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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MIL E UMA NOITES DE MASCATE AO CAIRO

Por Guilherme d’Oliveira Martins 

 

Chegados a Mascate, sentimos intensamente o calor húmido do deserto. São quase onze horas da noite. Estão mais de 35 graus centígrados. A hospitalidade é a primeira nota. A limpeza e a organização seguem-se com naturalidade. No Hotel Shangri-La, somos recebidos com incenso (do sul do Oman, provindo da resina da Boswelia sacra), um extraordinário sumo de tâmaras e uma refeição ligeira e requintada. Quinhentos e dois anos, dia por dia, depois de Afonso de Albuquerque ter conquistado a cidade, a caminho de Ormuz, em 1507, a embaixada cultural do Centro Nacional de Cultura continua a demanda dos marcos da presença portuguesa. Muito cedo, no dia seguinte, partimos por estrada boa (em obras de reparação em virtude dos efeitos do ciclone de 2007) para Curiate e Calaiate, a sul da capital. Com livros e mapas na mão, como normalmente fazemos, procuramos encontrar no território omanita os vestígios da presença portuguesa, que se prolongou por mais de cem anos. Paramos em Curiate para visitar o forte. Muito calor. A construção militar foi renovada nos anos noventa. Podemos reconhecer, apesar da ausência dos baluartes, a imagem da planta publicada por António Bocarro (c. 1594-1642) no "Livro das Plantas das Fortalezas da Índia Oriental" (1635). O desenho de Pedro Barreto de Resende é reconhecível. Lá estão o palmeiral e o deserto. "Os muros são de adobes, como todos os mais da Arábia que fizerão mouros". Os pastores do deserto, com rebanhos de cabras e ovelhas, deambulam na pequena cidade em volta das muralhas. Com emoção, podemos reviver, cinco séculos depois, a azáfama dos companheiros de Albuquerque. Nos compartimentos do forte vemos a reconstituição de como seria a vida no interior. Segundo Bocarro: "há mais dentro nesta fortaleza hum almazem pera mantimentos, outro pera munições, e hum poço de aguoa, sem mais outra couza". E, ao olharmos as palmeiras com cachos de tâmaras, lembramo-nos de que um dos meios de defesa, além dos canhões e da armaria, era o melaço de tâmara a ferver, que fazia as vezes do azeite quente usado pelos europeus. Depois de Curiate, passamos por Calaiate (Qallhat), também conquistado por Albuquerque na sua caminhada até Ormuz. Hoje já não há reminiscências visíveis do forte, mas vemos o mausoléu de Bibi Maryam construído em pedra de coral, em forma de cubo, decorado com nichos e portas cegas, cerca de 1311 da nossa era. Trata-se de uma homenagem à mulher de um chefe local, falecida com fama de bem-aventurada. Foi das poucas construções poupadas no ataque da armada portuguesa.

 


Forte português Al Jalali, em Mascate

 

A partir de 10 de Agosto de 1507, o “terribil” Albuquerque, com 40 homens e uma armada de 6 navios subiu a costa da Somália e passou a zona meridional da Arábia: ilha de Socotorá, Calaiate, Curiate, Mascate, Soar e Corfacão. As cidades conquistadas ou submetidas assentavam a sua prosperidade no comércio dos cavalos árabes e das especiarias e na ligação entre o trato do Mar Arábico, a Rota da Seda e o Mercado do Levante. À distância dos séculos, entendemos o génio de Albuquerque. Percebe-se, ao olhar o mapa do estreito de Ormuz, que um sistema de defesa eficiente tinha de situar-se nas costas. Isso permitiu aos portugueses manterem presença efectiva durante cerca de cento e cinquenta anos, apesar das vicissitudes. Estamos num dos pontos de maior interesse económico, desde a Antiguidade. Aqui se juntavam as rotas do comércio entre a Europa e a Ásia e era a porta do mítico reino do Preste João das Índias. Por isso, Marco Pólo passou por Ormuz duas vezes (em 1272 e 1293). E o franciscano Lourenço de Portugal, enviado pelo Papa Inocêncio IV, a este mesmo estreito, numa missão junto dos Tártaros, chegou aqui 27 anos antes do veneziano.
 

