pensadas e postas em prática, em especial a partir da Revolução Russa de 1917. Nascido na Polónia, entusiasmado num primeiro momento por Marx, cedo pôde perceber que a liberdade crítica entrava em choque com a ideia de construir um homem novo. Por isso, teve de sair do seu País e foi acolhido na Universidade de Oxford, onde exerceu o seu magistério.

UMA VIDA DE ESTUDO
Filho de um economista e ensaísta, morto pela Gestapo no início da guerra, nascido em Radom (Polónia), Kolakowski teve uma formação perturbada pela guerra, o que o obrigou a uma formação doméstica e à frequência de escolas clandestinas. Depois da Guerra estudou Filosofia na Universidade de Lodz, tendo-se doutorado em 1953 pela Universidade de Varsóvia com uma tese sobre Espinosa. De 1959 a 1968 foi Professor de Filosofia e História na Universidade de Varsóvia. Foi membro do Partido Unificado dos Trabalhadores Polacos de 1947 a 1966, sendo considerado desde cedo uma boa promessa. Visitou a União Soviética e esse contacto com o estalinismo determinou uma visão crescentemente crítica da sua parte sobre o curso dos acontecimentos, tornando-se um marxista heterodoxo, preocupado com uma leitura humanista de Karl Marx. Esse afastamento determinaria a sua expulsão do Partido. São de 1956 as suas reflexões críticas sobre o determinismo marxista (publicadas em Nowa Kultura), onde está já implícita a ideia de que o fenómeno totalitário do estalinismo não constituía uma aberração, antes decorrendo da lógica final do marxismo, do determinismo e da ideia de uma sociedade terminal supostamente perfeita. Como dirá mais tarde: “as classes médias, em vez de se afundarem ou desaparecerem como proclamava a profecia marxista, cresceram mais e mais; o mercado, em vez de um obstáculo ao progresso tecnológico, revelou-se o seu mais poderoso estímulo; a pauperização relativa ou absoluta da classe trabalhadora também não aconteceu; a taxa decrescente de lucro, que causaria o colapso do capitalismo, foi outra esperança vã; a revolução proletária, a revolução resultante do conflito entre os trabalhadores da indústria e os capitalistas, nunca aconteceu”. Segundo uma sua expressão que se tornou consagrada: foi a “grande fantasia” nosso tempo, que começou com a promessa libertadora de Prometeu e acabou no terror estalinista. Neste período sentir-se-á cada vez mais atraído pelo papel do cristianismo na cultura, em especial pela valorização da liberdade na procura da verdade e do bem. A procura da transcendência exigiria a liberdade, abrindo caminho à dúvida, à crítica e ao reconhecimento da importância da imperfeição. Daí o contraste com a ideia de caminho necessário para uma sociedade perfeita pela imposição uma “verdade” política. Em 1968, parte para o Canadá, onde será Professor visitante na Universidade McGill (Montreal), em 1969 exerce idênticas funções na Universidade de Califórnia (Berkeley) e em 1970 já se encontra em Oxford, no All Souls College. Aí ficará até ao fim da vida, com breves interrupções, para leccionar em Yale e em Chicago. Nesse período inicial, os seus ensaios e intervenções foram banidos na Polónia, passando no entanto a circular clandestinamente nos meios da resistência. Um texto de 1971 intitulado “Teses sobre a Esperança e a Desesperança” servirá de inspiração aos grupos da sociedade civil que levarão à criação do “Solidariedade”. São reflexões muito práticas, mas com sólida fundamentação intelectual, sobre a necessidade da criação de movimentos espontâneos baseados na solidariedade voluntária. Kolakowki pôde, assim, ser, a um tempo, um intelectual muito influente na procura de novos caminhos de reflexão crítica, mas também um cidadão activo, permanente apoiante do processo de democratização da Polónia e da sua abertura à Europa e ao Mundo. Num texto célebre (“Idolatria da Política”, 1986) afirmou: “Aprendemos História não com vista a viver ou a ter sucesso, mas para sabermos quem somos”. Esta foi uma das suas preocupações permanentes, que suscitou críticas e perplexidades, uma vez que as suas reflexões críticas basearam-se sempre na ideia de que a liberdade obriga a trilhar os caminhos mais difíceis e inóspitos, sem medo dos destinos a que podem conduzir. Com uma grande admiração pelo modo de estar, de pensar e de agir de Kolakowki, um outro resistente célebre Adam Michnik disse dele que é “um dos mais proeminentes criadores da cultura polaca contemporânea”. A sua heterodoxia, o seu sentido crítico, a procura da compreensão da complexidade, tudo isso constitui o método que usou no sentido de abrir horizontes para uma sociedade aberta, cosmopolita, mas ciente da importância da diversidade cultural. Timothy Garton Ash, num texto recente associava a invocação de três personalidades marcantes, recentemente desaparecidas: Bronislaw Geremek, Ralf Dahrendorf e Leszec Kolakowski (Guardian, 22.7.09). Apesar das diferenças, salientava haver preocupações comuns a todos eles, relacionadas com o primado da dignidade da pessoa humana, com o respeito radical pela liberdade e com a salvaguarda dos direitos e deveres universais e das diferenças culturais. No fundo, o que os unia a todos era a liberdade de espírito e a consciência de que as pessoas são os verdadeiros actores da História.