Mascate. A cidade histórica recorda-nos o tempo em que esteve sob administração portuguesa (1507-1648). Os fortes de Jalali e Mirani rodeiam o moderno Palácio do Sultão. A imagem do cartógrafo de Bocarro, com a enseada, o porto de abrigo, a concha protegida pelos rochedos, é bem identificável. É impressionante a fidelidade. No fim da tarde, com lua cheia e uma luminosidade turvada pela humidade, é uma cidade das mil e uma noites, como se Sherazade tivesse contado mais uma história sobre portugueses. Aliás, segundo a lenda, Simbad, dos sete mares, nasceu em Sohar a noroeste daqui.

 

Canhão português à entrada do Forte omanita de Nizwa

 

Depois de uma noite retemperadora, fomos a Nizwa, no interior, onde os portugueses não estiveram, mas tivemos a boa surpresa de descobrir no forte um canhão, trazido da costa, com as armas do rei de Portugal, com o colar do Tosão de Ouro. E, ao passarmos pela mesquita de Barla, Anísio Franco lembrou que os gomos das cúpulas das mesquitas são os das guaritas da Torre de Belém, ou não fosse a construção de Francisco de Arruda uma das memórias da conquista de Ormuz e da implantação do Império do Índico. Lá está o rinoceronte Ganda, oferecido a Albuquerque pelo rei de Cambaya, e enviado, para espanto geral, a D. Manuel, Senhor do Comércio, da Navegação e da Conquista da Pérsia, Arábia e Índia. E como não lembrar a Quinta da Bacalhôa, por influência de Brás Afonso de Albuquerque? Hoje o Sultanato aposta na modernização. Apesar de se estar em pleno Ramadão não sofremos contratempos. O turismo de qualidade é um desígnio do Sultão, Qabous Bin Said, a investigação científica e a cooperação internacional estão na ordem do dia. Dentro de 20 anos a economia do petróleo ter-se-á esgotado. Haverá gás natural, mas o Oman prepara-se para obter novos recursos. Ao vermos a porta manuelina no castelo de Mirani, ao lembrarmos a Torre de Belém, percebemos que na Arábia Félix encontramos a nossa memória. Mas ouvimos também Albuquerque dizer “Mal com El-Rei por amor dos homens, mal com os homens por amor d’El-Rei”.

 

Depois de conquistada Mascate, Afonso de Albuquerque apontou como objectivo Ormuz, a cidade comercial e o centro político que ligavam o comércio da Ásia às rotas do Levante. O controlo das entradas do Sino Pérsico e do Mar Roxo era fundamental para o Império da Índia. A ilha fica hoje no Irão. Não a visitámos por segurança. Optamos pelo sistema de defesa, aproximando-nos o mais possível da costa iraniana. Instalámo-nos, por isso, na cidade de Khasab, em Mussandam, zona de montanha do Oman, constituída por rochas sedimentares, de formações singularíssimas, resultantes do choque das placas Euro-asiática e Africana, na explosão da Pangeia. Os fiordes são únicos. Visitámo-los num cruzeiro mágico, em águas calmas, em zona de alta segurança. Vimos mergulhões, golfinhos e um fundo de mar fantástico com peixes e flora de mil cores. Mergulhámos na ilha do Telégrafo, onde os ingleses instalaram a base de comunicações em 1864. A manhã não permitiu ver a costa do Irão, mas à tarde a neblina desvaneceu-se e adivinhámos com emoção o desenho incerto da costa da Pérsia. Em 24 de Outubro de 1507, Albuquerque começou a lançar as fundações da nova fortaleza de Ormuz. Mas nesse ano não teve condições para continuar. Só em 1515 o “cavaleiro grande” voltaria para tomar a praça. Recordámo-lo perante a costa montanhosa, alcantilada, seca, constituída pela natureza em camadas implosivas e paralelas. E ainda passámos por Kumsar, a pequena cidade protegida pelos portugueses de quinhentos, onde ainda se diz batel e bandeira. E regressámos a Khasab, já noite.

 

Avenida no Dubai

 

O périplo do Golfo Pérsico culmina no Barhein. É a Tylos de Alexandre Magno. Depois de passarmos pelo forte de Ras-al-Khaimah e pelo Dubai, visitamos a notável obra que está a ser feita no forte português do Barhein. É uma construção semelhante à de Ormuz. Foi conquistada por D. Antão de Noronha (1559). Tem três baluartes à italiana, que o tornavam inexpugnável (como Mazagão). Nunca foi vencido e só foi abandonado depois da queda de Ormuz. Apesar de tudo, o sonho de Albuquerque não se realizaria. Faltou conquistar a porta do Mar Roxo, Adém. E homenageámos simbolicamente o “forte leão dos mares” em Aqaba, no Mar Vermelho, vindos do deserto do Wadi Rum, dos “Sete Pilares da Sabedoria”, sob a invocação de Lawrence da Arábia, de que os beduínos ainda falam como um dos seus, no silêncio do deserto, em volta do chá de menta com cardamomo. Na Jordânia, a visita a Petra permitira-nos recordar os nabateus, escultores da pedra vermelha do deserto. A cidade esteve escondida, até que o suíço Burkhardt a reencontrasse (1812). Perante a fachada do Tesouro, celebrizada por Indiana Jones ou Tintin em “Coke en Stock”, ou o imponente Mosteiro fica a dúvida: quem construiu esta maravilha do mundo? Os nabateus inventaram a técnica e os gregos e os romanos deram-lhe a imaginação e a arte. Por fim, o Cairo. “A cosmopolita confusão das ruas e bazares” (Conde de Ficalho) permite-nos lembrar Pero da Covilhã e Afonso de Paiva que daqui partiram (1488) e aqui deviam ter-se reencontrado (1491), mas também Eça de Queirós de “O Egipto”. A cidade é hoje uma Babel, uma encruzilhada, onde oriente e ocidente se encontram. Mas o Nilo ancestral tem a ver, afinal, com as nossas raízes.

 

 

Fotos © CNC/HelenaSerra

"Viagens de Pêro da Covilhã"

A VIDA DOS LIVROS
De 14 a 20 de Setembro de 2009

 

 

 

“Viagens de Pêro da Covilhã” da autoria do Conde de Ficalho (reedição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988; 1ª ed. 1898) é uma obra preciosa que merece ser lida e relida. O autor foi um cientista de mérito, que colocou nas obras que escreveu sempre um grande cuidado e rigor histórico, que neste estudo se nota especialmente. Com efeito, ainda hoje não é possível estudar as viagens de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva sem ler o Conde de Ficalho e sem recorrer à obra fundamental do Padre Francisco Álvares “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”, livro publicado no reino em 1540, baseado no testemunho pessoal recolhido junto do próprio Pêro da Covilhã. Daí que tenham sido o Conde de Ficalho e o Padre Álvares auxiliares preciosos na preparação da Embaixada cultural do CNC a Ormuz aos fortes portugueses do Golfo Pérsico e ao Cairo.


Preste João, Queen Mary’s Atlas, British Museum,
pormenor, Diogo Homem, 1558
.