UM ESPÍRITO BRILHANTE
“É o conflito de valores, mais do que a sua harmonia que mantém a cultura viva” – costumava dizer, e aí baseava o seu sentido crítico, que a dura experiência da vida lhe ensinara. Para o filósofo não seria possível nem desejável encontrar uma síntese harmoniosa dos diversos elementos contraditórios de que se faz a história humana. Ao ofício de pensar não cabe o acto de construir a verdade, mas sim criar um espírito de verdade. Essa era a sua preocupação fundamental. Essa procura exigente obriga a trilhar caminhos inesperados. Daí a necessidade de exercer sempre um magistério crítico, começando por desconfiar de nós mesmos. E a preocupação de Kolakowki com a História levou-o a demarcar-se das interpretações historicistas, antes preferindo partir dos acontecimentos, procurando aí exercitar o “espírito de verdade”: “Precisamos de defender e apoiar métodos tradicionais de investigação, elaborados ao longo dos séculos, para estabelecer o encadeamento dos factos históricos e separá-los de fantasias, ainda que possa acontecer alimentar tais fantasias. A doutrina segundo a qual não há factos, mas sim interpretações, deve ser rejeitada por ser obscurantista. E temos de preservar a nossa tradicional crença em que a história da humanidade, a história das coisas que realmente aconteceram, criadas por inúmeros acidentes únicos, é a história de cada um de nós, sujeitos humanos; uma vez que a crença nas leis históricas é produto da imaginação. O conhecimento histórico é crucial para cada um de nós; para as crianças da escola e os estudantes, para novos e velhos. Devemos absorver a história como algo que nos é próprio, com todos os seus horrores e monstruosidades, com a sua beleza e o seu esplendor, as suas crueldades e perseguições, assim como todos os magníficos trabalhos da mente ou da mão humanas; devemos agir desse modo, se queremos saber o nosso próprio lugar no universo; se queremos saber quem somos e o que fazer” (What Past is For”, Nov. 2003).

Guilherme d'Oliveira Martins

AGOSTO AZUL EM ARZILA.

Por Guilherme d’Oliveira Martins

Era de madrugada quando passei a mítica porta de armas da velha Praça de Arzila. Eram praticamente três da manhã. Os voos tardios para Casablanca (a aura de Ingrid Bergman estava lá) e depois para Tânger atrasaram-se. E não há hospitalidade, por melhor que seja, como de facto foi, que dispense as burocracias das fronteiras, os passaportes, as polícias, os carimbos. Enquanto uma parte da delegação portuguesa ao Festival de Asilah (Arzila) ficou em Tânger, tive o privilégio de ficar na cidade histórica. A noite límpida de Agosto dominava a cidade, que se aquietara havia muito pouco. Atravessei de automóvel as ruas estreitas, num dédalo apertado e labiríntico, e depressa cheguei à muralha fronteira ao oceano. Quando entrei no Palácio Raisouli (hoje da Cultura), o silêncio apenas foi interrompido pelo som dos passos nos corredores semi-obscurecidos e no pátio central revestido de azulejos, coberto por uma clarabóia de quatro águas e decorado com estuques e madeiras. Ao nosso encontro vieram prestáveis camareiras, que não disfarçavam, apesar da simpatia, terem sido acordadas a desoras. Em poucos minutos, depois de uma breve hesitação na escolha do quarto, já estava acomodado em instalações amplas, com leve toque arábico e todas as benesses ocidentais.