 

OS PREPARATIVOS DA NOSSA VIAGEM
Se Afonso de Albuquerque guia os nossos passos neste périplo até ao Golfo Pérsico e ao sistema defensivo de Ormuz, o certo que Preste João das Índias tornou-se, naturalmente, uma das nossas obsessões, uma vez que D. João II na preparação cuidadosa do Plano da Índia, se preocupou com a criação de uma aliança com o Imperador cristão da região. E se os descobrimentos tinham como fito especiarias e cristãos, percebe-se por que razão as missões de Pêro da Covilhã e de Afonso de Paiva foram fundamentais. Apesar de tudo, Albuquerque já sabia que o Preste tinha pouco poder na região, mas simbolicamente era relevante. O livro do Conde de Ficalho tornou-se, deste modo, um vade mecum imprescindível relativamente aos prolegómenos da viagem de Vasco da Gama. Mas vamos um pouco atrás. Marco Pólo, o mercador veneziano, que chegou aos confins da Ásia, visitou duas vezes Ormuz, ponto de encontro de várias rotas comerciais na zona do Golfo Pérsico. Como sabemos, o Infante D. Pedro trouxe do seu périplo europeu (no primeiro quartel do século XV) um exemplar do Livro de Marco Pólo, facto que terá contribuído decisivamente (com o mapa do Índico de Fra Mauro) para a tomada de decisão de contornar a África para chegar ao Índico. É nesta ordem de ideias que Príncipe Perfeito, no culminar da execução do Plano das Índias, envia Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã, em 1487, respectivamente para a Etiópia e para a Índia. Na cidade do Cairo separaram-se, algures em 1488, com a combinação de se reencontrarem junto à porta da cidadela provavelmente nos primeiros dias de 1491. O Padre Álvares apenas diz. “ficando que a hum tempo certo se ajuntassem ambos no Cairo pera viren dar conta a el Rey do que achava”. Pêro da Covilhã visitará a costa do Malabar, certificando-se das possibilidades económicas e comerciais da zona e chegado a Ormuz decidiu partir para a costa oriental de África (Melinde, Quiloa, Moçambique), fazendo um levantamento rigoroso dos pontos que Vasco da Gama irá percorrer. Ao que tudo indica (graças aos cálculos do próprio Conde de Ficalho) em fim de Janeiro de 1491, na porta da cidadela do Cairo, Pêro não encontrará Afonso de Paiva, mas sim o rabino de Beja, Abraão, e um judeu português José de Lamego que o informam da morte de Paiva, vítima de peste pouco tempo antes. “Ao mesmo tempo que o nosso viajante era assim informado da morte do seu companheiro, encontrava-se com dois judeus portugueses, enviados pelo rei de Portugal em sua procura, os quais, com muita habilidade e manha, o souberam descobrir na cosmopolita confusão das ruas e bazares do Cairo”. Aqui Ficalho colhe a informação em Álvares, mas também em Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel. Pêro da Covilhã entrega o seu relatório para o Rei a José de Lamego e volta a partir com o Rabi de Beja para Ormuz (sempre essa placa giratória das rotas entre o ocidente e o oriente), para seguir daí para a Etiópia, onde ficará (não se sabe ao certo se por vontade própria) e estabelecerá família, descobrindo que o reino mítico do Preste João não é poderoso nem rico. Recebeu a visita de alguns portugueses a quem deu notícias importantes. Em 1521, o embaixador D. Rodrigo de Lima encontra-o. O importante relato das suas viagens foi feito então ao padre Francisco Álvares pelo próprio Pêro da Covilhã, tendo sido publicado no reino integrado na citada obra “Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias”.

 