Abri as venezianas e olhei o que se avistava da janela. Estava no coração da Medina, a iluminação deixava ver as casas brancas de cal imaculada debruadas a azul, as açoteias, o encadeado de construções, um pequeno jardim em frente, e, debruçando-me apoiado no parapeito, deparei à esquerda com o negrume do Atlântico sob o céu estrelado de uma noite de lua cheia e senti o marulhar, a cadência regular das ondas, plácidas e serenas. O cansaço da viagem adormeceu-me rapidamente. E só fui acordado pelos primeiros raios intensos da aurora. A manhã começava, e o jardim em frente acolhia-me com um magnífico caramanchão de buganvílias, que me recordaram o zelo de minha avó Ana com as suas flores algarvias. E lembrei o “Agosto Azul” de Teixeira Gomes: “por cima dos alcantis da costa progride a alvorada; cinge-se o céu de faixas de oiro cor de limão golpeadas a carmim”… Recordei o Algarve, ali tão próximo. E, ao ouvir o bater regular das ondas, senti-me em casa, como se as lembranças de menino viessem num instante. Mas era muito cedo e a cidade estava ainda em silêncio. Adormeci de novo e a luz intensa do sol invadia o quarto. Os primeiros dias de Agosto diziam: “… e o mar dilata-se infinitamente quando rebenta a luz do Sol, jorrando fogo como se por detrás do céu tudo fosse metal fundido”.

Pouco depois das nove estava na sala de refeições daquele amplíssimo palácio, reconstruído graças à determinação de Mohamed Benaïssa, antigo Ministro da Cultura e actual Presidente da autarquia. Contam-se muitas histórias sobre esse corsário dos tempos modernos que construiu aquele majestoso edifício no centro da Medida com amplos janelões para o Mar. Raisouli foi um temível guerrilheiro tribal que chegou a vencer o governador de Tânger no final do século XIX, tornando-se-se paxá da cidade de Arzila em 1906. Por ali há fantasmas desse tempo, de uma história de pouco mais de cem anos. O certo é que até há poucas décadas aquela mole imponente estava em ruínas, sem nunca ter chegado a ter uma utilização efectiva. Só a recuperação histórica da cidade dos últimos anos permitiu que o edifício tivesse sido reconstruído e adaptado para acolher convidados, artistas, escritores, governantes… Gozei o bom pequeno almoço e a vista magnífica sobre o Atlântico – e percebi que o recife de que falaram Duarte Pacheco Pereira e os nossos navegadores há muito deixou de existir.

O dia estava límpido e os azuis deslumbrantes. Percorri as ruas de Asilah, fruindo o ambiente da cidade que acordava e que começava o intenso bulício. Turistas misturavam-se com a gente da terra, os trajes informais dos estrangeiros contrastavam com as vestes tradicionais, as túnicas, os lenços das mulheres, o ritmo lento da abertura do comércio, os bazares cheios de artesanato, cerâmicas, cobres e recordações. Próximo da torre de menagem deparo-me com uma parede pintada por artistas portugueses. As silhuetas de vários visitantes saúdam uma jovem com vestes tradicionais, de rosto velado, onde apenas se adivinham os olhos, posta numa janela autêntica artificiosamente pintada. Muita gente fotografa o cenário, assinado com o nome de Portugal e uma pequena bandeira. Mais adiante vejo a placa deixada por Helena Vaz da Silva e pelo CNC em 1987 “os portugueses ao encontro de Marrocos”. A torre foi recuperada pela Fundação Gulbenkian e alberga no festival deste ano a exposição sobre o património português recuperado graças àquela instituição. É imponente, encimada por um “telhado de cobre de quatro águas, com quatro guaritas ligadas pelo caminho da ronda protegido por merlões”. No guia editado pelo CNC “Portugal e o Mundo, o futuro do passado” dedicado a Marrocos (Lisboa, 2003), Rui Rasquilho diz-nos mais: “a torre terá sido desenhada por Boytaca e por ele reconstruída conjuntamente com as muralhas no início do século XVI”. Lembre-se que D. Afonso V e seu filho D. João conquistaram Arzila em 24 de Agosto de 1471, e foi a partir daqui que Tânger foi tomada. Em 1550, por decisão de D. João III, Portugal abandonou esta praça, retomada em 1577 por D. Sebastião, a pensar nas novas conquistas marroquinas. Até que, em 1589, Filipe I decide deixar Arzila… A torre desta cidade e o Castelo do Mar em Safi, ao sul de Marrocos, são as únicas torres de traça medieval de origem portuguesa que ainda subsistem em África. Diz a tradição que foi no largo fronteiro à torre que D. Sebastião acampou com as suas tropas antes de partir para o desastre de Alcácer-Quibir. Depois do reconhecimento da Medina, regressei ao Palácio da Cultura para visitar os ateliês dos artistas.

Havia um movimento e um ambiente extraordinários. David Almeida, de há muito um dos entusiastas do festival, entregava-se à sua arte de exímio gravador, ensinando, desde o modo de tornar operacional uma prensa teimosa até à transmissão da difícil técnica de imprimir no papel o resultado do talento. José Emídio não escondia o orgulho de trazer a Cooperativa Árvore àquele lugar de tantos mitos. E ia pintando uma alegoria aos amores de D. Sebastião (naquele dia 3 de Agosto, véspera da partida funesta) conversando animadamente sobre arte, sobre a pátria e sobre tudo. Carlos Dias juntou-se à conversa, também ele (ou seria Alberto Terrível?) às voltas com a representação do mito sebástico, mas sobretudo empenhado em demonstrar que a memória que interessa viver é a da cultura, da arte e das aprendizagens. Bela Silva dirigia o ateliê de escultura. Carlos Reis, Luísa Gonçalves, Fernanda Costa afadigavam-se no entusiasmo de criar e de exprimir o gosto de estarem ali. Era emocionante entrar naquele lugar, a qualquer hora do dia. Muito mais do que invocações históricas o fundamental é transformar a memória em cultura de paz. Como diria no dia seguinte: “Em Asilah há uma vida cultural onde o património não se pode situar nem compreender sem uma ligação actual à contemporaneidade. A história e a actualidade cruzam-se, naturalmente”.

A ideia do festival é extraordinária de possibilidades. Encontramos o património e a vida, a história e a actualidade. Na manhã seguinte, numa volta exterior às muralhas, descubro uma pequena multidão de comerciantes com os seus burros com albardas, cilhas, cabrestos, gorpelhas e cangalhas como há muito não via. Lembrei-me dos nossos almocreves moçárabes, a comerciarem legumes frescos e de tudo um pouco. Afinal, os berberes marroquinos são nossos primos muito próximos, indo-europeus que circularam ao longo dos séculos no Mediterrâneo. E foi por entre uma pequena e pacífica algazarra de mercadores que visitei detidamente as portas tradicionais de Asilah: Bab Homar, de terra, virada a nascente, que ostenta ainda as armas portuguesas, algo apagadas; Bab El Bahar, próximo da torre de menagem e a de Casbá, virada a norte fronteira à avenida marginal.

À noite ao jantar, antes do espectáculo de fado de Raquel Tavares, em casa de Mohamed Benaïssa, num ambiente muito acolhedor e requintado, na Medina, foi possível rememorar mentalmente a estada única. No fundo, “há uma ideia nova de descoberta que temos de prosseguir e desenvolver, como respeito e partilha, como hospitalidade e dom. A cultura é um factor de riqueza, de mobilidade, de conhecimento, de informação. Não é possível falar de desenvolvimento humano, no sentido moderno, sem uma forte valorização do fenómeno cultural”.