AFONSO DE ALBUQUERQUE
Mas falar de Ormuz e do Golfo Pérsico, é referir Afonso de Albuquerque, com o seu génio estratégico, que considerou essa praça como ponto fundamental na conquista da entrada do Golfo Pérsico – local crucial de passagem das rotas mercantis e posto estratégico na articulação entre o comércio europeu e asiático. Por aí eram escoados os produtos exóticos transportados pelas caravanas de Bassorá ou Alepo rumo ao Mediterrâneo. Em Outubro de 1507, Albuquerque atacou a cidade, dominando-a. E praticamente concluiu a construção do Forte de Nossa Senhora da Vitória só interrompida pelo chamado Motim dos Capitães e consequente deserção. No entanto, em Abril de 1515, Albuquerque, já governador da Índia, mandou reconstruir o Forte de Nossa Senhora da Conceição de Ormuz, fixando os termos da submissão ao Rei de Portugal. João de Barros, nas Décadas da Ásia (II, II, 2), disse que "a cidade de Ormuz está situada em hua pequena ilha chamada Gerum que jaz quasi na garganta de estreito do mar Parseo tam perto da costa da terra de Persia que avera de hua a outra tres leguoas e dez da outra Arabia e terá em roda pouco mais de tres leguoas: toda muy esterele e a mayor parte hua mineira de sal e enxolfre sem naturalmente ter hum ramo ou herva verde. A cidade em sy é muy magnifica em edificios, grossa em tracto por ser hua escala onde concorrem todalas mercadorias orientaes e occidentaes a ella, e as que vem da Persia, Armenia e Tartaria que lhe jazem ao norte: de maneira que nam tendo a ilha em sy cousa propria, per carreto tem todalas estimadas do mundo /...../ a cidade é tam viçosa e abastada, que dizem os moradores della que o mundo é hum anel e Ormuz hua pedra preciosa engastada nelle".

 

MASCATE, CIDADE MÁGICA
Já quanto a Oman, fronteiro a Ormuz, o próprio Afonso de Albuquerque disse em 1507: “Mascate he uma cidade grande, muito bem povoada, cercada da banda do sertão tem um campo tamanho, como o Rossio de Lisboa, todo feito em marinhas de sal, não que a maré chegue ali, mas a agoa, que nelle nasce, he salgada e torna-se em sal; e aqui perto tem muitos poços de água doce, donde bebiam os moradores: tinha pomares, hortas, palmeiras com poços para regar, que se tira agoa delles com engenho de bois. O porto é pequeno, de feição de uma ferradura e abrigado de todos os ventos”. Os fortes portugueses do Golfo Pérsico são, assim, referências fundamentais, para compreendermos o modo como Afonso de Albuquerque delineou e concebeu o Império da Ásia. O domínio do estreito de Ormuz tem de se ligar à centralidade de Goa e à presença em Malaca. E não podemos esquecer que o pensamento de Albuquerque ligava o comércio do Índico à necessidade de controlar o Mediterrâneo oriental, o Egipto e a Terra Santa. Daí os projectos audaciosos e excessivos que alimentou (desde o desvio das águas do Nilo até à hipótese de rapto do corpo do profeta Mohamed). No entanto, temos de reconhecer a grande capacidade de direcção militar, económica e política de Afonso de Albuquerque. Conhecem-se as circunstâncias em que foi destituído das suas funções por razões muito pouco claras, que poderão ir da pura intriga às discordâncias estratégicas, até por causa do carácter impetuoso e tirânico do chefe político e militar. Ficou célebre a frase que a tradição lhe atribui, no momento em que soube da sua destituição e substituição por Lopo Soares de Albergaria: “Mal com El-Rei por amor dos homens, mal com os homens por amor de El-Rei”. Em mais esta embaixada do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da sua História” temos, pois, muitos motivos para invocar uma memória viva, numa zona cheia de lembranças e invocações! Uma palavra de agradecimento ao Engº Fernando Melo Antunes que nos desafiou para esta aventura. Desde Marco Pólo até hoje, passando por Pêro da Covilhã, Afonso de Paiva, Afonso de Albuquerque, quantas invocações!

Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

De 7 a 13 de Setembro de 2009

 

«El Camino Hacia la Democracia – Escritos en ‘Cuadernos para el Diálogo’ (1963-1976)» de Joaquin Ruiz-Giménez (numa edição do Centro de Estúdios Constitucionales de Madrid, 1985) é um documento de época. Tal como ocorreu em Portugal com António Alçada Baptista, verificamos no percurso da influente revista “Cuadernos para El Diálogo” uma projecção política decisiva do Concílio Vaticano II e, em especial, do Cardeal Roncalli, o Papa João XXIII. O espírito da encíclica profética “Pacem in Terris” e os ensinamentos da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” estão, de facto, aqui bem evidenciados. E, ao longo destes textos descobrimos o esforço empenhado de um destacado intelectual católico espanhol, professor de Filosofia do Direito, que a partir dos anos cinquenta se envolveu activamente na missão difícil e ingrata de mobilização cívica com vista a uma transição pacífica para a democracia, numa sociedade com feridas ainda abertas pela tragédia da Guerra Civil de 1936 a 1939.

 

UM MESTRE SERENO
Com o desaparecimento de Joaquin Ruiz-Giménez (1913-2009), ocorrido há pouco, fecha-se um tempo da história das ideias políticas na Península. Para os mais novos o nome já não diz muito, no entanto, trata-se do fundador, no ano de 1963, dos “Cuadernos para el Dialogo”, a revista que, ao lado de “O Tempo e o Modo” (criada no mesmo ano), foi um instrumento fundamental para obter novos apoios para a democracia, rompendo com a frente nacionalista que constituía a base do franquismo. Ruiz-Giménez foi, já na democracia, o primeiro Defensor del Pueblo em Espanha, marcando com o seu exemplo de inteireza e hombridade essa instituição. Por estes dias, alguns dos textos que se publicaram sobre ele disseram (tal como aconteceu relativamente ao seu amigo Alçada Baptista) que o projecto político de um cristianismo social avançado, dialogante, inconformista não vingou. É verdade. O velho professor chamou-lhe Esquerda Democrática, mas na galáxia do compromisso dos cristãos com a democracia não teve sucesso. No entanto, se lermos os dois volumes riquíssimos de “El Caminho Hacia la Democracia”, onde estão reunidos textos publicados de 1963 a 1976, depressa compreendemos que Don Joaquin, o respeitado professor de Filosofia do Direito, que acreditou sinceramente na transição pacífica espanhola, foi sobretudo um pedagogo da democracia, talvez com razão antes do tempo, ao propor o método de uma Plataforma de Convergência. E é sempre necessário que haja alguém, arrostando com as incompreensões, disponível para abrir veredas. E assim aconteceu com Ruiz-Giménez. Ao lado de Gil-Robles, de Dionísio Ridruejo e de Tieno Galván, tornou-se, desde o final dos anos cinquenta, uma presença assídua nos contactos ibéricos entre democratas. O Centro Nacional de Cultura foi um dos lugares dessas aproximações e o espírito dos “Cuadernos para el Dialogo” assemelhou-se ao da “aventura da Moraes”, na senda de José Bergamín e da revista “Cruz y Raya”, dos republicanos cristãos dos anos trinta. Num depoimento muito sentido, por ocasião do falecimento do professor, Elías Díaz salientou o seu cristianismo aberto, longe de uma lógica limitada e teocrática, a sua influência cultural, em nome do pluralismo e da democracia e, por fim, o seu labor científico e filosófico a favor das liberdades públicas, dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. “Foi um homem de princípios, de convicções fortes, um cristão cada vez mais kantiano, que respeitava muito séria e sinceramente a consciência” (El País, 28.8.09). Outro dos seus alunos, hoje uma das vozes mais respeitadas no panorama político e académico, Gregório Peces-Barba, preferiu falar de “um sonhador para o povo”. No número de Outubro de 1963, don Joaquin dizia: “Nascem estes simples ‘Cuadernos para el Diálogo’ com o honrado propósito de facilitar a comunicação de ideias e de sentimentos entre homens de distintas gerações, crenças e atitudes vitais, em torno de realidades concretas e de incitantes problemas religiosos, culturais, económicos, sociais, políticos… da nossa instável conjuntura história”. E, falando no mesmo número do pecado do silêncio afirmava: “a responsabilidade atinge-nos a todos. Se calamos, se calam, algum dia falarão as pedras. E aquele pecado contra o Espírito, aquele que não tinha perdão, era um pecado contra a verdade”.

 

UMA VOZ PROFÉTICA
O professor de voz pausada e serena, mas com uma forte determinação de vontade, foi especialmente importante na abertura democrática, possuindo a autoridade de ter participado nos trabalhos do Concílio Vaticano II, como perito no debate do Esquema XIII, que se tornaria a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”. Justiça social e desenvolvimento tinham de estar a par, e esse era o ponto de vista de Ruiz-Giménez, aprofundando uma nova perspectiva de direitos fundamentais, centrados na dignidade da pessoa humana e na ligação desta ao moderno desenvolvimento económico, social e cultural sustentável. E foi, como se disse, a influência da personalidade de João XXIII que mudou o curso de vida do filósofo (falava, por isso, de um certo encontro na estrada de Damasco). Fora Ministro da Educação durante o franquismo (1951-1956), depois de ter exercido funções de Embaixador junto da Santa Sé, num momento em que os contactos com Jacques Maritain, Embaixador de França, lhe abriram novas perspectivas no sentido da democracia. Ainda tentou acelerar a transição, em especial pela chamada à Universidade de personalidades que estavam afastadas por motivos políticos. Sem sucesso. E o certo é que gostava de citar António Machado: “Para dialogar, / perguntai primeiro, / depois, escutai” ou “Busca o teu complemento, / que anda sempre contigo / e costuma ser o teu contrário”. Num tempo em que o diálogo parece cair, infelizmente, em desuso, Don Joaquin fez dele a sua bandeira. Muitos não o ouviram.

 

LÁGRIMAS DE CROCODILO DOS FARISEUS
Houve muitas lágrimas de crocodilo derramadas por aqueles que os “Cuadernos”, pela pena do seu director, consideraram ser os novos fariseus: «Porque fariseus são os cidadãos que vegetam na ‘dolce vita’ burguesa insensíveis à dor dos camponeses ou dos operários das cidades, incapazes de permanecer algum tempo nos subúrbios, de compartilhar angústias e dificuldades, e que logo, perante qualquer agitação social, se lamentam da rebelião dos oprimidos e clamam contra os agitadores comunistas e os seus companheiros de viagem. Fariseus são os políticos que proclamam a sua fidelidade às normas tradicionais do Direito público cristão, mas procuram lançar cinza sobre a chama acesa pelas declarações da ‘Pacem in Terris’» (Março de 1965). Clamar pelo diálogo era perigoso. Havia todo o tipo de desconfianças e temores. Mas o diálogo não morre, não pode morrer “porque é um segredo da imortalidade da Igreja de Cristo e da sua missão decisiva e irrenunciável nesta hora angustiada e expectante do mundo. Quem tenha ouvidos para ouvir, que oiça; quem tenha coração para sentir, que sinta; quem tenha amor para dialogar, que dialogue E se por dialogar há que sofrer incompreensões, injúrias, assaltos, até a morte, tanto melhor, porque nenhuma vitória do espírito se conseguiu sem aceitar a cruz” (Abril de 1965). Por isso, os “Cuadernos” foram um lugar plural de encontro, onde se ia dizendo nas entrelinhas o que não podia dizer-se abertamente, onde se abriu lugar aos povos da periferia e às autonomias e onde se pôs na ordem do dia a necessidade de abertura política (expressa, por exemplo, num diálogo pioneiro entre cristãos e marxistas). Além de tudo o mais, Ruiz-Giménez foi sempre um amigo de Portugal, crendo sinceramente que o destino dos dois Estados estaria ligado intimamente, por muito diferentes que fossem as circunstâncias. Teve razão. E podemos ainda lembrar o que deixou escrito aquando da morte do “seu” querido Papa: “Morte, onde está a tua vitória?” – disse o salmista. “Assim, a morte de João XXIII é e continuará a ser para sempre um consolador manancial de água viva”.  

Guilherme d'Oliveira Martins